por Caio Morau
Apresentar um diagnóstico sobre os tempos modernos, com uma linha de raciocínio clara e objetiva, capaz de dar ao leitor um panorama das grandes transformações históricas, filosóficas e teológicas sobre as quais se produziram os padrões de pensamento da modernidade, é tarefa árdua que tem sido levada a cabo com alguma perseverança.
No Brasil, Rafael Ruiz, Professor de História da América na Universidade Federal de São Paulo, apresentou recentemente uma contribuição corajosa que intitulou Alienação e Intolerância: um diagnóstico sobre os tempos modernos. [1]
A principal motivação para sua investigação é descobrir como terá sido possível, recorrendo à obra de Hannah Arendt, que uma sociedade que se autoproclama como um dos mais altos estágios da civilização ocidental tenha formado não apenas um, mas vários Eichmann, o famoso burocrata nazista responsável pela deportação de milhares de judeus para campos de concentração, a cujo julgamento Arendt pôde assistir.
Em busca de uma resposta, Ruiz estuda com profundidade as raízes da modernidade, elegendo como premissa a tese do historiador italiano Paolo Prodi [2] de que a “cultura ocidental” está intensamente fundada na tensão dialética entre o público e o privado, a consciência privada e a lei pública, a ética e a política.
Essa tensão foi evidenciada em um processo de secularização que teve lugar também no seio da própria Igreja, através de uma “revolução de Francisco de Vitória”, frade e teólogo dominicano que lançou as bases, aprimoradas pela Escola de Salamanca, para “a necessária separação das ordens ou esferas, dentro do mundo político e do moral e religioso, com ampla autonomia para cada uma delas, o âmbito espiritual e o âmbito temporal.” [3]
No século XVII, Hobbes e Locke, cujas ideias serviram de base para o Estado liberal burguês ou Estado de Direito, enxergavam com muitas ressalvas o papel proeminente da consciência individual, que figuraria como a causa de instabilidade do Estado. O remédio para curar essa realidade seria erigir a lei civil como canal da consciência pública.
Com Hobbes, a separação entre o público e o privado se intensifica: o campo do justo e do injusto nas relações humanas passa a ser o contratual. Não à toa, um século depois, um filósofo francês cunharia a famosa expressão Qui dit contractuel, dit juste. Em consequência, uma notável mudança: os atos importantes para a vida pública passam a ser os externos, ao passo que os internos, relativos à consciência pessoal, tornam-se relevantes apenas para o âmbito privado.
Uma das várias provas dos efeitos desse turning point é o fato de ser possível citar diversos exemplos de políticos que, ao se posicionarem sobre questões bastante controvertidas, dizem sem hesitar que pessoalmente acreditam em determinada visão mas que, publicamente, agem de maneira diversa – muitas vezes, oposta.
Essa ruptura é manifestamente incompatível com a tradição ibérica, que privilegiava as consciências individuais, por pressupor uma unidade e coerência de vida entre o que se adere internamente e o que se manifesta externamente.
A consciência, portanto, passa a ser tão-somente “uma convicção subjetiva, um ponto de vista privado, ou uma simples opinião”, de modo que, ainda para Hobbes, as leis morais obrigavam apenas internamente, mas não eram mandatórias para condutas externas. [4]
Nesse contexto, o autor sustenta que o Probabilismo moral e jurídico do século XVII figurou como uma resposta à cisão interior, que causou a divisão entre o indivíduo e o cidadão, procurando manter a unidade vital, existencial e de consciência da pessoa.
O Probabilismo, ao trazer a questão do provável para a seara moral, ao mesmo tempo em que foi duramente criticado por alguns setores, por ser muito “flexível” e “relaxado”, estimulava que o indivíduo meditasse sobre a adequação do que faria ou tinha feito, dando destaque ao aspecto subjetivo e íntimo da consciência, a que Ruiz chama de “interiorização da objetividade moral dos atos humanos.” [5]
Contudo, observando ainda a questão da justiça, pode-se afirmar que esse primado da liberdade de consciência, ainda que conjugado com diversos outros fatores, não resistiu ao longo do tempo, sobretudo diante da transição de uma “justiça de homens” para uma “justiça de leis.”
As leis, sobretudo a partir do século XIX, passaram a fazer às vezes, como já se disse, de uma “consciência pública”, passando os juízes a serem seus meros aplicadores. Nesse sentido, as leis é que sujeitavam os julgadores e não o contrário, realidade bastante diferente daquela vivenciada no mundo ibérico com o mos italicus, maneira de estudar e aplicar o direito que privilegiava a argumentação e a dialética.
Paralelamente, foi-se configurando outra notável mudança no seio da sociedade, com a eliminação da transcendência e a instalação de um imanentismo, substituindo-se a moral cristã por outra que poderia ser cunhada de republicana.
Desse modo, surge um novo sentido acerca da finalidade da vida. E o principal: sua plena realização deve se dar já na própria Terra. Essa pretensão utópica, propositiva de mudanças totalizantes em um futuro próximo, é materializada com toda uma gama de ideologias, com destaque para o liberalismo, o marxismo e o nacionalismo.
A teoria marxista, de modo especial, conseguiu se instalar de maneira bastante sólida no campo dos debates públicos, com tal força que os próprios termos em que estes se desenvolvem são por ela reforçados, sobretudo na dimensão gramsciana, constituindo “pares antitéticos de categorias”: direita e esquerda, fascista e democrático, conservador e progressista, atrasado e moderno. [6]
A consequência mais nefasta da consolidação das ideologias foi precisamente que o ato de pensar deixou de ser uma atividade livre do homem para se conformar a um padrão reducionista e deficiente em que se raciocina sempre a partir de balizas determinadas e princípios e categorias previamente definidos.
Daí a “clausura” de que se fala no título deste artigo. A contaminação das discussões em âmbito público por “pares antitéticos de categorias” as engessa de tal maneira que problemas complexos que demandam aprofundamento caem na vala comum da “rotulação” e o necessário debate se enfraquece.
Como a sociedade acabou por se amoldar à ideologia, seja ela de esquerda ou de direita, política ou religiosa, o penoso resultado que vem experimentando é a anulação da responsabilidade pessoal e a alienação da consciência.
O homem do nosso tempo, ao ignorar a grave tarefa de refletir, contentando-se apenas com o conhecer – e um conhecer, portanto, precário – abdica da sua condição de humano.
Deixar de pensar, refletir e elaborar um juízo moral torna os homens pequenos e futuros Eichmann. Esse amoldamento simplista aos esquemas ideológicos nada mais seria do que um enclausuramento, uma alienação de um dos bens mais preciosos de que dispõe o homem: a sua consciência.
O diagnóstico de Rafael Ruiz, apesar de bastante duro, já que se está diante de uma encruzilhada que se impôs com muita força, não deixa de vislumbrar um cenário otimista, consequência da sólida conjugação da fé e da reta razão do autor: “E acredito também que será a própria sociedade quem, como sempre aconteceu na História, acabará encontrando a sua saída. É uma questão de tempo, compromisso, diálogo e, principalmente, de afirmação e de defesa da liberdade da consciência individual.”
Caio Morau é Doutorando e Mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor da Escola Superior de Direito e assessor jurídico de Senador da República.
Notas
[1] RUIZ, Rafael. Alienação e Intolerância: um diagnóstico sobre os tempos modernos. São Paulo: Cultor de Livros, 2018. Todas as ideias apresentadas nesta breve resenha, como é natural, foram extraídas da obra referenciada.
[2] PRODI, Paolo. Uma História da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[3] RUIZ, Rafael, op. cit., p. 42.
[4] RUIZ, Rafael, op. cit., p. 47.
[5] RUIZ, Rafael, op. cit., p. 77.
[6] RUIZ, Rafael, op. cit., p. 126.