por Vinícius Müller
Diz uma passagem da antiguidade que Platão, em uma visita à Siracusa, na ilha da Sicília, buscava junto a seu amigo Dion, transformar o chefe local, Dionísio, em um rei-filósofo. Tal desejo do discípulo de Sócrates se encontraria com a vontade do próprio Dionísio, disposto a ser aquele que, do alto de seu poder pessoal, se transformaria no promotor da paz e da justiça democrática. Depois de duas tentativas, Platão teria desistido de sua missão, sem esperança quanto à possibilidade de conciliar os mais nobres desejos de Dion, seu amigo, com as práticas tirânicas do Rei. Ao contrário do que supostamente pretendia o filósofo grego, Dionísio se transformara, não obstante seu manifesto interesse pelas virtudes do sábio, em um déspota dos mais sanguinários.
Para muitos, esta experiência obrigou Platão a repensar a sua própria especulação acerca da trajetória que uniria um período dominado pela tirania e outro, no futuro, democrático. A viagem de Platão a Siracusa, conta-se, foi rememorada por um professor alemão a seu colega, Martin Heidegger, quando o filósofo retomava suas aulas após a experiência de ter sido a mando do nazismo reitor da Universidade de Freiburg. “De volta de Siracusa?”, indagou o colega de Heidegger, se referindo à tentativa vã (e vil) do filósofo em ‘domesticar’ o tirano nazista. A mesma decepção que Platão teria sentido em relação a Dionísio, a quem pouco conseguiu ‘domesticar’ além de uma fina camada de sabedoria e cultura.
Estas histórias são lembradas por Mark Lilla em seu livro A Mente Imprudente: os intelectuais na Atividade Política (Record, 2017), a respeito do fascínio que as tiranias mais violentas do século XX exerceram sobre intelectuais do porte de Heidegger. Lilla, historiador norte-americano e professor em Columbia, não poupa ninguém em seu pequeno, mas denso ensaio sobre como intelectuais deram suporte e, em alguns casos, trabalharam diretamente aos déspotas modernos. Da direita à esquerda; de Jaspers a Derrida, de Schmitt a Foucalt, o despotismo de regimes e líderes como Hitler, Stálin, Mao Tsé Tung, entre outros, fascinaram e engajaram pensadores sem distinguir suas tendências políticas e ideológicas e, cada um em sua área, justificar os mais horrendos crimes do século XX.
Contudo, o que Lilla nos conta não é novidade. O insuspeito Immanuel Kant já buscava, na segunda metade do século XVIII, encontrar no despótico Imperador da Prússia, Frederico II, o líder que transformaria seu reino na morada da liberdade e da razão esclarecida, acima das paixões e do arcaísmo político. Voltaire, iluminista francês contemporâneo de Kant também flertou com esta combinação. A Experiência vienense, sob a batuta dos Habsburgo encontrou sossego nesta combinação, não muito distante das tentativas, em geral malogradas, de modernização pombalina em Portugal e bourbônica na Espanha dos oitocentos. Seria imperdoável esquecer, nesse caso, da megalomania napoleônica já nos novecentos, em sua combinação entre império e direitos.
O que o historiador norte-americano nos revela, contudo, é o mecanismo pelo qual esta identificação entre despotismo e intelectualidade se reproduz. Da antiguidade aos horrores do século XX, o filotirânico (expressão dada por Lilla ao intelectual que apoia e sustenta o tirano) se ampara na convicção de que sua paixão e suas pulsões são controladas, ao ponto de servirem ao engajamento político. Assim, com um verniz filosófico suficiente para incendiar os corações dos jovens, mas pouco para dar-lhes o distanciamento que deveriam ter em relação a sua paixão, sentem-se à vontade, inclusive em sua pretensa superioridade moral, para sustentar o tirano. Mais dos que isso, creem, concomitantemente, na transformação social operada pelo tirano, que imaginam domesticar. O engano é supor que suas próprias paixões estão controladas e que, ao enquadrarem o tirano, resolve-se o problema. Nada mais equivocado. A atração dos intelectuais pelos tiranos está justamente naquilo que são iguais; ou seja, na falta de prudência, em sua dependência às pulsões e irracionalidade.
Daí que, ao projetarem no tirano a transformação que imaginam forjar um novo mundo e uma sociedade melhor, criam uma imagem do passado que apenas busca confirmar suas vaidades, mesmo acreditando que têm a História sob seu domínio. O resultado seria a dupla relação, como um jogo de espelhos, de uma revolução liderada por um tirano, cuja alma dotada da razão dos iluminados revelaria o caminho ao futuro desde um passado que só o intelectual conhece e reconhece. Por isso, o revolucionário projeta um futuro que é novo e perfeito, mas retoma, paradoxalmente, a um passado mítico. Por isso também os revolucionários gostam tanto de Rousseau e de seu ‘bom selvagem’. Por isso, ainda, os revolucionários gostam tanto de tiranos, quando não são eles mesmos os próprios déspotas, em suas pequenas relações de poder, travestidos em reis-filósofos.
É neste ponto, na busca de um passado mítico que pode retornar, sob a égide de um tirano e seus asseclas intelectualizados, em forma de um futuro perfeito, que se encontram os tais donos de ‘mentes imprudentes’ e os reacionários. Tamanha associação se revela em outra obra de Mark Lilla, A Mente Naufragada: Sobre o Espírito reacionário (Record, 2018). Nela, numa surpreendente nota de rodapé, Lilla identifica em A Montanha Mágica, de Thomas Mann, um personagem que resumiria a relação entre o reacionário e o revolucionário: Leo Naphta, personagem do livro de Mann, é um judeu, doente e convertido ao catolicismo (ao ponto de se transformar em padre jesuíta) que, ao longo de sua vida, também dedica grande admiração pelas ideias comunistas. O histrionismo intelectual de Naphta se revela em uma nostalgia pela Idade Média europeia, pela feroz crítica à modernidade e pela defesa de que a ordem e a autoridade perdidas no mundo moderno só seriam resgatadas por uma revolução radical e violenta. A revolução redime e nos devolve ao passado, quando a ordem e a autoridade imperavam. Eis a ‘lógica’ histórica do personagem de Mann. Não muito diferente de uma lógica fascista. O curioso é que a inspiração do autor alemão para criar o personagem não foi um reacionário ou fascista, e sim Gyorgy Lukács, filósofo e revolucionário marxista.
A diferença entre eles é que o reacionário olha para trás, tornando a nostalgia irrefutável. Não é o conservador, mas aquele que olha para a História como um exilado do tempo. Alguém que quer parar a História, pois quer voltar no tempo. E assim, busca vingança contra a mesma História, que ao fluir, transformou o que era sagrado em profano. O reacionário, portanto, lamenta a História pelo o que ela fez com o passado perfeito. Por isso, no rio da História, o reacionário não navega, e sim naufraga, como estivesse se afogando. O revolucionário, por sua vez, quer se vingar da História, não apenas pelo o que ela fez com o passado mítico, mas, também, pelo o que ela ainda não fez pelo futuro idealizado. Deve ser por isso que Lilla, na última frase de A Mente Naufragada, diz que ‘temos consciência de que os slogans revolucionários mais poderosos da nossa época começam com Era uma vez…’ .
Ambos, reacionários e revolucionários, em suas lamentações, rancores e desejos de vingança, querem domar a História, como se fossem maiores do que ela. Não são, evidentemente. A nostalgia dos reacionários é a irmã gêmea da arrogância dos revolucionários. Ambos dispostos a apoiar, a partir de mirabolantes exercícios intelectuais, tiranos e tiranetes e suas pretensas sabedorias que, no fundo, não passam de fino verniz. A História é e deve ser sempre maior do que eles.
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