Dos conselhos de Cícero à moderna revolta da vacina: a República entre o direito e o dever

Os desequilíbrios em nossa receita republicana podem nos conduzir a um país de falsos direitos e de deveres indeterminados. De Cícero aos nossos dias, o que podemos aprender com as lições sobre a boa República?
Cícero denuncia Catilina. Afresco de Cesare Maccari no Palazzo Madama, Roma.

por Vinícius Müller

Das tantas maneiras de entendermos aquilo que caracteriza nosso tempo, a História nos oferece algumas surpreendentes possibilidades. Entre elas, aquela que, não obstante seus limites, nos lança à comparação e, melhor ainda, à descoberta de repetições que, de tempos em tempos, nos toma pela mão. Comparamos, pois, eventos situados em tempos diferentes, tentando descobrir algum padrão que se reproduz ou se repete ao longo da trajetória histórica. Nunca de maneira idêntica, mas favorável à revelação de algumas das permanências mais duradouras. O risco do anacronismo, doença que muito nos acomete, acaba por ser compensado pela identificação destas permanências ou de problemas que, mesmo sendo aparentemente de tempos antigos, ainda podem, em sua essência, serem vistos entre nós. 

No século primeiro antes de Cristo, Cícero, filósofo romano, escreveu um clássico da ciência política e da História Antiga chamado Da República. De olho na obra quase homônima, A República, de Platão – a quem cita repetidamente – Cícero desfila seus elegantes argumentos acerca dos três tipos de governo (a Monarquia, a Oligarquia e a Democracia), mesclando a experiência ateniense com a própria história romana. E, entre as oscilações que apresenta a partir desta sequência, desloca sua atenção às variações entre uma e outra, tais como a Tirania e a República. Também apresenta, entre um diálogo e outro, definições conceituais sobre os itens que trata, assim como os coloca na perspectiva histórica dos exemplos que oferece. Desta forma, busca definir o que é cada um deles, como também os momentos nos quais a Monarquia e a República romana se organizaram. Tanto em paralelo, apontando suas diferenças, quanto encontrando suas semelhanças com o percurso histórico das fases políticas de Atenas (Monarquia, Oligarquia, Tirana e Democracia). 

O que faz Cícero, portanto, é identificar as origens, os benefícios, os motivos e os limites dos tipos de governo da Antiguidade, revelando como apreciava características pontuais de cada um deles. Em variadas passagens, aponta as vantagens da Monarquia, assim como da Democracia. Entre um e outro, destaca o risco em depositar a capacidade de harmonia social em apenas um líder, o Rei. Mas, também em depender da moralidade e de quanto este Rei está disposto a doar-se em nome de seu público ou povo. Ao mesmo tempo, alerta para o risco de uma democracia popular que de tão diluída, se transforme em tirania da maioria. É, contudo, em uma passagem (Livro Primeiro, itens XXV e XXVI) sobre a forma republicana que o filósofo romano desfila sua principal contribuição:

“(…) A República (é) coisa do povo, considerando tal, não todos os homens de qualquer modo congregados, mas a reunião tem seu fundamento no consentimento jurídico e na utilidade comum. Pois bem: a primeira causa dessa agregação de uns homens a outros é menos sua debilidade do que um certo instinto de sociabilidade em todos inatos. (…) Assim, não deve o homem atribuir-se, como virtude, sua sociabilidade, que nele é intuitiva. (…)Todo povo, isto é toda sociedade fundada com as condições por mim expostas; toda cidade, ou, o que é mesmo, toda constituição particular de um povo, toda coisa pública, e por isso entendo toda coisa do povo, necessita, para ser duradoura, ser regida por uma autoridade inteligente que sempre se apoie sobre o princípio que presidiu à formação do Estado. Pois bem: esse governo pode atribuir-se a um só homem ou a alguns cidadãos escolhidos pelo povo inteiro. Quando a autoridade está em mãos de um só, chamamos a esse homem rei e ao poder monarquia; uma vez confiada a supremacia a alguns cidadãos escolhidos, a constituição se torna aristocrática; enfim, a sabedoria popular, conforme a expressão consagrada, é aquela em que todas as coisas residem no povo.  (…) De fato, um rei justo e sábio, um número eleito de cidadãos distintos, o próprio povo, embora tal suposição seja menos favorável, pode, se a injustiça e as paixões não o estorvam, formar um governo em condições de estabilidade.”

Ou seja, há um equilíbrio entre a disposição inata aos humanos à sociabilidade e os meios para efetivá-la. Tais meios podem ser viáveis tanto a partir de uma liderança justa e dedicada ao bem comum, como também a partir de um grupo de indivíduos que faz o mesmo papel. Contudo, melhor é quando amparada em um acordo jurídico voltado à utilidade comum. Esse acordo, por sua vez, depende de um tênue limite entre o comportamento individual e o comportamento coletivo, assim como, analogamente, uma intersecção entre o direito dos indivíduos (ou da sua soma, o povo) e sua responsabilidade ou dever. 

Tamanha sutileza que define a República como a mescla entre as vantagens da democracia (que protege os indivíduos do poder tirânico do Rei) e as vantagens da Monarquia (que garante, por meio da liderança, a legitimidade de aplicação da lei – e do acordo jurídico – a partir da definição dos direitos e deveres dos indivíduos), é o que torna a convivência republicana tão difícil e, ao mesmo tempo tão desejada. Difícil, pois, ambos os lados que a compõe – direitos coletivos e deveres individuais – formam, em alguns momentos, polos que se distanciam. De modo que se revezam como a principal definição do que seria a República, oscilando entre uma radicalização da versão que confere aos direitos coletivos a razão de ser da república e uma intransigente defesa dos deveres individuais como sendo o verdadeiro espírito republicano. 

Entre um e outro, a História se move e, de tempos em tempos – a depender do contexto – amplifica tamanha polarização. Nossa já centenária História republicana brasileira, em seus momentos iniciais, vivenciou esta falsa dualidade. Basta a recordação da desmedida e autoritária resposta do governo republicano a Canudos e sua gente, cuja violência marcou o início do governo civil da chamada Primeira República. Ou à defesa positivista de uma república ordeira e hierarquizada, pauta simpática não só aos militares, mas também aos civis de variadas matizes, tais como Euclides da Cunha e Getúlio Vargas. 

Mas foi na capital de então, o Rio de Janeiro, que essa dualidade republicana entre a garantia dos direitos, por um lado, e a responsabilidade e dever de todos com o coletivo, por outro, exacerbou sua força. Em 1904, na chamada Revolta da Vacina, a dificuldade de convivência entre os lados que formam a República transbordou para os enfrentamentos físicos entre os que se recusavam a seguir a determinação do governo em tomar a vacina que os protegeria da varíola e a política do presidente Rodrigues Alves. A vacinação obrigatória, imposta pelo governo republicano e liderada pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz, então diretor da Repartição Geral de Saúde Pública, era aplicada, entre outras, pela invasão dos agentes públicos de saúde nas residências das famílias da capital. Tamanha intervenção do representante público sobre os direitos dos indivíduos foi amplamente criticada pela imprensa da época e, claro, motivou a reação popular contra a campanha de vacinação. Oswaldo Cruz, como nos conta o brilhante José Murilo de Carvalho no curto artigo “Oswaldo Cruz: dever contra direito”, publicado no livro O Pecado Original da República (2017), chegou a ser fisicamente agredido e teve sua casa atacada sob os gritos de “Mata! Mata!” vindos da população revoltada. 

Charge da “Revolta da Vacina”, de 1904, publicada no jornal “O Malho”.

Para José Murilo de Carvalho, o pecado da república no Brasil é a falta de povo. Não porque não exista, mas sim porque foi alijado das decisões tomadas a partir de 1889. O mesmo José Murilo, no entanto, observa que tal participação popular, mesmo que incompleta e parcial, avançou após 1930 e se revela no gigantismo da formalidade democrática brasileira. Mesmo assim, por caminhos que nos confundem, como, por exemplo, na (in) definição acerca do voto (ele é um direito ou um dever?). Contudo, não obstante o avanço da participação popular e dos direitos dos indivíduos, ainda nos é cara a falta de uma pedagogia republicana que insista no equilíbrio entre direitos e deveres. As novas e inacreditáveis manifestações (em 2018!!), contrárias à vacinação, mesmo que mais pacíficas se comparadas às de 1904, são emblemas disso. O problema, como já apontava Cícero, é que na falta desse equilíbrio, as virtudes da República são sobrepostas pelos vícios da tirania. No nosso caso, pelos riscos de termos um país de falsos direitos supervalorizados em relação aos indeterminados deveres. Pior ainda, quando este desencontro entre direitos e deveres é tão mal entendido, que boa parte da população passa a achar que a única solução é apostar na imposição, por um líder messiânico, da ordem e do progresso. Sejam os que se filiam, de modo irresponsável, ao lado dos direitos coletivos; sejam os que se filiam, de modo autoritário, ao lado dos deveres individuais. 

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