Diário de um tradutor em São Petersburgo 9 – Epílogo

30 e 31 de março.

por Flavio Quintale

Chego ao aeroporto de Pulkovo. Antes de deixar o solo russo, o coração já está repleto de saudades. A vontade não quer ir adiante. Mas os pés não obedecem essa intrusa arredia. Superam o caótico ir e vir de passageiros. Prosseguem ultrapassando os inúmeros controles. É quase preciso se despir completamente. Tira casaco, tira cinto, tira sapato, esvazia os bolsos, acende a tela do celular. Raios-X. O tradutor está nu. Liberado. Não é terrorista. Recoloca toda a parafernália no lugar. Portão de embarque. Avião. Assento. Cinto de segurança. Decola. Um último adeus da janela. Partir é morrer um pouco, diz o verso francês. É hora de partir. Hora de morrer um pouco.

São Petersburgo é encantadora no verão. Majestosa no inverno. Entre vê-la numa estação ou outra, é melhor ver nas duas. Caminhar pela Avenida Nevsky, passar pelas praças do Hermitage ou de Santo Isaac. Acompanhar o canal Griboiédov, os rios Moiki, Fontanka e Neva, de barco o do cais. Ver a cidade das águas é como acompanhar um filme sendo rodado no momento, com roteiro conhecido, mas pleno de novas perspectivas. Em cada tomada, o rio já não é o mesmo. Brodsky notou que a cidade é constantemente filmada das águas. Não é gratuito. Cidades rodeadas de água são em geral as mais belas. Veneza, Amsterdam, São Petersburgo, etc. O olhar descansa sem jamais repousar. Está sempre em movimento, mas não se cansa. A cada segundo, um novo ângulo. Uma nova percepção. Várias realidades a partir de uma única realidade, que depois nem se sabe mais se era tão real assim.

Pedro, o grande, formulou seu princípio de governo dizendo que duas coisas são indispensáveis: ordem interna e defesa do Estado. Não especificou com quais métodos poderia obter tais objetivos. Moral e política é um tema a parte. Na Rússia, ao menos, Pedro fez escola. O momento não é diplomaticamente positivo para a Rússia com relação à Europa e aos Estados Unidos. Se já não bastasse o embargo anterior, as mútuas expulsões consulares agravam ainda mais a crise. Talvez a maior desde a guerra fria. Isso deve abalar também o fluxo de turistas dos países envolvidos durante a Copa do Mundo. A fraternidade entre os povos permanece um ideal pouco efetivo. Humano, a quintessência do pó.

Além do território continental, riquezas naturais, comer mingau e usar muito leite condensado, Brasil e Rússia têm muitas coisas em comum. A Rússia, como o Brasil, é o país que poderia ter sido e que não foi. Eslavófilos ainda creem no destino de Moscou, a “Terceira Roma”. Um milenarismo sem data precisa, vagamente estipulado. “Duas Romas caíram, Moscou é a terceira. Não haverá a quarta”. Roma, Constantinopla, Moscou. Enquanto esperamos Godot ou a terceira Roma, o mundo segue, entretanto.

A tradução in progress de O esplendor de São Petersburgo de Jan Brokken deve chegar a termo. O livro aguarda ser publicado no Brasil pela primeira vez. Não menos apreensivo está o tradutor em cumprir sua tarefa. Contar ainda o muito que não foi contado nesse diário. Tentar levar um pouco da beleza, do interesse e da paixão por uma cidade. Palmira do norte. A cidade de Pedro. Fundada na foz do rio Neva em maio de 1703. Calculada em termos de defesa, como cidade militar. Daí a Fortaleza de São Pedro e São Paulo. Cidade de Pedro, o taumaturgo. O anticristo que venceu os suecos, o mar e ousou desafiar Moscou, terceira Roma. São Petersburgo de Púchkin, a quem no Cavaleiro de Bronze, declarou seu amor: “Te amo, cidade de Pedro, criatura harmoniosa, amo tuas formas severas, o curso majestoso do rio…”. Poema que Bielínski chamou a “apoteose de Pedro, o grande” vinda justamente do poeta “mais digno de cantar o grande reformador”. De Gogol e da Perspectiva Nevsky, artéria principal da cidade, festival arquitetônico e fisiológico. Lugar de encontro do mundo, no que ele tem de melhor e de pior. “Nela tudo é engano”, alerta Gogol, “tudo é sonho, tudo é diferente daquilo que aparenta”. Cidade de Dostoiévski, de Pobre Gente ao Diário de um escritor passando por O Idiota. De Raskólnikov, aquele que não existe, mas existe mais do que se tivesse existido. De Akhmátova, poeta comparável a poucos. Dos milhares de Yuris e Nataschas. Das noites brancas. Dos teatros, da literatura, da música, de frenética vida cultural. Cidade que o poeta Nekrasov chamou de “fatal”. Fusão de pedra, metal e água. Onde a arte desembarcou desafiando a natureza. Onde a grandiosidade das formas supera a abundância de ornamentos. Da elegância nas proporções.  A cidade do esplendor. Espledorburgo.

Fim do Diário de um tradutor em São Petersburgo.

Flavio Quintale é tradutor literário, bacharel em jornalismo e doutor em Letras pela USP e pela Universidade de Könstanz, Alemanha. Foi professor de Literatura Comparada na Universidade de Aachen, Alemanha. Atualmente, prepara a tradução de O esplendor de São Petersburgo de Jan Brokken para a Editora Âyiné.

Leia toda a série “Diário de um tradutor em São Petesburgo”:

1 – Dovlatov

2 – Púchkin e Gogol

3 – Teatros, Igrejas e Museus

4 – Aleksandr Blok e Hermitage

5 – Intermezzo moscovita

6 – Akhmátova, Brodsky e Lênin

7 – Dostoiévski, Tchaikovsky e Rasputin

8 – Personagens da história e da literatura

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