Para bom entendedor: O longo suspiro de Johan Huizinga

Só é possível pensarmos em passagens de épocas e mudanças da História quando nosso incômodo com a realidade concreta é suficiente para questionarmos nossos valores e projeções mais abstratos. Só é bom entendedor quem entende o que veio antes.

Logo na primeira página do capítulo 11 de O Outono da Idade Média,[1] de Johan Huizinga, há duas passagens que já valem sozinhas o esforço de ter chegado até aqui:

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“Nenhuma época impôs a toda a população a ideia da morte continuamente e com tanta ênfase quanto o século XV. […] Essa imagem da morte foi capaz de assimilar somente um elemento do grande número de concepções relacionadas à morte: a noção de perecibilidade. É como se o espírito do final da Idade Média não pudesse enxergar a morte sob outro aspecto além da deterioração.”

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A obra do historiador holandês, cuja primeira edição é de 1919, é um longo e erudito retrato dos ajustes na mentalidade e na sua projeção maior, a cultura, no período que nos acostumamos a ver como a decadência da Idade Média europeia (séculos XIV e XV) – o que justifica o nome de uma edição portuguesa (O Declínio da Idade Média) diretamente traduzida do inglês (The Waining of Midlle Ages). Mas ambas não captam a essência do título original (Herfsttij der Middeleeuwen), que finalmente mereceu a tradução mais adequada na bela edição lançada no Brasil pela Cosac Naify em 2010. Afinal, o ‘outono’ a que se refere Huizinga não é simplesmente o ‘declínio’, e, sim, a pausa, o respiro, antes do florescimento de uma nova mentalidade que, não obstante resultar em ajustes profundos, se adaptava – sem necessariamente matar – aos elementos estruturantes daquilo que chamamos de Idade Média europeia. E mesmo que trate de apenas duas regiões, a Holanda e a França, apresenta um painel tão amplo e ao mesmo tempo tão profundo que podemos identificar em suas páginas não só uma obra clássica, mas também um parâmetro para qualquer possibilidade de termos alguma sofisticação nesta insistente tentativa de entender a História a partir de eras que se sucedem. Em uma metáfora algo juvenil, é a troca das folhas sem a mudança do tronco. O nascimento de uma nova árvore a partir das folhas que caíram das árvores vizinhas.

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Huizinga

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É exatamente por isso que a obra de Huizinga merece ser (re)lida. Ela nos faz compreender melhor como as transformações relacionadas a elementos fundamentais do medievo europeu se relacionam com o modo como eles se adaptaram e não só como sucumbiram. Exemplo maior refere-se às mudanças que envolveram os ideais de cavalheirismo, e consequentemente da guerra, entre os nobres europeus, e como tais mudanças foram representadas em formas variadas de comunicação, como a literatura e a arte. Em certo momento, que se esconde em meados do século XIV, a guerra medieval não mais cabia no modelo tradicional de disputa entre nobres, que se enfrentavam limitados por um campo, por um conjunto de regras, que eles mesmos tinham definido. A guerra passara a ser, para além do código de honra que envolvia os cavaleiros da nobreza feudal, um jogo que envolvia as reminiscências de certa superioridade de classe, mas também uma disputa cada vez mais econômica. O que revela não só outra dimensão da guerra como também outra racionalidade. A guerra então ganha uma amplitude que envolve posicionamentos intraclasse, a dos nobres, mas também resultados econômicos que escapam ao modo tradicional de mensurar seus resultados. Ela passou a ser interessante também por seus custos e lucros, refletindo a ascensão cada vez mais irresistível de uma sociedade comercial, dos negócios e, em suma, burguesa. Diz Huizinga, na página 170:

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“Havia na carreira da nobreza de armas um lado financeiro que com frequência era reconhecido abertamente. Cada página da história bélica do final da Idade Média dá a entender quão interessante era fazer uma quantidade considerável de prisioneiros de guerra em função do resgate. […] Mas, além dos rendimentos da guerra, pensões, rendas e cargos de governo cumpriam importante papel na vida do cavaleiro. Ascender na carreira era considerado um objetivo por todos.”

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E complementa citando, na página seguinte, três passagens de autores variados sobre a mesma questão:

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“Sou um pobre homem que deseja melhorar de posição.” (Eustache de Ribemount)

“Aos corajosos que desejam progredir por meio de suas armas.” (Froissart)

“E quando virá o tesoureiro?” (Deschamps)

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Dessa forma, a guerra, até então cercada quase que exclusivamente pela ética cavaleiresca, ganha um reforço, representado pela ética burguesa, que a torna muito ampla para ser entendida apenas por uma delas. E tamanha amplitude demandava uma mudança significativa: por um lado, era pouco provável que a estrutura política tradicional suportasse tamanha demanda. Por isso era cada vez mais oportuno o fortalecimento de certa centralização do poder, antessala para a formação das monarquias nacionais modernas em detrimento do poder feudal. Por outro lado, a ideia de ascensão e progresso pessoal, fundamental para a ética burguesa, apontava para outras três questões nucleares.

Uma delas é a própria ideia de mobilidade. A sociedade medieval não era caracterizada pela mobilidade social, entendida na época como uma distorção que afastaria aquelas pessoas do mais próximo que poderiam chegar da perfeição divina; como se qualquer movimentação na ordenação social virasse imediatamente uma ameaça ao encaixe quase perfeito criado por Deus.

A segunda, derivada da anterior, refletia a ameaça a um código ético e jurídico entendido a partir da rigidez da relação entre qualquer ato, ou situação cotidiana, e a ordem cósmica ou divina; como se todas as pequenas coisas, sentimentos, ações e eventos que ocorressem na sociedade ou com seus indivíduos estivessem subordinados a uma ordem maior, totalizante e perfeitamente definida. Essa subordinação do concreto, humano e cotidiano a uma abstrata e perfeita ordem não só estava amparada em um complexo código canônico e ritualístico como também transformava qualquer desvio em heresia, bruxaria ou satanismo, exigindo um comportamento e uma contrição moral impossível de ser, na prática, alcançada. E é neste hiato entre a projeção de uma ética inalcançável e um cotidiano medíocre que ocorreu o ajustamento mental que deu sobrevida a alguns valores morais. Lemos na página 173:

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“Porém, quanto mais um ideal de cultura exige virtudes das mais elevadas, maior é a desarmonia entre a forma de vida e a realidade. O ideal cavaleiresco, com seu conteúdo ainda semirreligioso, só podia ser reconhecido por uma época suscetível à completa ilusão, que fechasse os olhos frente a realidades muito duras. A civilização que estava despontando exigia que as aspirações elevadas demais da velha forma de vida fossem abandonadas. O cavaleiro torna-se o gentillhomme francês do século XVII, que ainda mantém uma série de conceitos de hierarquia e honra, mas não se apresenta mais como um guerreiro das questões da fé ou o protetor dos fracos e oprimidos. No lugar da figura do nobre francês, surge o gentleman, em linha direta com o antigo cavaleiro, agora modificado e refinado. Desse modo, nas transformações sucessivas do ideal cavaleiresco, a camada mais epidérmica, tornada mentira, solta-se mais uma vez.”

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Ou seja, foi o confronto entre uma projeção moral que tende ao exagero e à ilusão da perfeição, de um lado, e a dureza e pequenez da realidade que vivenciavam, de outro, que fez com que enxergassem os valores vitais que deveriam transformar em busca de sua mínima preservação. E foi neste enfrentamento, amplificado no século XIV pela Peste Negra, que se deu a síntese entre transformação e manutenção que caracteriza o ‘outono’ medieval e o nascimento da modernidade.

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(Bibliothèque royale de Belgique, MS 13076-77, f. 24v.)

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A ‘dança macabra’, que indica a terceira questão e refere-se à imagem amplamente reproduzida em alusão à Peste do século XIV, apresenta a humanização da morte ‘que arrasta consigo as pessoas de qualquer profissão, de qualquer idade’ (p. 222) e precipita o razoável questionamento sobre as hierarquias e significados que formavam uma espécie de regramento sobre o tema.  E que, em geral, formava o regramento sobre todos os temas, da produção de comida ao entrelaçamento amoroso; da guerra ao papel das mulheres; do nascimento à morte.

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A ‘danse macabre’ n’O Sétimo Selo, de Bergman

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Portanto, a dúvida sobre a relação entre uma ordem moral de origem divina, ultra idealizada e perfeita, e uma realidade na qual os corpos eram empilhados e, a olho nu e publicamente, se deterioravam e apodreciam, invade não só o modo como a morte foi entendida, mas como todo o código que mantinha a coesão mínima da sociedade medieval foi transformado.  Esta transformação passou pela definição de um novo modo de associar as ambições e as experiências reais. Ou, como diz, em forma de questionamento, o próprio Huizinga, na página 226:

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“Ou será o pavor da vida, muito impregnado na época, e a disposição de frustração e desânimo de quem lutou e venceu, preferindo agora se render completamente ao que é transcendente, mas que mesmo assim ainda está tão perto de tudo que é paixão terrena?”

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Entre a perfeição divina que nos dá e regula a vida, conforme definia a mentalidade medieval, e a peste que nos toma a vida e apodrece nossos corpos, assim como revelado pela experiência cotidiana dos europeus do século XIV, aprendemos com Huizinga, nesta obra clássica que o autor holandês nos deixou, que só é possível pensarmos em passagens de épocas e mudanças da História quando nosso incômodo com a realidade concreta é suficiente para questionarmos nossos valores e projeções mais abstratos. E, para tanto, precisamos saber quais são eles em suas mais precisas definições e essências. Daí será possível entender se aquilo que vivemos é de fato uma mudança profunda ou será uma nota de rodapé. Ou seja, só é bom entendedor quem entende o que veio antes. Por isso, ler a obra de Huizinga parece ser fundamental.

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Registro da Capela de Sv. Marija na Škrilinama, 1471, em Beram

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Nota:

[1] Huizinga, Johan. O Outono da Idade Média. Estudos sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

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