por Vinícius Müller
Entre as várias dificuldades que aqueles que lidam com a História enfrentam, duas se apresentam como centrais. Uma está relacionada com a tentativa quase viciante de enxergar no passado as motivações dos problemas que enfrentamos no presente. Nesse caso, o cuidado está em buscar tais motivações pretéritas, identificando as permanências, mas evitando pressionar o passado a ponto de enxergar nele problemas que são nossos, atuais, mas não eram daqueles que lá viviam. Ou seja, julgar com os olhos de hoje o que ocorreu em contexto muito diferente e em algum momento no passado. A segunda dificuldade reside na escolha de quais os itens realmente compõem a trajetória de continuidade e em que momento do passado os identificamos. Quando e onde estaria a origem dos nossos problemas atuais? Na antiguidade? Na chegada dos portugueses em 1500? Na proclamação da República? Quais são exatamente os itens que desde então se reproduziram e que, de algum modo, estão na origem de nossos problemas?
Por exemplo, passamos muitas décadas acreditando que alguns dos problemas brasileiros do século vinte tinham origem no período colonial. Por isso, buscávamos na colônia elementos que pudessem explicar, com certa continuidade e coerência, as agruras do presente. Assim, nosso relativo atraso econômico e de desenvolvimento seria fruto de um certo modelo produtivo e social definido pelo papel agrário exportador assumido desde a origem do controle exercido aqui pelos portugueses. Desta forma, a resolução de nossos problemas passaria pela diminuição ou destruição de tudo aquilo que estivesse relacionado à agricultura de exportação e às grandes propriedades rurais.
Outro exemplo é aquele relacionado às desigualdades entre as regiões brasileiras. Elas teriam resultado , segundo algumas análises, da combinação entre a excessiva centralização do poder em mãos do Império brasileiro ao longo do século dezenove e da maneira como o governo central se comportava em relação à sua fiscalidade. Ou seja, como e sobre quais atividades o governo central recolhia seus tributos e como, em qual quantidade e para quais atividades e regiões, o mesmo governo central gastava seus recursos fiscais. Certamente, a questão da fiscalidade está entre as mais relevantes para o entendimento sobre a formação dos estados nacionais, para os padrões de desenvolvimento econômico dos países e para o entendimento sobre a relação política entre os atores sociais e os agentes públicos. Quem e quanto paga de imposto pode revelar uma miríade de conexões políticas que sustentam parte significativa dos governos e dão sentido aos inúmeros estudos sobre o entrelaçamento entre a questão fiscal, o desenvolvimento econômico e o poder político.
O problema aqui reside em outras questões. Duas delas se entrelaçam. A primeira é a aceitação de que a excessiva centralização imperial é indiscutível. A segunda, é que desta forma o desenvolvimento das regiões brasileiras só pode ser entendido a partir do relacionamento estabelecido por cada uma delas com o governo central. Assim, as mais evidentes diferenças do desenvolvimento entre as regiões brasileiras, vistas no século vinte e insistentes até hoje, seriam frutos do modo como o governo imperial se comportou em relação à retirada de recursos sob forma de imposto e aos repasses feitos por ele às regiões nacionais. Em outros termos, o Império, radicalmente centralizado, teria usado seu poder fiscal para definir quais atividades e regiões seriam mais prósperas, quais seriam decadentes, quais seriam menos desenvolvidas, quais seriam mais dependentes. Evaldo Cabral de Melo diz, com todas as letras e reverberando discurso de Tavares Bastos, que a transferência de saldos fiscais do nordeste brasileiro ao governo imperial voltou-se ao financiamento do desenvolvimento do Centro-sul (O Norte e o Império. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999). O Sul e o Sudeste, então, teriam se tornado mais prósperos a partir de meados do século dezenove pelas transferências que receberam do governo imperial e às custas da região Nordeste.
Esta situação de exploração da região Nordeste pelo Centro-sul, que ocorria sob o auspício do governo central, teria chegado ao seu auge, contraditoriamente, durante o período inicial da República brasileira (1894-1930), quando paulistas e mineiros dominavam a política nacional. A solução aos problemas da gritante desigualdade regional passaria, então, pela diminuição do poder político dos estados do Centro-sul em favorecimento do Nordeste e/ou pela adoção de política de transferências e repasses feita pelo governo nacional às regiões menos favorecidas em detrimento das regiões que no passado imperial foram privilegiadas pela distribuição de recursos fiscais. Em termos mais agressivos, o Centro-sul teria uma dívida histórica junto ao Nordeste, pois a decadência de regiões como Pernambuco e Bahia em relação à ascensão de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul teria sido patrocinada por uma política deliberada e controlada pelo governo central do Império para promover tal distorção e mantida durante a república para reproduzi-la.
Contudo, não obstante a centralização imperial, nem todas as decisões referentes aos elementos que hoje entendemos como relevantes ao desenvolvimento de longo prazo estavam em mãos do poder central. O que significa, portanto, que tal centralização não era tão excessiva a ponto de retirar de cada região a responsabilidade e a autonomia sobre alguns itens que se revelaram, no longo prazo, determinantes para o desenvolvimento. Entre eles a educação básica.
Quando confrontados pelos dados, descobrimos que a transferência de recursos do Nordeste ao Centro sul durante o Império brasileiro só foi favorável ao Rio de Janeiro. E que, em relação aos saldos fiscais (o que o governo central arrecadava em razão de quanto repassava para cada região), as províncias do Centro Sul foram tão ou mais ‘exploradas’ pelo Império que as províncias do Nordeste. A exceção foi a cidade do Rio de janeiro, sede do Império e capital do país até 1960. Deve ser por isso que o atual govenador do Rio de Janeiro identificou como causa dos problemas que enfrenta o fato do Rio de Janeiro ter deixado de ser a capital após a fundação de Brasília!
Além disso, também descobrimos que o comportamento de cada região brasileira apresentou inúmeras diferenças, tanto quantitativas quanto qualitativas, quando comparamos como cada uma enfrentou questões que estavam sob suas responsabilidades. Entre 1850 e 1930 o percentual orçamentário efetivado pela província (e, após 1889, estado) do Rio Grande do Sul com educação básica – item que, desde 1824, estava sob a responsabilidade das províncias e que, após a proclamação da República assim continuou – foi de aproximadamente 15%. No mesmo período, Pernambuco investiu, em média, 4% de seu orçamento na educação básica. O resultado foi que, mesmo baixo para os padrões internacionais, o estado meridional apresentava em 1930 um índice de crianças em idade escolar matriculadas em escolas públicas duas vezes maior do que em Pernambuco. Em números aproximados, 30% no Rio Grande do Sul, 15% em Pernambuco.
Portanto, se hoje identificamos a educação escolar como determinante do desenvolvimento econômico e social do país, o modo como cada região brasileira se comportou em relação à educação ao longo de períodos extensos pode nos indicar muito mais sobre a origem e a persistência das desigualdades entre os estados do que a versão que afirma que o governo central foi responsável pela decadência de algumas em favorecimento de outras. A desigualdade econômica, e principalmente a educacional, não é fruto exclusivo de uma política central que escolheu quem seria prejudicado e quem seria beneficiado, mas sim de como cada região se comportou no longo prazo em relação ao que hoje parece ser identificado como fator dos mais relevantes ao desenvolvimento: a educação básica.