por Vinícius Müller
Há coisas óbvias que, às vezes, precisam ser ditas. Uma delas é que existem inúmeras maneiras de reconstruir a História. Ou ainda, que mesmo sob o maior esforço, método e quantidade de fontes, há sempre algo que nos escapa quando contamos uma história. Saber disso é condição para que continuemos buscando em nossa trajetória os elementos que nos identificam e explicam o modo como vivemos, e para que, mesmo com uma dificuldade imensa de mensuração, avancemos naquilo que respeita nossos anseios e objetivos. É como se o conceito de ciência aberta, proposto por Popper, fosse adaptado à História: cada vez que voltamos ao passado em busca de algo novo, temos a oportunidade de “falseabilizar” alguns itens de nossas hipóteses e modos de reconstrução de nosso passado.
Exemplos não nos faltam: será que o atraso do desenvolvimento brasileiro se deveu à excessiva dependência que tivemos em relação à economia primária-exportadora? Ou ainda, tamanho atraso resulta de nossa pouca capacidade de aproximar sistema educacional e ampliação da produtividade? Ambas são questões pertinentes que dialogam com nossos problemas atuais, mas que podem e devem ser entendidas ao longo de nossa trajetória histórica. E ambas podem nos dar respostas convincentes sobre o problema de nosso baixo desenvolvimento. Em alguns momentos já nos deram.
Nos anos 30 do século passado, criou-se com muito sucesso um modo de reconstruirmos nossa história e, principalmente, de entendermos nosso relativo atraso, a partir de uma fração da trajetória do país. Em resumo, localizava-se os problemas brasileiros a partir de uma categorização antagônica, representada por Portugal e Brasil, ou por Metrópole e Colônia, respectivamente. Como desdobramento lógico, a história brasileira foi entendida a partir da oposição entre senhor e escravo, elite e povo, agricultura e indústria. Do mesmo modo, em sua previsível vulgarização, entende-se ainda hoje como sendo a oposição entre homens e mulheres, ou entre esquerda e direita, ou entre qualquer coisa e outra ainda mais impertinente.
Essa abordagem, fartamente associada a Caio Prado Jr., mirou no que viu, mas acertou no que não viu. E, além de seus acertos, deixou um legado de equívocos que, por muito tempo e ainda hoje, nos dificulta no entendimento aprofundado de nossa sociedade. Por exemplo, houve na história construída por Prado Jr. um razoável desprezo pela formação e principalmente, manutenção de laços econômicos entre regiões do Brasil mesmo após a decadência da exploração aurífera em Minas Gerais o século XVIII. Para aqueles que entendem a História do Brasil a partir – e muitas vezes apenas a partir – da abordagem de Prado Jr., a manutenção de uma ampla rede produtiva e comercial interna durante o período colonial é contra o modelo que enfatiza a relação entre explorador (Portugal) e explorado (Brasil). Nessa relação, a riqueza é transferida do lado colonial ao lado metropolitano, não havendo, portanto, mecanismos de acúmulo e circulação na colônia.
Esse equívoco metodológico, histórico (e, por que não, ideológico) dificultou que dedicássemos a devida atenção à formação brasileira a partir dessa diferença; ou seja, regiões que se formaram ou parcialmente se desenvolveram a partir de relações internas de produção e troca apresentam características diversas, ao longo da história, se comparadas àquelas que majoritariamente se desenvolveram a partir da economia exportadora. E mesmo que em algum momento tais regiões tenham vivenciado mais significativamente a economia exportadora, os resultados de longo prazo foram diferentes. Ou seja, aquelas que se estruturaram, em princípio, no mercado interno, apresentam no longo prazo melhores índices educacionais, menores taxas de desigualdade e maiores de riqueza. Mesmo que tenham obtido maior riqueza em seus períodos de avanço da economia exportadora. É como se o ‘ciclo primário-exportador’, como gostava de identificar Caio Prado Jr., trouxesse resultados diferentes às regiões que, antes, tinham desenvolvido de modo mais consistente atividades voltadas ao mercado interno.
O mais surpreendente é que Caio Prado Jr., assim como Celso Furtado, e seus seguidores, compreendem a relevância do mercado interno para o desenvolvimento de uma colônia. Contudo, só a enxergam na trajetória dos EUA, a partir da clássica e parcial diferenciação que estabelecem entre as colônias do povoamento da Nova Inglaterra e as colônias de exploração do restante do continente. Não a veem no Brasil, pois se assim fizessem, o próprio modelo explicativo ruiria.
Interessante também é lembrar que, há décadas, muitos pesquisadores se debruçam sobre explicações e hipóteses alternativas ao modelo amparado nos antagonismos, como o de Prado Jr. E a formação e funcionamento do mercado interno estão entre os principais objetos daqueles que contribuem com essa superação. Todavia, nos manuais escolares ainda domina a hipótese do antagonismo, explicitando a dificuldade de romper alguns tabus no ensino da História do e no Brasil. E, consequentemente, reproduzindo um modo de entendimento de nossa História que, aparentemente por ser unânime, dá aos seus seguidores e reprodutores o direito de julgamento sobre a sociedade. Algo como ‘eu conheço a História, a única que existe e, portanto, posso julgar a sociedade a partir de uma posição que você, por não saber História, não pode. Assim, meu julgamento é melhor que o seu. Portanto, vá estudar História”. E essa versão da História é aquela que, ao se apegar no modelo do antagonismo de Prado Jr., explica apenas parcialmente a trajetória brasileira. Lamentavelmente para muitos, quando a História não se encaixa no modelo, errada está a história, não o modelo. Assim, continuamos a reproduzir tal modelo e nele ‘encaixar’ tudo o que queremos saber. Inclusive aquilo que ele, o modelo, não é capaz de explicar.
O antídoto a essa armadilha ficou mais forte nos últimos meses. A publicação de História da Riqueza no Brasil, de Jorge Caldeira, reforça a necessidade de olharmos para a História como tal, não como confirmação do modelo. Reforça também a superação da versão de Caio Prado Jr. Não porque a negue, mas porque a lê de maneira verdadeiramente crítica. Ou seja, achando os pontos nos quais ela magistralmente contribui, e os pontos nos quais ela deve ser superada. Caldeira assim desenvolve seu texto, assumindo uma postura independente em relação às escolas e métodos que, mesmo úteis, nos aprisionam. Não que isso, ou tudo aquilo que está na obra, sejam novidades. Mas, Caldeira sistematiza e torna mais inteligível, inclusive, ao público leigo. Um louvável esforço de public history.
Se, como disse no começo do artigo, algumas coisas mesmo óbvias devem ser ditas, essa é uma delas: todas as escolas e cursos de História deveriam adotar o livro de Jorge Caldeira e apresentá-los formalmente aos alunos. A História do Brasil precisa ser vista a partir de pontos de vistas diferentes e não podemos mais ter o pudor de apontar, em público amplo, os equívocos da versão legada por Caio Prado Jr. Hoje, quem melhor sistematiza esses outros pontos de vista é a obra de Caldeira, a História da Riqueza no Brasil.