Cartas da Malásia: As Cartas em Istana Negara

A partir da culinária, em mais uma Carta da Malásia, Ary Quintella — diplomata brasileiro em Kuala Lumpur — traz um pouco de história e cultura e textos e contextos sobre o país asiático. Um texto sobre distância geográfica, diferenças culturais e aproximações possíveis.

por Ary Quintella

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(Reprodução: Ary Quintella)

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Em junho, meus colaboradores apontaram que o rei e a rainha poderiam perguntar se eu já provara o prato mais típico da cozinha malásia, o nasi lemak, e a fruta mais famosa, a mania nacional, o durião. Por causa do confinamento compulsório, que durara de março a maio, eu simplesmente não tivera ocasião para isso.

A Malásia é uma federação composta de treze estados, nove dos quais monarquias, e três territórios. Dos nove monarcas — denominados “rulers” na Constituição, redigida em inglês originalmente — há sete sultões e dois que usam títulos diferentes, mas assemelhados. Para simplificar, uso aqui “sultão” para me referir a todos eles. O país tem um rei como chefe de Estado. O título preciso em malásio é Yang di-Pertuan Agong, que talvez possa ser traduzido como “aquele que é feito senhor supremo”. No dia a dia, as pessoas ao se referirem a ele em inglês usam indistintamente “King” ou “Agong”.

O país não é uma monarquia hereditária. O rei é eleito por um período de cinco anos. Uma característica importante, e única, do processo eleitoral é que só podem concorrer ao cargo os nove sultões. E só votam os mesmos nove sultões. Na prática, há um sistema rotatório entre as nove casas reais, seguindo a lista de antiguidade, por início de reinado, dos sultões que governavam seus estados em 1957, quando o país se tornou independente. A regra é informal, não constitucional, e pode haver exceções, por exemplo se o próximo sultão na lista for menor de idade ou se não quiser reinar. O atual Agong é o sultão de Pahang, eleito para o trono em janeiro de 2019. Ele é o Yang di-Pertuan Agong XVI. É filho de um Agong anterior, o VII, assim como sua mulher, cujo pai foi sultão de Johor e Agong VIII. Sabe-se que o próximo rei será o sultão de Johor — cuja irmã é hoje a rainha — e depois dele o de Perak. O sistema é prático, ao manter equilíbrio entre as diferentes casas reais.

Ao longo deste extraordinário ano de 2020, ficou claro o papel constitucional do rei. No início de março, diante da repentina renúncia do então primeiro-ministro, Mahathir Mohamad, figura histórica da política malásia, coube ao rei avaliar que líder tinha condições de garantir maioria de votos no Parlamento e, assim, formar um governo. Da mesma forma, coube ao rei decidir, no final de outubro, se aceitava ou não proposta apresentada a ele pelo atual primeiro-ministro, Muhyiddin Yassin, de implantação de um estado de emergência, por causa da Covid-19. O rei avaliou não ser necessária a medida.

Sendo o chefe de Estado da Malásia o Yang di-Pertuan Agong, é a ele que os embaixadores estrangeiros apresentam suas cartas credenciais. Passado o confinamento, fui avisado de que eu apresentaria minhas cartas em 7 de julho. Haveria, depois da cerimônia, uma audiência com o rei e a rainha, e em seguida um almoço oferecido por eles. Explica-se assim a preocupação de meus colegas mais jovens quanto a nasi lemak e durião.

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(Reprodução: Ary Quintella)

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Nasi” significa arroz, e muitos pratos malásios são chamados de nasi, com algum complemento. Nasi lemak é o mais característico, equivalente ao nosso prato feito ou a um picadinho. O nome significa “arroz cremoso” e, de fato, ele é cozinhado com leite de coco em folhas de pândano. Se for almoço ou jantar, virá servido no centro do prato, rodeado de pepino fatiado, amendoim, anchovas, ovo cozido e, em geral, frango. O molho é picante. Muitos o comem no café da manhã, em uma porção bem menor, embrulhada como um pacotinho, em folha de bananeira.

Meu primeiro nasi lemak foi inesquecível. Gostei muito, e repeti desde então a experiência várias vezes. Apenas, tenho sempre de pedir que maneirem na pimenta. É triste, porque na verdade eu gosto de pimenta, e fui criado com comida baiana. Mas hoje, por razões de saúde, tenho de evitá-la.

Como sobremesa, no dia do meu primeiro nasi lemak, provei durião. Ainda em Brasília, amigos haviam dito a mim e à minha mulher toda a emoção, positiva ou negativa, que acompanha a degustação dessa fruta. Uns a detestam, outros não vivem sem ela. Diante da iminência de nossa partida, uma conhecida, originária do Sudeste asiático, comentou que às vezes desmaia com o cheiro da fruta. Até planejar nossa vinda para a Malásia e Singapura, nós nunca nem tínhamos ouvido falar em durião. Há chineses que fazem turismo na Malásia com o objetivo único de prová-lo; é iguaria cobiçada na Ásia do Sudeste e na China.

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(Reprodução: Ary Quintella)

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Morar em Kuala Lumpur e nunca provar durião é, para um estrangeiro, como morar em Moscou e nunca ir ao Bolshoi, morar em Londres e nunca ir a um pub ou a uma produção de peça do Shakespeare, morar no Rio e nunca ir à praia ou comer feijoada. Na Malásia, é frequente perguntarem aos estrangeiros se eles já provaram durião, se gostam, que impressão tiveram. É um teste. Passa no quesito popularidade quem mais gostar. Em junho, eu lera no jornal uma matéria inteira, lisonjeira, sobre o apreço que tem pela fruta o Embaixador da China.

Já ao provar o primeiro pedaço, fiquei impressionado com o sabor. É delicioso. O cheiro é forte mas, para mim, nem um pouco desagradável. Talvez a melhor forma de apreciar durião seja saber que ele tem uma textura quase cremosa. Por isso, é uma fruta diferente, que parece ao paladar mais como um bolo, e pode causar estranheza aos desavisados.

Há duas temporadas para a colheita mas, na prática, a fruta hoje em dia pode ser obtida o ano inteiro, ainda que com menos fartura e a preços mais caros fora da safra. Há centenas de espécies, o que gera modismos. A mais celebrada atualmente na Malásia é a musang king, e essa é a que primeiro provei e aquela a que, por dois meses, segui dando exclusividade.

Há algumas semanas, ao sair no final da tarde de uma reunião de trabalho que não correra como eu planejara, senti-me frustrado. Chocolate costuma ser a solução para mim nesses casos. Olhei em volta na rua tentando ver se havia alguma loja onde eu pudesse comprar uma barra. Percebi então, na outra calçada, uma tenda, com telhado de palha, que era por assim dizer um restaurante de durião. Percebi que já me acostumara tanto com a fruta, que ela teria sobre mim o mesmo efeito reconfortante do chocolate. Entrei. Sentei-me. Era possível fazer degustação com cinco pedaços de diferentes espécies. A gerente me explicou que, embora musang king seja o tipo mais cobiçado no momento, o mais caro é black thorn. Os dois constavam da bandeja que me trouxeram, mas a espécie de que mais gostei, naquele dia, foi uma terceira, xo — pronuncia-se como as letras em inglês, “ex-ou”.

Mas tudo isso foi dois meses depois da apresentação de minhas cartas credenciais. Voltemos ao dia 7 de julho, e ao Istana Negara, ou palácio nacional. A cerimônia na sala do trono — toda amarela, cor da monarquia — inclui o desenrolar, por um alto funcionário, o grande chambelão, de um pergaminho, de onde ele lê alto e firme, para o Agong que está em pé de costas para o trono, que o embaixador pede autorização para entrar e entregar suas cartas. Ao caminhar em direção ao rei, segurando a pasta com as cartas, lembrei que a viagem porta a porta, de Brasília para Kula Lumpur, em janeiro, levara 36 horas. Tive consciência da distância geográfica e das diferenças culturais. Pensei que eu era o único brasileiro ali, e que toda a ideia a ser passada sobre o Brasil, naquele momento, seria dada por mim. O pensamento era confortável. Na audiência e no almoço após a apresentação de credenciais, o rei e a rainha foram simpáticos e afáveis. Não me perguntaram se eu gostava de nasi lemak e durião, o que foi uma pena, porque eu contava impressioná-los com meu recém-adquirido conhecimento da cozinha malásia.

O Agong conversou comigo sobre outro rei, o Pelé. Ele é apaixonado por futebol e queria saber sobre a saúde do craque. Foi ele quem primeiro me conscientizou sobre o fato de que o jogador faria 80 anos. Sabia de cor até a data, 23 de outubro. Marquei alguns pontos ao declarar que meu avô materno, Alfredo Curvello, durante anos coordenador técnico de futebol da CBD e presidente da Comissão de Arbitragem da CBF, conhecera bem Pelé, quando este jogava na Seleção. Quanto à rainha, preferiu, em vez de me testar sobre durião ou nasi lemak, falar de cozinha brasileira. Ela disse saber preparar banana caramelizada com canela. Considerei isso o ápice da cortesia.

De tarde, voltei para casa e tirei o fraque. Retomei o trabalho cotidiano. Algumas semanas depois, descobriria que meu prato predileto da cozinha malásia, afinal, é o laksam.

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Ary Quintella publica seus ensaios e crônicas na página aryquintella.com.

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