“A Bolsa e a Vida” de Bolsonaro

A ‘pedra no caminho’ de Bolsonaro já está no meio da sala. O irônico é que por ser aquele que, para parte significativa da população, é o que de mais medieval podemos ter, Bolsonaro se complica por insistir numa divisão que a leitura do medievalista Jacques Le Goff já nos contou ser imprudente.

por Vinícius Müller

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Existe uma máxima referente às eleições à presidência norte-americana que diz que vence o pleito aquele ou aquela que tiver, sob sua responsabilidade, o menor número de mortes e o maior número de empregos. Assim, concorrentes à reeleição que tenham se envolvido com conflitos militares muito longos ou que sejam relacionados a crises econômicas muito profundas apresentam reais dificuldades de vencerem as eleições ou de terem seus sucessores ou sucessoras eleitoralmente viáveis.

Esta possibilidade foi lembrada durante a presidência de Donald Trump. Afinal, ao contrário do que muitos esperavam de seu mandato, os EUA não se envolveram em grandes conflitos militares e tiveram alguns resultados econômicos que, ao menos no curto prazo, pareciam ser positivos. Principalmente em relação ao emprego. Por isso, não obstante a radicalização da guerra cultural em boa parte estimulada por Trump, seus arroubos neopopulistas e, no limite, suas declarações que flertavam com movimentos de supremacia e outros que estão entre as mais nefastas tradições do país do norte, Trump parecia ser um candidato imbatível em sua tentativa de reeleição.

Contudo, o jogo mudou. O assassinato de George Floyd se mostrou equivalente ao número de mortos numa guerra. A escolha de Biden e de Harris — e não de Sanders — para a candidatura democrata reposicionou o partido dos Clinton, e a inacreditavelmente estúpida e irresponsável resposta de Trump ao avanço da covid-19 revelou o que de mais arcaico a sua administração representava. Diria, pelo negacionismo, algo próximo ao que genericamente chamamos de medieval.

Medieval inclusive é o tema de “A Bolsa e a Vida”, do já falecido Jacques Le Goff (Ed Brasiliense, 2004; edição original de 1986). Obra curta do genial historiador francês, o livro volta-se ao escrutínio do conceito de usura e como ela esteve envolvida com as origens medievais do capitalismo. Um modo muito interessante de associar História, Sociologia, Mentalidades e Economia — e também de mostrar como a dificuldade em flexibilizar algumas ideias e conceitos pode resultar em problemas que transbordam suas origens. No caso apresentado por Le Goff, a dificuldade era dos católicos, que, em sua dimensão institucional, insistiam em moralmente hierarquizar o juro, o lucro e a usura, demonstrando o conflito entre o tempo da Igreja e o tempo do mercado no outono medieval. Tamanha hierarquização não se resumiu ao resultado conflituoso entre o tempo de Deus e seu uso pelo mercado, mas também em um hiato operacional que foi ocupado pelos judeus, retroalimentando o preconceito tanto em relação à atividade financeira quanto aos seus operadores.

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Jacques Le Goff

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Estas são boas lições ao Brasil de Bolsonaro. Questionado meses atrás tanto sobre uma suposta ameaça à democracia quanto às chances do atual presidente na reeleição, eu respondi que não me parecia ser este o ponto que influenciaria decisivamente a próxima eleição presidencial, e sim a maneira que Bolsonaro usaria a seu favor alguns itens políticos que me pareciam fundamentais, como a posição do DEM, dos governadores e, principalmente, das respostas que daria simultaneamente à crise econômica e à pandemia.

O primeiro item, aparentemente, foi favorável à Bolsonaro, afinal, a ‘pedra no caminho’ parecia ser o então presidente do Congresso, Rodrigo Maia e seu potencial parceiro, o governador paulista João Doria. Ambos, meses depois, parecem bem mais fracos do que eram.

Contudo, nos dois últimos casos a resposta foi a mais equivocada possível. A insistência em opor a sobrevivência econômica ao rigor das medidas de saúde pública se mostrou contraproducente e fruto de um entendimento equivocado e de curta duração. O custo, tanto econômico quanto humanitário — a bolsa e a vida — transbordam a possibilidade de gerenciamento da economia pelo governo sem provocar uma crise de três possibilidades: expansão inflacionária, irresponsabilidade fiscal ou crise social aguda. E o negacionismo, dado o avanço tanto da pandemia quanto do conhecimento que acumulamos sobre suas causas, perde parcialmente seu poder de sedução sobre uma população que se vê cada vez mais próxima do vírus.

A ingenuidade de Bolsonaro em achar que o ‘mercado’ manterá seu apoio, principalmente após a ampla possibilidade de ter o ex-presidente Lula como adversário em 2022, se esvai. O que quer que seja este ‘mercado’ ele sabe desde o final da Idade Média que este conflito entre o tempo dos negócios e o tempo institucional não lhe é favorável quando não encontra um preço de equilíbrio que os aproxime mais do que os repila. Em outros termos, ao opor a questão da saúde à economia, Bolsonaro criou uma armadilha para si mesmo que, a qualquer desequilíbrio e/ou fato novo, o pressiona ainda mais. O desequilíbrio são as novas variantes do vírus, mais impactantes e mortais. O novo fato é a volta de Lula.

Achar, a esta altura, que o ‘mercado’ o apoia ante a possibilidade real de ascensão de Lula é desconhecer o básico do que é a economia capitalista, tanto em sua dimensão conceitual quanto à sua história e, principalmente, à sua especificidade brasileira. O dito ‘mercado’ será o primeiro a negociar apoio a Lula e o ex-presidente sabe disso.

Portanto, assim como dizem lá nos EUA, o aumento das mortes relacionadas às guerras e o aumento do desemprego é a senha para a não reeleição. Trump foi atropelado também por isso.  A ‘pedra no caminho’ de Bolsonaro já está no meio da sala. O irônico é que por ser aquele que, para parte significativa da população, é o que de mais medieval podemos ter, Bolsonaro se complica por insistir numa divisão que a leitura do medievalista Jacques Le Goff já nos contou ser imprudente. A bolsa e a vida não são antagônicas e sim complementares e interdependentes.  Aliás, “A Bolsa e a Vida” também é titulo de obra do genial Carlos Drummond de Andrade (Cia. Das letras, 2012; edição original de 1962).  Pode ser coincidência. Mas quem acredita em coincidência é suscetível ao negacionismo. Eu não sou.

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Drummond

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