O projeto 3 x 22, iniciativa da Universidade de São Paulo que conta com a parceria do Instituto CPFL e do Sesc-SP, busca promover o debate histórico, artístico, cultural e político em torno do Bicentenário da Independência do Brasil e do Centenário da Semana de Arte Moderna a serem comemorados em 2022. Como parceiro do Instituto CPFL, o Estado da Arte promoverá uma série de artigos, podcasts, textos clássicos e entrevistas dedicados a reflexões sobre temas nacionais.
por Vinícius Müller
A Independência do Brasil e suas turbulências – tanto em seu processo quanto nos momentos imediatamente posteriores – revelaram, mais do que alguns de nossos itens constitutivos, as abordagens e dilemas que marcariam boa parte de nossa História e de nossos problemas.
Já passara quase uma década do sete de setembro, momento simbólico da ruptura com a antiga metrópole, e o país vivia em um pêndulo que oscilava entre a euforia e a depressão. Com a abdicação do imperador, o português Pedro, finalmente se consolidava a independência. Por outro lado, aquele que representaria tal consolidação, o brasileiro Pedro II, contava em sete de abril de 1831 (data da abdicação de seu pai ao título de Imperador do Brasil) com pouco menos do que seis anos completos. Entre a ausência de um imperador português e a impossibilidade de coroação do ainda infantil imperador brasileiro, o período regencial (1831-1840) tinha a tarefa de organizar o país até que Pedro II pudesse assumir, de facto, a Coroa. Contudo, a regência representou mais do que isso, ao revelar alguns daqueles que estariam entre os problemas matriciais do país.
No mesmo ano em que começou, logo em seus primeiros momentos, a regência viu ser aprovada a lei que, em tese, encerrava o tráfico negreiro. Fruto de um embate anterior, esta lei – conhecida como aquela ‘para inglês ver’ – resultara de um antigo enfrentamento entre D. Pedro e a Assembleia. Logo após o sete de setembro, o então imperador iniciou uma conversa com os britânicos acerca da transferência dos tratados assinados entre Portugal e a Grã-Bretanha ao Brasil. Ou seja, debatiam se valeriam ao país recém- independente os acordos que a antiga metrópole lusitana assinara com a potência bretã. Desta conversa emergiu o reconhecimento britânico à independência brasileira, assim como a renovação dos tratados de 1810. Além disso, novos arranjos comerciais e diplomáticos relativos à entrada de produtos brasileiros no mercado britânico, notadamente a cana de açúcar, e o comprometimento brasileiro com a proibição do tráfico negreiro.
Contudo, tal acordo foi estabelecido pelo imperador sem a anuência da Assembleia, o que expôs a fratura entre os poderes de Pedro I e parte significativa da elite brasileira. Este conflito acerca da legitimidade do imperador em estabelecer um acordo internacional sem consentimento da Assembleia (ainda mais sendo sobre tema tão caro à História brasileira, como era o tráfico de cativos e a escravidão) foi parcialmente resolvido com a Lei de 1831, que confirmava o acordo com a Inglaterra; mas, o fazia por uma lei aprovada pelo Legislativo.
Concomitantemente, outro problema surgia no horizonte do governo das regências. Com a saída do antigo imperador, um dos grandes temas emergentes se relacionava com a definição sobre o modelo político-administrativo para um país com dimensões continentais. Mais do que isso, um país cujo imenso território se mantinha unificado sob uma costura amplamente atribuída à Monarquia e ao monarca. Um país tão grande e com tantas diferenças entre suas regiões seria, para alguns, melhor administrado se houvesse uma desconcentração do poder tanto em sua horizontalidade (entre Executivo, Judiciário e Legislativo), quanto em sua verticalidade ( entre Império, províncias e municípios).
Estes dois encaminhamentos, a lei anti- tráfico e a descentralização política – administrativa, revelavam, no início do governo regencial, a preponderância dos chamados liberais moderados. E tratavam daqueles que se consolidavam como os itens centrais da matriz formativa do país: a escravidão e a unidade territorial. Entre os Liberais Moderados estava Bernardo Pereira de Vasconcelos, advogado, jornalista e político de Minas Gerais e um dos mais fervorosos defensores das medidas liberais do início do período regencial. Medidas que foram, em seu auge, representadas pela Reforma Constitucional de 1834, também conhecida como Ato Adicional.
Entretanto, os dois movimentos dos liberais moderados não eram lineares. Enquanto a decisão sobre o fim do tráfico se mostrava de difícil execução e cuja resistência se amparava, até mesmo, no desonesto argumento de que proibir o tráfico negreiro era se ‘curvar’ ao imperialismo britânico, a descentralização foi implementada, mesmo que confrontada pelas revoltas separatistas que tomavam o país, do Rio Grande do Sul ao Pará. Neste contexto, Vasconcelos proferiu seu famoso discurso:
“Fui Liberal; então a liberdade era nova no país, estava nas aspirações de todos, mas não nas leis, não nas ideias práticas; o poder era tudo: fui liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade: os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram; a sociedade que então corria risco pelo poder, corre agora risco pela desorganização e pela anarquia. Como então quis, quero hoje servi-la (a sociedade), quero salvá-la, e por isso sou regressista. Não sou trânsfuga, não abandono a causa que defendi, no dia do seu perigo, de sua fraqueza: deixo-a no dia em que tão seguro é o seu triunfo que até o excesso a compromete. (…) O perigos da sociedade variam, o vento das tempestades nem sempre é o mesmo: como há de o político, cego e imutável, servir ao seu país?”¹
A abrupta mudança de Vasconcelos, da posição de defesa intransigente da causa liberal para a liderança da causa ‘regressista’ e conservadora, é vista por parte considerável da historiografia como símbolo do mais significativo exemplo do arranjo feito pela elite mais dominante: em favor da manutenção da escravidão. De fato, a transformação de Vasconcelos veio acompanhada da defesa dos interesses dos proprietários de escravos, atribuindo ao fim do tráfico – e a consequente extinção da escravidão – o desordenamento da economia e da sociedade oitocentista brasileira. Isto foi, aparentemente, o suficiente para colocarmos Vasconcelos em certo ostracismo da História, dando a ele, no máximo, o desagradável posto de líder do conservadorismo escravista.
Porém, sua abjeta posição em favor da manutenção do tráfico (ou, no mínimo, em favor do adiamento do debate sobre o fim do tráfico e da escravidão), esconde dilemas e ponderações maiores que, de algum modo, são reveladoras de traços mais duradouros da História Brasileira. Entre os ganhos de curto prazo embutidos na manutenção do tráfico e da escravidão e os ganhos de longo prazo da manutenção da unidade territorial optou pela conciliação que entendia ser possível entre eles. Sacrificou o debate de origem liberal sobre a extinção do tráfico, pois pensava que assim inverteria a posição de muitas lideranças então envolvidas com as rebeldias que explodiam pelo país e ameaçavam a unidade nacional. Entendeu, também, que sua convicção anterior, voltada à defesa da descentralização política – administrativa colocara o que parecia inegociável em risco: o país, após as medidas liberais da primeira metade do período regencial fragmentava-se em sucessivas revoltas separatistas.
Vasconcelos optou pelo abandono de sua convicção em nome da responsabilidade em relação à unidade territorial. Mesmo que para isso tenha rompido com seus antigos ideais e companheiros liberais; e assumido uma versão quase caricata de certo modelo centralista, conservador e arcaico. Ao mesmo tempo, ao fazer tamanho movimento em direção contrária aos liberais, possibilitou uma significativa mudança no contexto político, de modo a dar progressão e consolidar o modelo conservador na política imperial.
Ou seja, embutiu em sua atuação como homem público os dilemas mais fundamentais que, em geral, as sociedades enfrentam. E que no caso particular do Brasil, ganharam cores mais vibrantes: entre os ganhos de curto prazo e os prejuízos do longo; entre a convicção e a responsabilidade; entre o centralismo e a descentralização. Enfim, entre o arcaico e o moderno, optou pela sua particular ponderação entre o que poderíamos enxergar como sendo uma atitude de estadista e um simplório utilitarismo. Eis os embates que Vasconcelos, o defensor da escravidão que criara o Código Criminal ou o conservador que fizera a descentralização de inspiração federalista travou. Seu equívoco foi ter feito tal ponderação de modo desequilibrado, o que revela não só o seu caráter, mas, principalmente, o atribulado contexto em que vivia.
De qualquer modo, os dilemas que enfrentou, mesmo que muitos significativos em seu tempo, continuam pairando sobre nós, como uma sombra. Resgatar a história de Bernardo Pereira de Vasconcelos, sua atuação política e seus textos, não é sinônimo de elogiá-los. Como deve ser o objetivo daqueles que se dedicam à reconstrução da trajetória histórica em busca de novas interpretações sobre o passado, é a compreensão lenta, e não o julgamento rápido, que importa. Difícil é o sucesso de tamanho desafio sem a leitura e compreensão do papel que Vasconcelos teve nos anos iniciais da formação do Brasil. Suas questões foram relevantes para o século XIX e continuam sendo, em essência, para o século XXI.
NOTAS:
¹ Segundo José Murilo de Carvalho, este discurso foi atribuído a Vasconcelos, mesmo que não haja registro sobre ele. De qualquer modo, é sempre citado como a ‘conversão’ de Vasconcelos à causa regressista – ou conservadora – após anos de militância à causa dos progressistas – ou liberais. Ver Carvalho, José Murilo de (org). Bernardo Pereira de Vasconcelos. Coleção Formadores do Brasil. São Paulo: Ed. 34, 1999.
Confira o Café Filosófico Especial 3 x 22 sobre “Colonização e a formação do Brasil: estruturas e interpretações”, com o Professor Emérito da USP Fernando Novais: