Chernobyl e a narratocracia

O desastre de 1986 não foi só o começo do fim da União Soviética, como o início para toda uma Perestroika da sensibilidade.

por Bruno Cava

Uma economia planificada envolve o controle estrito do tempo. A cadeia produtiva é decomposta em seus menores elementos constituintes para que cada um seja acelerado até a maior produtividade possível, a seguir recomposta e organizada segundo os prazos globais definidos pelo planejamento central. A racionalização do emprego dos meios percorre o processo de ponta à ponta, sob o olhar vigilante de uma tecnocracia educada nos valores da eficiência. Em pequena escala, a atividade é regulada pelo cronômetro, a prancheta e apontadores comprometidos com a maximização das cotas. Mas essa lógica se reproduz na grande escala, na forma de monumentais cronogramas e planos plurianuais que devem conduzir a nação passo a passo na direção do prometido futuro de superabundância. As recompensas e os castigos, as promoções e os rebaixamentos são distribuídos aos funcionários em função do sucesso ou fracasso na observância dos prazos e das metas tabulados. O país do socialismo deve ser um relógio gigante em que máquinas e homens se engrenam uns aos outros, engastados em conjunto pela solda da narrativa progressista.

A série Chernobyl (2019), exibida pelo canal de TV a cabo HBO, expõe com clareza o esquema que funcionava na antiga União Soviética. Ela mostra como o fatídico exercício-teste do reator da usina nuclear foi agendado para uma madrugada de abril de 1986 porque, se fosse realizado no mais favorável horário diurno, implicaria uma queda na cota esperada de geração de energia. Guiados pela expectativa de promoção na cadeia hierárquica, os burocratas miúdos de Pripyat tinham como última preocupação aspectos relativos à segurança. A série consegue mostrar como, ao contrário do que se poderia imaginar, eles não estavam agindo irracionalmente contra o próprio interesse, mas sim alinhados a um implacável sistema racional da indústria planejada, que impunha a continuidade do movimento. Não se deveria perder tempo em distrações, o que poderia ser interpretado como traição aos ideais revolucionários.

A encenação do exercício do reator mostra a reprodução dessa mesma lógica, ao explicitar como o engenheiro-chefe apressa as operações a fim de cumprir a sequência do manual. O que importa é culminar a realização do exercício para no dia seguinte agradar aos superiores, com o atendimento do plano estabelecido. A conclusão é que o desastre de Chernobyl não aconteceu por uma crítica falha humana, mas por uma acumulação de falhas que se prolongou por anos e se alastrou em cada elo da corrente produtiva nacional. Todo um modo de produção era assim colocado em xeque.

Ocorrido o desastre, a mesma lógica se repetiu na economia das reações discursivas. Os burocratas imediatamente se puseram a falar, a discursar obsessivamente com as respostas pré-fabricadas e as listas preparadas com os culpados à mão: aqueles que, ao errar, desviaram da linha justa, e aqueles contaminados por ideologias estrangeiras e contrarrevolucionárias. Uma confecção serial de narrativas começa nos comitês locais da cidade, passa pelos gabinetes do governo e termina no anódino noticiário da televisão pública. Cada acontecimento moído e decomposto em elementos controláveis, a seguir recombinados para sustentar a grande narrativa do partido. Um taylorismo linguístico que fabrica, em moto perpétuo, a reconfirmação obsessiva do plano maior, eximindo a culpa em “Grandes Inimigos Maquiavélicos”. O curioso da série é explicitar como não houve apenas um mero processamento ideológico das informações relativas ao desastre de Chernobyl. Na verdade, o estado respondeu com um extenuante atletismo narrativo, posto em marcha à semelhança do funcionamento da indústria pesada, só que o produto desta vez foram discursos. “Um reator RBMK não pode explodir, ele não explode, ele não explodiu”.

A série da HBO conseguiu repercutir a força da literatura de Svetlana Aleksiévitch (Vozes de Tchernóbil, da Cia. das Letras), claramente uma base para os roteiristas. Na década de 1990, a escritora bielorrussa foi uma das primeiras a relatar o acontecimento de Chernobyl assumindo como material do livro o ponto de vista das pessoas envolvidas. Para contrapor-se à narratocracia do partido, Svetlana não fabricou ela própria a sua contranarrativa, que poderia servir de polo oposto àquela. A narrativa de esquerda metabolizaria com facilidade uma polarização direta, nos mesmos termos englobantes. Em vez disso, a escrita de Svetlana se deixou povoar pelas vozes abafadas de interlocutores ordinários, cuja vida foi tragada pelo desastre. Ela recheou o próprio texto da energia vital do discurso indireto livre.

São histórias contadas em primeira pessoa pelos sobreviventes, os enfermeiros, os moradores da região, os cidadãos convocados para descontaminar a paisagem. Histórias colocadas em tensão umas com as outras na composição do texto. A série televisiva acertou ao seguir esse procedimento de estilo, por exemplo, ao apresentar o drama da esposa do bombeiro, da senhora camponesa que havia enfrentado as tragédias do século, ou do garoto ingênuo recrutado para liquidar os animais contaminados pela radiação. Em vez de cair na banalidade do horror, tão comum em filmes-catástrofe, o desafio é filmar o horror da banalidade. Pois num acontecimento como Chernobyl nada mais é banal. Ao abordar a vida ordinária das pessoas comuns, nos deparamos com as marcas quentes, os vestígios ainda emissores da radiação mortal, que chegam até nós como raios assombrosos. Se o partido corre para ligar a sua fábrica de narrativas com vistas a neutralizar o evento, banalizando-o como um simples percalço na inexorável marcha da “Causa”, o tratamento menor da linguagem consegue conferir ao ordinário enormes proporções. Indivíduos que, ao relatar suas pequenas trajetórias, participam de um drama humano imenso e irrepetível. Um segundo aspecto perturbador em cena é o efeito que Chernobyl teve de interromper o moto perpétuo de narrativas prontas. Num primeiro momento depois do desastre, os burocratas e funcionários do estado não param de tagarelar, quase em reflexo condicionado. Isso fica claro na cena em que Legasov atende ao telefone que o vai convocar para participar do gabinete de crise, presidido por Gorbachev. Ao atender o chamado, o cientista mal consegue exprimir o espanto diante dos níveis medidos de radiação. O comissário do outro lado da linha o soterra de discursos politicamente corretos a que ele deveria aderir, como condição para a participação na equipe. Mas o acontecimento termina por se impor, introduzindo uma pausa. Um momento intenso de mudez: perdemos a voz normal diante do inominável, não sabemos o que falar, como falar. Um após o outro, os personagens são estremecidos, aos poucos se tornando, para usar uma expressão de Svetlana, “homens de Chernobyl”. São obrigados a buscar palavras para sensações novas, e sensações para palavras novas. É o espanto dos engenheiros e cientistas que custavam a acreditar no que viam e sentiam. É a hesitação que, aos poucos, penetra na redoma dos burocratas: a expressiva pausa daquele mesmo comissário quando é comunicado do encurtamento de sua expectativa de vida, do general cabisbaixo que pergunta “e agora, o que fazer?”, e do próprio Gorbatchov, perplexo e sem recursos.O solo das narrativas racha e nele se infiltra uma consciência diferente, uma nova imagem do mundo portada pelos homens de Chernobyl. Sua materialização no espaço é a zona morta, no estranho fascínio que exerce sobre os espectadores. Nela vislumbramos um mundo sem o ser humano, um tempo livre, objetos que seguem existindo à revelia de nosso abandono. Testemunhariam o nosso passado ou o futuro? O tempo implacavelmente encadeado do sistema industrial planificado sai dos gonzos e se é lançado para outro lugar da história. O socialismo deveria conduzir do passado glorioso da revolução ao futuro utópico da fartura generalizada, mas o esquema motor se desfez nas duas pontas. Começo e fim não explicam mais nada. O ontem da revolução soviética se torna uma casca oca ao mesmo tempo que o amanhã se dissipa junto das colunas de fumaça radioativa surgidas das ruínas. Na série da HBO, na cena da reunião do comitê local, logo depois do desastre, um velho senhor idealista discursa sobre a importância de se preservar o patrimônio simbólico da revolução socialista, mas diante dos fatos, ele não poderia soar mais falso e postiço. Momentos depois, um dos presentes, já sentindo os efeitos da contaminação, começa a vomitar.

O desastre de 1986 não foi só o começo do fim da URSS, como o início de toda uma perestroika da sensibilidade. Por essa fenda aberta, escoaram as últimas grandes narrativas do século 20 e o inteiro continente socialista nela submergiu. Num momento de recrudescimento de guerras discursivas esvaziadas, a refilmagem televisiva de Chernobyl não poderia ser mais oportuna.

Bruno Cava é ensaísta e professor de cursos livres de Filosofia. Autor de vários livros, entre eles “A multidão foi ao deserto” (AnnaBlume, 2013) e “Enigma do disforme” (Mauad, 2018).

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