Alguém aí se lembra do pré-sal?

Por Vinícius Müller, a História como Presente, num país de longa tradição de análises sobre desenvolvimento que aposta, com aderência quase religiosa, em dicotomias como parâmetros do sucesso e dos identificáveis fracassos em nossa trajetória.

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A História como Presente: Alguém aí se lembra do pré-sal?

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por Vinícius Müller

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Há uma longa tradição nas análises sobre o desenvolvimento brasileiro que aposta, com aderência quase religiosa, no estabelecimento de pares dicotômicos como parâmetros tanto do sucesso quanto dos identificáveis fracassos em nossa trajetória.

É assim na oposição entre metrópole e colônia, litoral e interior, campo e cidade, mercado externo e interno, matérias-primas e indústrias, estado e mercado, latifúndios e reforma agrária.  Todas elas amplamente usadas como fundamentos em nossas muitas vezes caóticas tentativas de entendermos, afinal, os motivos de nossa baixa compatibilidade histórica com o desenvolvimento. Anos atrás esta versão apareceu na insana aposta de que reservar mercado para elementos nacionais voltados à exploração do pré-sal, inclusive mão de obra, era o melhor a fazer ante o ‘entreguismo’ que arruinaria nossa oportunidade de desenvolvimento a partir do ‘ouro negro’ enterrado sob o Oceano Atlântico.

Embora muitas vezes este modo de entendimento ainda se sobressaia, certamente muito já se avançou nas tentativas de flexibilizar tais amarras — até porque não só as pesquisas ficam cada vez mais profissionalizadas, mas também porque basta que avancemos um pouco em nossa capacidade de pensarmos criticamente para percebermos o quão distantes ficaremos de nossos objetivos se continuarmos a insistir com essas falsas oposições.

Uma interessante flexibilização reside na identificação e compreensão de certo ‘transbordamento’ entre as atividades e regiões. Por exemplo, a ampliação da produção açucareira teria ‘expulsado’ o gado de dentro ou do entorno dos engenhos litorâneos de modo que a criação animal, ainda que mantivesse — e reforçasse — seus vínculos com a produção agrícola, se deslocava para regiões interioranas do sertão do nordeste ao longo dos séculos XVII e XVIII. Ou quando a exploração aurífera de Minas Gerais possibilitou a formação de uma hinterland fundamentalmente comercial que a ligava ao extremo meridional da colônia, passando por São Paulo e Paraná. A mesma mineração que justificou a intensificação do relacionamento entre o litoral — o Rio de Janeiro, distribuidor de escravos — e o interior. E assim podemos identificar o transbordamento do café do interior de São Paulo em direção à indústria. Ou da indústria estatal que promoveu, entre outras coisas, o ‘transbordamento’ da mão de obra do norte e nordeste para centros urbanos do centro-sul; e mesmo da indústria multinacional de Juscelino que ‘transbordou’ para a indústria privada e doméstica de autopeças e de construção civil —– empreiteiras inclusas — nos anos 50 e 60 do já longínquo século XX.

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Pintura retratando a lavra do ouro em primeiro plano e Vila Rica ao fundo (Rugendas, 1820-1825)

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A lista é imensa, tanto quanto a de patetices que ainda dominam salas de aulas pelo país afora (ou adentro) e que repetem, como papagaios, a velha e boa — mais velha do que boa — dicotomia ‘colônias de exploração’ e ‘colônias de povoamento’ para explicar a instransponível diferença entre os resultados brasileiros em longo prazo e os dos nossos vizinhos do norte do continente. Contudo, o tempo da atualidade parece ser adequado para um questionamento dos itens que compõem tanto nosso viciado olhar de ‘oposição’ quanto o mais complexo do ‘transbordamento’.

Isso porque os resultados de médio prazo do que chamamos de globalização e os de curto prazo impactados pela pandemia nos pressionam por outras interpretações ou, no mínimo outros ‘transbordamentos’, se quisermos ter o mínimo de dignidade no futuro próximo.

Entre eles está o avanço do eixo que integra o interior de São Paulo, o centro-oeste e partes do nordeste, incluindo o sul da região norte. Ele é, contraditoriamente, o sucesso e o fracasso dos efeitos da reorganização da economia internacional nas últimas décadas.  Sucesso porque é ele que se mantém, junto com a incrível consolidação do setor bancário-financeiro após a ‘limpeza’ de meados dos anos 90, como não só a maior resistência, mas como a liderança da participação nacional no sistema econômico ampliado pela globalização. Fracasso porque demora demais para ‘transbordar’ seu sucesso para outras atividades e setores que serão ainda mais fundamentais para a perenidade desta posição.

A dúvida é sobre os motivos de tamanha demora. Apostaria um dedo das mãos na hipótese de que ela se deve à insistência da mentalidade de ‘oposição’, que não deixa muitas brechas para que identifiquemos, entendamos e projetemos as relações positivas entre os setores econômicos, políticos, e também dos planos culturais e mentais, que podem surgir do ‘transbordamento’ deste novo eixo em direção aos outros que podem daí surgir. E, mais importante ainda, entre os ‘antigos’ eixos, setores e mentalidades que lideraram o desenvolvimento no século passado e este que vem pedindo passagem, com acelerada velocidade, nas últimas três décadas.  Ou seja, de que não é tempo de pensarmos como o setor primário- agrícola vai ‘transbordar’ em favor da indústria, dos serviços e da educação como, em tese, ocorreu no último século e meio.  Mas, ao contrário: como a indústria, os serviços e a educação vão ‘transbordar’ o que acumularam e concentraram em regiões urbanas e metropolitanas em direção e benefício deste outro eixo agrícola-exportador.

Os outros nove dedos das mãos apostaria na hipótese de que, em consonância com a anterior, não há nenhuma liderança sendo preparada para assumir esta reorganização estratégica do país. Entre as lideranças empresariais e econômicas sobra reclamação — muitas vezes coberta de razão — do custo Brasil. E, com especial dedicação, desejos voltados à reedição de estratégias protecionistas que, se no papel ou em experiências práticas de outros países foram bem-sucedidas, no Brasil promoveram tanto ou mais regresso e manutenção de práticas nefastas do que resultados positivos. A lista é imensa e passa pelas velhas, viciadas e, temo que para muitos perdoáveis, políticas de campeões nacional, rent-seeking e relações obscuras entre a iniciativa privada e a pública.

No plano político, compreensivelmente tomado pelos debates de curto prazo, não se conjuga a possibilidade de que esta reestruturação econômica e regional possa precipitar uma reorganização dos acordos e alianças de modo a rompermos a armadilha preparada com o caldo do populismo mais mesquinho que nos sobrou das experiências autoritárias do século XX. Ou seja, o varguismo lulista e o udenismo bolsonarista que, por ora, nos emparedam em um corredor estreito em direção às eleições do ano que vem e também, possivelmente, às próximas.

Esta incapacidade do espectro político-partidário de reposicionar suas lideranças neste sentido apenas confirma, entre partes das elites culturais e intelectuais, a versão de que a explicação para nossos históricos problemas continua vinculada à abordagem da ‘oposição’. E que insistir nessa gangorra é justificável desde que o ‘lado certo’ se imponha. Assim, ela dá continuidade a seu tradicional entendimento binário e dicotômico sobre nossa trajetória, não percebendo — ou se negando a perceber — que esta abordagem, não obstante sua relevância, não dá conta dos problemas atuais e, por isso, não nos ajudará a resolvê-los.

A qualidade da sobrevida que teremos dependerá do modo como, agora, estabeleceremos um entendimento e, a partir dele, ações e projetos, que relativizem a ‘oposição’ em beneficio do ‘transbordamento’ e de suas direções.  Caso contrário, perderemos mais uma vez a oportunidade de perenizar as poucas boas oportunidades que temos. Ou alguém ainda se lembra do pré-sal?

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