por Heloisa Pait
A um quilômetro e pouco da bela Lagoa da Pampulha de Niemeyer e Juscelino fica o Museu da História da Inquisição, o único devotado especificamente às perseguições aos hereges no Brasil. O contraste é imenso. A alegria que ainda mora na casa de Juscelino, a doçura da Capela da Pampulha e a singeleza moderna da Casa de Baile habitam outro mundo que o da desconfiança e da delação inquisitorial. O próprio museu, financiado por doações de mineiros descendentes de judeus conversos que retornaram às suas raízes, não evoca crimes e sofrimentos: ele tem o ambiente de um pequeno instituto de pesquisa, com funcionárias jovens, uma pequena biblioteca e a exposição clara e bem disposta, bem diferente do seu homólogo em Lima, no Peru, cuja visita é ela própria uma tortura.
Mas houve Inquisição no Brasil? A amiga estrangeira a quem eu mostrava o país me garantiu que não, que na escola ela havia aprendido apenas sobre a perseguição espanhola. O historiador que conheci em Ouro Preto também estava certo que no Brasil a Inquisição tinha sido leve – como nossa dita-branda, talvez? Outra pesquisadora me recomendou: não vá nesse museu, não vale a pena. O Brasil tem essa mania de apagar da memória as partes mais inconvenientes da história. Ainda que tenhamos feito alguns progressos no que diz respeito a outros traumas, o da Inquisição continua, de certo modo, sagrado e secreto como em seu começo.
Seguindo o exemplo espanhol, a inquisição portuguesa começa em 1536, numa espécie de joint venture da Coroa, em busca de centralização e domínio político, com a Igreja. Foram perseguidos judeus e bruxas; bígamos e quem tinha parte com o Diabo; críticos da própria inquisição e hereges já mortos, que eram difamados e tinham bens confiscados. No Brasil, a repressão se intensifica a partir do final do século XVI, com o domínio espanhol, e afeta todo o país, do Pará a São Paulo, de Pernambuco a Goiás, e todas as classes sociais, inclusive o próprio clero. Paradoxalmente, ela tem seu auge no século XVIII, o chamado “século das luzes”, e alcança até estudantes brasileiros em Coimbra, terminando apenas no século XIX, com os últimos pedidos de investigação.
Aliada dessa perseguição toda foi a proibição da impressão no Brasil, que perdura por todo o período colonial até a transferência da Coroa para o Rio de Janeiro – impossível combater a heresia sem o controle rígido dos meios de comunicação. É difícil dizer quantos judeus se converteram ao cristianismo nesse período, mas ajuda a pensar nas proporções o fato de que a expulsão dos judeus da Espanha e depois de Portugal impulsionou a vinda para a colônia: mais de um em cada cinco europeus era, no período colonial, cristão-novo. Para ter cargos públicos ou na Igreja, era preciso passar por um teste genealógico que garantisse a linhagem cristã do candidato. O estigma do judaísmo afetava mesmo os que não o eram: provar-se cristão passa a ser condição para a vida social e, ao contrário, afiliar-se a certas concepções judaicas denota rejeição do status quo.
Materialmente, a vida judaica no Brasil deixou poucos traços. Neste museu está exposto, de original, apenas um candelabro cuja sombra projetada forma uma estrela de Davi, antigo símbolo judaico. De antigas sinagogas brasileiras temos pistas, mais que certezas. A primeira impressão que se têm é que essa cultura milenar chegou ao Brasil e evaporou. Os pesquisadores buscam traços, histórias fragmentadas, costumes passados de geração em geração para mapear a precária vida judaica colonial, além, é claro, das descrições contidas nos próprios registros inquisitoriais. O passado judaico sobrevive também na vida dos descendentes de conversos, os chamados Bnei Anussim, que aos poucos voltam, em especial no Nordeste e em Minas, às suas raízes. Eles são as testemunhas de um crime não apenas contra seus antepassados, proibidos de exercer a liberdade de culto, mas contra o país: a proibição sistemática e oficial do pensamento diverso, do que é novo e vem de fora, e do que é racional.
Se a vida judaica colonial exige esforços para ser resgatada, sua contraparte, nosso histórico de supressão de ideias, apoiado pela censura do Estado – nosso passado inquisitorial –, é este sim rico e documentado. Com a exceção do período imperial, e em particular do longo reinado de D. Pedro II, a censura marcou nossa vida cultural e política. Ela andou de braços dados com ideias de progresso e desenvolvimento, minados por ela mesma, em diversos momentos: Pombal era modernizador e censor; Vargas prendeu e criou indústrias; os generais torturaram e impulsionaram a TV. Aqui, e na América Latina em geral, os apelos ao controle dos meios de comunicação vêm de setores progressistas, que invocam o bem público e a justiça social, como no passado invocou-se a pureza do espírito e a salvação da alma. Determinar o que outros pensam e dizem, no Brasil, ainda é coberto por um manto de santidade.
Nas salas de aula, dos cursos primários aos de pós-graduação, esse manto é asfixiante. Como professores, ao invés de estimular perguntas, caçamos heresias. Ao invés de contrastar ideias, elegemos autores malditos, cada disciplina com seu Diabo próprio (para uns Piaget, para outros o liberalismo ou o positivismo) que legitima por contraste a pureza da doutrina certa (respectivamente Vigotski, o pós-keynesianismo ou o marxismo). Ao invés de buscar inovação, exigimos devoção; e ao invés de pesquisa, fé. Diante de cada menina no ensino primário que levou bronca por confrontar a professora, quando apenas expressava uma dúvida, e de cada aluno reprovado por não aceitar os dogmas dos mestres, quando apenas seguia sua intuição científica, emerge o espírito da inquisição, vivo e forte, aguardando o combate duro que nunca aconteceu.
Ao retornar, é verdade, na minha mente ficaram mais fortes as imagens da Pampulha ensolarada do que as dos retratos dos autos-da-fé. Espero que o embate com nosso passado se faça com o sarcasmo de nossos críticos, mas também com o otimismo de nossos democratas. Que se faça com a força de nossa economia, sem deixar de lado a poesia de nossa arte moderna – a Pampulha inspirando o melhor de nós.
Para saber mais:
– A Inquisição, de Anita Novinsky, Brasiliense, 1982.
– Os judeus que construíram o Brasil, de Anita Novinsky, Daniela Levy, Eneida Ribeiro e Lina Gorenstein, Planeta, 2015.
– Ensaios sobre a intolerância: inquisição, marranismo e anti-semitismo, de Maria Luiza Tucci Carneiro e Lina Gorenstein, Humanitas, 2005.
– Museu da História da Inquisição, Rua Cândido Naves 55, Belo Horizonte-MG.