50 anos do Maio de 68 (Parte 4) – A implosão do maoísmo e a Nova Esquerda

As alternativas maoístas assimiladas pela esquerda francesa eram desastrosas, mas as motivações de muitos que as defendiam no Ocidente eram genuinamente generosas.
No pátio da Sorbonne, ocupada por estudantes, uma imagem de Mao Tsé-Tung e dizeres pró-maoístas são afizados aos muros. Maio de 1968. AFP/ ARCHIVES

por Rodrigo de Lemos

Maio de 68 anuncia um dos movimentos mais importantes da vida política do século XX. Trata-se do ponto de virada a partir do qual a esquerda europeia se converteria ao antitotalitarismo. Não tivemos na mesma medida a mesma sorte na América Latina; a aventura dos barbudos de Havana colocaria a esquerda do continente sob seu charme, e a esperança de que aqui finalmente seria diferente garantiu uma sobrevida mais longa do que o recomendável à mitologia comunista. Na Europa, o caminho foi outro. Ao fim dos anos 70, a centro-esquerda abraçaria os Direitos Humanos como sua vulgata. A mudança é importante. Os Direitos Humanos, para a ortodoxia comunista, eram a ideologia burguesa por excelência, suspeita de reclamar-se de um universalismo beato para ocultar interesses de classe.

É claro que a interpretação dos Direitos Humanos pela esquerda não está acima de ambivalências. No Brasil atual, ela denuncia, com razão, exações das forças policiais nas favelas do Rio, mas, com raras exceções, a regra é passar em silêncio os abusos dos “regimes amigos” no continente. Há também o perigo da instrumentalização dos Direitos Humanos sob o prisma da luta de classes, rebaixando-os ao status de arma política. Ainda assim, e a evolução é notável, em alguns anos, a esquerda majoritária na Europa passa do alinhamento a Stálin à defesa das mesmas minorias e dos mesmos direitos esmagados sob as botas do Paizinho do Kremlin.

No caso francês, essa aprendizagem não foi sem traumas. Ela passou pela experiência do maoísmo, e sobretudo do maoísmo adaptado ao gosto 68, sob forma de mao-espontaneísmo (os maospontex). Era a ideia de uma revolução que se preservasse das estruturas tradicionais, de hierarquias partidárias e de uma vanguarda revolucionária. A pergunta que muitos devem se fazer em 2018 é: como puderam tantos estudantes, e não os mais estúpidos, cair sob o encanto do Grande Timoneiro e dos seus poemas ruins?

Há uma diferença considerável entre o que sabemos do maoísmo em 2018 e o que se podia (ou se queria) saber sobre ele no Boulevard Saint-Germain em 1968, no alvorecer ainda hesitante da transmissão instantânea e da comunicação de massa. O vazio de informações precisas permitia romantizar uma revolução que parecia envolver não só a política e a economia, mas igualmente a cultura. “Grande Salto Adiante”, “Revolução Cultural”, “Deixem cem flores florirem” – os slogans pseudopoéticos de Mao ressoavam positivamente em uma geração que se reivindicava de Marx, mas também de Rimbaud, que admirava Trotsky e os surrealistas. A revolução parecia tomar de alguma forma uma dimensão existencial, inédita e sedutora.

Ainda mais que a própria opção pelo maoísmo decorria da crítica antitotalitária. Uma relação imediata com a massa, o novo lugar designado ao intelectual, para além das divisões entre trabalho braçal e mental, a recusa à burocratização do sistema soviético – o maoísmo surgia como uma vanguarda, se não libertária, ao menos sensivelmente poupada ao enrijecimento e à desumanização da máquina soviética. Se hoje amalgamamos stalinismo e maoísmo na rol das ideologias assassinas do século XX, a muitos o comunismo chinês parecia então precisamente uma saída à opressão russa, manifesta na Hungria em 1956.

Ouyang Xiang, filho de um dirigente comunista denunciado na província de Heilongjiang. O rapaz foi perseguido por escrever uma carta ao comitê revolucionário local defendendo o pai. Humilhado e agredido, quando tentou gritar “Vida longa ao camarada Mao”, calaram-no enfiando uma luva em sua boca. Foi jogado da janela do terceiro andar de um prédio  dias depois. A versão oficial foi de suicídio. Novembro de 1968.

O despertar foi cruel. Já nos anos 70, os maospontex isolam-se mais e mais na paisagem política francesa. O Partido Socialista, em aliança com o Partido Comunista, aproxima-se das lideranças operárias em 1972, por meio de um conciliatório e moderado Programa Comum, acusado pelos radicais de nutrir “ilusões reformistas”. A publicação de Arquipélago Gulag, de Soljenitsyn, em 1974, ajuda a pregar o último prego no caixão das ilusões totalitárias da esquerda francesa. Finalmente, com a morte de Mao, em 1976, seguida da prisão do “bando dos quatro”, a verdade do regime vem à tona de forma indiscutível; testemunhos de massacres, de torturas, da vigilância quotidiana – era impossível escolher não ver que o Grande Timoneiro se tornara o Coveiro da Nação. Como se isso não bastasse, em 1977, é publicado na França Deuxième retour de Chine, de Claudie Broyelle, Evelyne Tschirhart e Jacques Broyelle, três militantes maoístas que repetem o gesto de André Gide nos anos 50 com Viagem à URSS, relatando sem rodeio sua frustração com a descoberta, in loco, dos horrores do Paraíso Socialista fantasiado a partir da Rive Gauche. Um mundo desaba ali, em espacial para os militantes que haviam largado carreira e família para sublevar fábricas com os ensinamentos do Livro Vermelho; a saída para alguns, o suicídio, as drogas, a errância.

Resta que, ao lermos os depoimentos desses maoístas dos anos 70, há um elemento que se tende hoje a subestimar. Muitos relatam de forma eloquente, como motivo de adesão ao movimento, uma impossibilidade muito concretamente sentida de seguir com sua vida normal na grande ou na pequena burguesia, uma vez conscientes de que existências inteiras transcorriam em fábricas insalubres, em condições por vezes duríssimas. Havia um sincero mal-estar em pensar-se como graduando de uma Grande École, com as dez, doze horas úteis do seu dia passadas mais ou menos agradavelmente em leituras, aulas, estudos e conversas em cafés, ao passo que, a 20 ou a 30 quilômetros do beau-monde parisiense, seres constitutivamente iguais a si mesmo, apenas nascidos em outra classe, viviam murados numa linha de montagem, voltando para casa à noite com a perspectiva de um dia seguinte absolutamente igual, até a decrepitude derradeira. A essa situação, o remédio da Grande Noite Revolucionária – um remédio altamente estetizado e em perfeito descompasso com as preocupações dos próprios operários – certamente era pior do que a doença, mas são indiscutíveis a elevação e a generosidade de sentimentos que alguns testemunhos desses militantes expressam.

Essa generosidade também serve a interrogar o pensamento liberal contemporâneo, sensível, e com razão, ao risco e à ansiedade do empreendedor, mas pouco prolixo quanto aos padecimentos da classe trabalhadora, quando não hostil a qualquer intervenção na relação entre trabalho e capital. Nisso ele não segue um movimento mais geral da sociedade contemporânea? Por que a indignação moral quanto à injustiça no trabalho, e sobretudo a indignação moral acompanhada de ação (por vezes com consequências graves para o próprio indivíduo), parece-nos algo de indefectivelmente vintage, impossível como uma calça boca-de-sino ou um filme com Sylvie Vartan?

Os índices de pobreza extrema têm indicado sensível deterioração do quadro social americano.

Um dado de contexto interveio, e ele não existia nessa amplitude em 68: o desemprego de massa. Não apenas ele pode deprimir os salários, mas também e sobretudo, diante da desagregação social causada pela desocupação, qualquer agenda que se queira solução ao problema tende a surgir como politicamente tentadora. Nesse sentido, pode-se por vezes falar do empreendedor menos como de um agente econômico benéfico do que de um benemérito: trata-se de alguém que dá emprego, quase como uma filantropia. Sem negar que a geração de empregos é de um fato um bem, como não observar que nos tornamos menos exigentes quanto à própria natureza do emprego dado? A boa educação recomenda não comentar os presentes. Contanto que as massas estejam ocupadas, pode-se tolerar muita coisa, inclusive operários forçados a usar fraldas descartáveis, como se reporta de tempos em tempos nos Estados Unidos. Sem retornar à fúria santa dos revolucionários de 68, que passou longe de melhorar as condições de vida dos trabalhadores (o mérito coube às ilusões reformistas e moderadas!), um pensamento liberal que se queira um humanismo deveria partir da constatação da realidade inaceitável dessas formas de violência contra o trabalho e elaborar propostas nos seus termos, sob pena de deixar aos adversários o monopólio das boas-intenções e de passar por simples ideologia de classe.

Rodrigo de Lemos é professor na UFCSPA (RS) e doutor em Literatura pela UFRGS.

Leia mais:

50 de maio de 68 – Parte 1

50 de maio de 68 – Parte 2

50 de maio de 68 – Parte 3

50 de maio de 68 – Parte final

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