Marc Angenot é, por definição própria, um historiador das ideias e teórico da retórica. Em entrevista exclusiva ao Estado da Arte — conduzida por Rodrigo Coppe (Professor da Pós-Graduação da Ciências da Religião da Pontífice Universidade Católica — PUC-Minas) e Lucas Nascimento (Professor da Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS), com tradução de Rodrigo Seixas (Professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás – UFG) —, o professor de Literatura na McGill University falou sobre cultura, diálogo, ressentimento, retórica, paixões e violência em nosso horizonte cultural, em nosso tempo.
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Vivemos hoje, de acordo com alguns analistas culturais, na era do ressentimento. Como o senhor entende a presença desse afeto em nosso horizonte cultural?
Eu estudei muito as ideologias políticas dos séculos XIX e XX e eu publiquei, inclusive, um livro sobre “as ideologias do ressentimento”. Eu qualifico o ressentimento, na esteira de Nietzsche e Max Scheler, como um modo de produção do sentido, de valores, de identidades, de ideias morais, políticas e cívicas que repousam sobre alguns pressupostos e que visam a uma transmutação dos valores, isto é, visam à imposição de valores inversos daqueles que predominam, valores supostamente próprios a um grupo despossuído e reivindicador.
O ressentimento continua sendo um componente de numerosas ideologias de nosso século, tanto de direita (nacionalismos, antissemitismo) como de esquerda, insinuando-se em diversas expressões do socialismo, do feminismo, dos militantismos minoritários, do terceiro-mundismo. O ressentimento se apoia sobre alguns sofismas: que a superioridade adquirida no mundo empírico, no mundo de fato, é em si mesmo um princípio de baixeza moral; que os valores reconhecidos e defendidos pelos dominantes são desvalorizados de ofício, que são desprezíveis em si mesmos e não apenas injustos os benefícios que eles proporcionam, de forma desigual, e que toda situação de subordinação e inferioridade dá direito ao status de vítima; que qualquer fracasso, qualquer incapacidade de tirar proveito nesse mundo pode se transmutar em mérito e se legitimar ipso facto em queixas contra os ditos privilegiados, permitindo uma negação total da responsabilidade. Se o sucesso nesse mundo não é, de forma alguma, a prova necessária de mérito, o pensamento do ressentimento retira dessa regra a tese de que o insucesso é, ao contrário, desse mesmo mérito um indício conclusivo.
Em suma, a lógica do ressentimento postula que a superioridade adquirida no mundo é indício da baixeza “moral”, e que toda situação de subordinação, todo fracasso, toda memória de contenciosos passados dão direito ao nobre estatuto de vítima — que qualquer incapacidade de tirar proveito neste mundo é transmutada em mérito e creditada em queixas contra os chamados privilegiados, permitindo a negação da ordem das coisas. É assim que Nietzsche fala de “transmutação de valores”. O ideólogo do ressentimento confronta um mundo impostor e opressor, cultivando queixas.
Trata-se, sem dúvida, de um mecanismo ativo em vários países hoje em dia e é isso que me leva a sugerir voltar a ele e pensar que é fecundo analisar o mundo ideológico atual a partir desses parâmetros.
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O que é razoável em uma época pode ser considerado aberrante e absurdo em outra época. Mas qual é a relação existente entre o razoável, a hegemonia e as rupturas?
Eu tomarei Cervantes como âncora de minha abordagem: meu amigo Antonio Gómez-Moriana fez uma bela análise do encontro entre Dom Quixote e os Mercadores, análise que mostra a discordância cognitiva entre humanos que se encontram em uma mesma rota como um objeto-chave da ironia romanesca ao nascimento do gênero. Dom Quixote apela aos mercadores que cruzaram seu caminho a confessar que Dulcineia del Toboso é a dama mais bonita do universo. Os mercadores, espantados com essa bravata, mas que pertencem a uma mentalidade que chamaríamos de moderna, mercantil e prática, alertam ao nobre cavalheiro de que, se lhes fosse exibida um retrato da boa senhora, poderiam julgar sua aparência de modo mais exato. Ao que o homem de La Mancha, longe de se acalmar, respondeu com veemência que, se lhes mostrasse um retrato de Dulcineia, obviamente não teriam mérito em admitir o fato e que deveriam reconhecer os encantos da senhora unicamente por sua palavra. Uma lógica da honra feudal do arcaico Dom Quixote se opõe, nesse diálogo de surdos, a uma lógica “experimental”. Esse episódio cômico é apresentado por Cervantes, no limiar da modernidade, como o encontro de dois universos mentais não contemporâneos que permanecerão absurdos um para o outro.
Os historiadores das ideias mostram que as ideias do passado não são e não podem ser partilhadas por nós, porque elas resultam de raciocínios que não faríamos espontaneamente. O grande historiador americano Carl L. Becker desenvolveu o conceito de “climas de opiniões” sucessivos, entre os quais — unidade da razão humana ou não — a incompreensão é radical. Ele analisa uma passagem de Tomás de Aquino sobre o direito natural, um desenvolvimento sobre a monarquia em Dante. Não é que o leitor do século XXI esteja em desacordo com esses grandes espíritos, ou que ele pense diferentemente sobre esses assuntos — supondo que pense alguma coisa sobre eles —, mas sim que ele se encontra, diz-nos Becker, diante de uma forma radicalmente outra de raciocinar, forma que faz com que ele apenas consiga perceber, do início ao fim, o diferente como algo aberrante: “O que me incomoda é que não se pode descartar Dante ou São Tomás como pessoas não muito inteligentes. Se sua argumentação nos é ininteligível, esse fato não pode ser atribuído a uma falta de inteligência da parte deles. O fato de a argumentação apelar ou não ao assentimento não depende tanto da lógica que a sustenta, mas do clima de opiniões em que está imersa” (Carl L. Becker). Esse é realmente um objeto de minhas pesquisas.
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Em sua obra Dialogues de sourds (ainda sem tradução para o português), o senhor assegura que as pessoas argumentam bastante, mas se persuadem muito pouco. Seria talvez um fracasso da persuasão de um modo geral ou em que sentido seria possível pensar essa questão?
Todos os tipos de ideologias que a ciência política se emprega a descrever, a causalidade diabólica do racismo e do antissemitismo (Leon Poliakov), o Paranoid Style da direita norte-americana (Hofstadter), o pensamento gnóstico do socialismo revolucionário (Eric Vœgelin), os raciocínios de ressentimento dos nacionalistas e dos populistas, dos quais eu acabo de falar, foram e são qualificados como “irracionais” por aqueles que não compartilham suas crenças. Esse é o objeto do livro que vocês citam. Apesar de os humanos argumentarem constantemente, e em todas as circunstâncias, eles se persuadem muito pouco reciprocamente. Do debate político à briga doméstica, e desta à polêmica filosófica, essa é, em todo caso, a impressão constante que temos, e suponho que vocês, assim como eu, também a tenham!
Tendo sido essa primeira objeção formulada, uma outra questão vem à mente: por que se persuadindo tão raramente, os humanos não se desencorajam, antes persistem em argumentar? Não apenas isso: os indivíduos e os grupos humanos geralmente falham em mudar as crenças dos outros, mas nada aparentemente os desencoraja de continuar tentando. Eles são, portanto, capazes de sustentar, em polêmicas (filosóficas, religiosas, políticas etc.) intermináveis, falhas persuasivas indefinidamente repetidas.
Vocês poderiam dizer quanto a isso: qual o sentido de estudar a retórica da argumentação se ela leva à persuasão tal mal e raramente? No entanto, se vocês acreditam que a lamentável situação que estou descrevendo é, grosso modo, correta o suficiente, e que o otimismo da razão universal não é apropriado, resta analisar esta situação que é, sem dúvida, complicada e decepcionante, mas que merece consideração como qualquer outro fenômeno social recorrente.
Se eu apenas argumentasse com pessoas que acredito ter chances de convencer, eu teria dificuldade em explicar a abundância de discursos argumentados — das polêmicas políticas às brigas domésticas, precisamente — , em que as chances de persuadir o interlocutor, de modificar seu ponto de vista são praticamente nulas e nos quais a única conclusão é aquela, aborrecida, da briga doméstica: “You just don’t understand” (“Você simplesmente não entende”).
Os humanos coexistem em sociedade, bem ou mal, duvidando da racionalidade de seus contemporâneos: talvez haja algo a ser aprendido com essa banalidade paradoxal. Além da ordem do raciocínio, podemos recordar, aliás, desta outra banalidade: os fumantes, os gastadores, os avarentos, os gulosos, os galanteadores são todos “irracionais” para quem os observa sem compartilhar a sua paixão; quem vive na castidade, come como forma de purificação com o mesmo entusiasmo, e bebe apenas água, não é menos racional para quem não partilha seu desprezo pelos prazeres.
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As polêmicas atuais sempre estão ressuscitando outras polêmicas mais antigas e, de algum modo, as atualizando. Assim, os “mesmos argumentos” estão sempre retornando. Diante disso, como a noção de “arsenal argumentativo” pode nos ajudar a compreender as polêmicas hoje?
Eu acabei de explicar e repito: abordo a retórica como o estudo de fatos históricos e sociais. Eu estudo a retórica não como uma atemporal “arte de persuadir pelo discurso”, mas como uma abordagem metodológica, inscrita no cerne da história intelectual e cultural. Em tal problemática, eu dou a “racional” um sentido relativo. O termo se refere ao conjunto de esquemas persuasivos que foram aceitos, em algum lugar e em um determinado momento, ou que são aceitos em tal ou tal meio, em tal ou tal comunidade política, por exemplo, como sagazes e convincentes, embora sejam considerados fracos, sofísticos, “aberrantes”.
Não podemos ter qualquer ideia, crença, opinião, nutrir qualquer “programa de verdade” a qualquer momento e com toda liberdade meditativa e criativa. Em cada época, a oferta é limitada a um conjunto restrito de paradigmas “quase lógicos”, meios de prova e pressupostos tópicos. Os “espíritos ousados” de uma época ainda o são apenas à maneira de seu tempo. O historiador dispõe de palavras terminadas em “-ável” e “-ível” para expressar a limitação e o confinamento cognitivo de qualquer momento histórico: o conhecível, o pensável, o argumentável, o crível, o dizível — com sua mutação e sucessão imprevisíveis.
O historiador das ideias é constantemente confrontado com a obsolescência do que é convincente e até mesmo do que é razoável. O passado é um vasto cemitério de “ideias mortas” produzidas por pessoas desaparecidas, ideias que, no entanto, foram mantidas, há muito ou não muito tempo, para serem demonstradas, adquiridas, mas também ideias que se mostraram importantes, mobilizadoras etc. As ideias de que o historiador faz a história são ideias que foram recebidas como credíveis, como “sólidas”, as quais, no momento em que são estudadas, se desvalorizam ou se colocam em vias de ser desvalorizadas. As ideias também são consideradas belas ou nobres e se tornam suspeitas a posteriori — vide a “ideia” comunista. As ideias em seu tempo convincentes, estruturantes, tornam-se insanas e estéreis.
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O senhor estudou a história do conceito de “religião política”. Entende que esse conceito ainda é válido para se compreender a realidade política contemporânea?
Como todos os fatos da história das civilizações e das sociedades, as mentalidades e as crenças mudam pouco a pouco sub-repticiamente. A sacralização da política no século XX foi produto da própria secularização. O fascismo italiano foi uma religião secular, assim como também o foram o nacional-socialismo e o comunismo, embora de maneiras diferentes: era uma tese em forma de paradoxo meio século atrás, que se tornou um lugar-comum entre historiadores, uma ideia que se encontra em toda parte: “o século XX, que a década de 1930 ilustrou — sem, infelizmente, retirar-lhe o delírio da barbárie —, não é um século ateu. É o contrário de um materialismo plano, no sentido de que é sempre compreendido e no qual às vezes se tenta, de forma tão branda, acreditar. É uma época religiosa, provavelmente mais religiosa do que qualquer outra, mas de uma religião pagã, cujos deuses, os ‘ídolos de pedra e de madeira’ são chamados de Estados, Natureza, Campos ou Partido” (Bernard Henri Lévy). Com suas promessas escatológicas, seus ícones e seus rituais, todo totalitarismo se apresenta como uma “religião laica”, que desintegra a sociedade civil e transforma o povo em uma comunidade de fiéis. Não era necessário, de fato, uma convicção de essência religiosa para sacralizar a violência, para fanatizar as “minorias ativas”, para fazê-las massacrar incansavelmente os representantes “das classes moribundas”, os “monstros morais” e outros “inimigos do povo”, para diabolizar os reticentes, exterminar os oponentes, perseguir igrejas e crentes que adorassem uma fé concorrente, para justificar o terror e a carnificina, todos esses crimes desprovidos de qualquer racionalidade política ou econômica residual? A política do século XX, nomeadamente nas suas formas mais extremas e atrozes, as convicções que, para o bem e sobretudo para o mal, movimentaram os atores, pertencem a uma outra ordem que não a política; pertencem, na verdade, à história das religiões tanto quanto — em outras regiões do mundo — os conflitos fanáticos e assassinos, abertamente reconhecidos como religiosos, e a instalação de regimes teocráticos.
Vocês perguntam, então, com toda razão, se esse conceito ainda é válido. É claro que as religiões totalitárias entraram em colapso e o mundo pagou um preço imenso por seu desaparecimento. No entanto, o ecologismo que se iniciou diante de nossos olhos para desenvolver seus rituais culpabilistas é o mais crível dos candidatos a uma sacralidade renovada e reinvestida para o novo século. Se o problema do antigo mundo judaico-cristão ainda é aquele da Salvação por meio da ascese, a salvação ecológica tem, em minha opinião, um bom potencial. Eu acho que a ideologia ecologista que é alimentada pela angústia a respeito das novas tecnologias, em total contraste com o gosto das chaminés da usina vomitando sua fuligem reforçadora do produtivismo socialista de outrora, é uma das expressões contemporâneas da angústia sagrada como regulador social, tendo em vista a falta de projetos comuns. O ecologismo não é apenas o único movimento atual que apresenta potencial para se transformar em milenarismo, mas, de fato, é possível ver, em “tempo real”, essa mutação se operar na América do Norte. Seitas ecomilenaristas aguardam uma catástrofe final que engolirá os poluidores, seguida por uma regeneração ecológica na qual apenas um punhado de Verdes sobreviverá. O espírito escatológico, expulso da história, refugia-se numa natureza reificada como “anti-história”: esta é uma hipótese desenvolvida por D. Folscheid. Se um novo sincretismo está para emergir, cinco princípios ativos, vitimismo/culpabilismo, sacralização dos direitos humanos, ecologismo, pacifismo, feminismo estão disponíveis para uma futura síntese. Já estamos vendo o ecologismo e suas variantes mais místicas, como o ecofeminismo, combinando-se naturalmente com a Nova Era (New Age) e com os milenarismos norte-americanos. Algo de gnóstico persiste na inversão dos valores a que me refiro, do progressismo à ecorreligiosidade: a civilização industrial é, e permanece sendo, do socialismo utópico dos anos românticos ao ecologismo, o Império do Anticristo. Percebemos ou vislumbramos o potencial apaixonado do zelo da sacralização ecológica com seu espírito de censura e intimidação, seu desejo de reeducar os ímpios, seu possível fanatismo. A “boa consciência” dos crentes humanitários e ecológicos e o esboço da caça às bruxas por esses novos entusiastas completam um quadro psicossocial virtual em conformidade com a religio perennis.
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Qual o papel da argumentação conspiratória na política contemporânea e qual é aí o lugar da religião?
Isso equivale a perguntar, por exemplo: por que a internet é o vetor diário de ideias questionáveis e falsas, mitos e explicações conspiratórias? Exemplo: Acusada por sites conspiratórios, a NASA é forçada a negar que estabeleceu colônias de crianças-escravas sexuais em Marte. Um “especialista” entrevistado pelos conspiradores do Infowars afirmou com segurança que, de acordo com suas “fontes”, crianças estavam sendo sequestradas para se tornarem escravas em Marte. A NASA publicou uma negação em seu site oficial (Ver Le Monde, 03/07/2017). Pergunta para você, leitor: por que os advogados da NASA a aconselharam a não ignorar isso?
Essas ondas de boatos deveriam nos fazer rir imediatamente na hora e nos fazer desolar, posteriormente, no momento da reflexão. A questão, na verdade, é que esses boatos, cuja imprensa “séria”, enquanto sobreviver, acredita dia após dia demonstrar aos leitores a inverossimilhança e o ridículo muito “evidentes”, são amplamente difundidos e acreditados massivamente por ignorantes “deploráveis”. O boato pós-verdadeiro não é a mentira, o que suporia, antes, uma percepção do que seria a verdade intencionalmente negada; ela é o produto de uma indiferença de princípio à antiquada distinção entre o verdadeiro e o falso.
O aumento das teorias conspiratórias pode parecer um efeito direto e dano colateral da pandemia. No meu canto do planeta, o Québec, “cerca de 20% da população quebequense adere a uma ou outra teorias da conspiração em torno da pandemia da COVID-19, confirma uma sondagem realizada pela entidade CROP”. O sentimento de exclusão social parece ser o ponto comum de quem acredita nessas teses. Então, qual é o lugar da religião ou da religiosidade aqui? Proponho uma fórmula em duas teses que utilizo para explicar a situação: fé religiosa em declínio; credulidades pararreligiosas em ascensão e privatização das crenças.
A decomposição das fontes tradicionais de confiança e de autoridade gera uma sociedade crédula, desconfiada das fontes “oficiais”, mas também uma sociedade pronta a acreditar em boatos veiculados pela rede, com origens muito incertas, suspeitas; uma sociedade pronta para seguir a palavra de impostores, de charlatães, de milagreiros e de gurus, embora a fluidez das filiações, apesar da tendência totalitária de várias seitas, parece ser também a regra. A Meditação transcendental, pregada pelo guru Maharashi Mahesh Yogi, que era surpreendentemente popular nos anos 1970 da minha juventude, voltou ao nada de onde veio. Movimentos “Nova Era” (New Age) e religiosidades “orientais” ainda abundam na Web, mas se concretizam, se podemos usar esse verbo, em comunidades virtuais fugazes e mutantes. Astrologia, yi-king e outras “tradições” divinatórias, credulidades telepáticas, cultos de energia cósmica, expectativa de discos voadores e alienígenas messiânicos, religiões de OVNI’s, práticas de encantamento e outros meios de magia negra, doutrinas da Experiência de Quase Morte, esse mercado digital abundante obedece à inconstância da moda. Olhando para trás, na minha opinião, estamos testemunhando, acima de tudo, uma explosão individualista, uma privatização da metafísica que os pesquisadores qualificam por meio de fórmulas desconcertantes: “religião à la carte”, “religião em pedaços”…O religioso ainda fala para certas mentes, mas de forma fragmentada e não segundo dogmas, nem no seio das comunidades eclesiais e por meio de liturgias e ritos coletivos. Podemos falar de descomunitarização do fato religioso. É então o próprio sentido da palavra, a essência da coisa, que muda: A religião hoje é regulada “pelas necessidades individuais” dos fiéis não muito fiéis, livres para fazer compras, para conversar no WhatsApp, de entrar e sair da religião a qualquer momento. Danielle Hervieu-Léger toma emprestado, para dizer isso, o termo, na moda, “desregulamentação”… A religião serviu, secularmente, para criar e manter comunhões; uma religiosidade privatizada, uma fé que deve permitir ser individualizada, isto é — do ponto de vista histórico —, o mundo de cabeça para baixo. Um supermercado de religiosidades coloridas, uma religiosidade para consumidores cansados e mutantes fazem parte do triunfo do marketing e do consumo — a reversão duradoura das funções do religioso não é menos impressionante. Quando a história, vista a longo prazo, dá à luz — isso é muito raro — um caso absolutamente paradoxal, vale a pena parar e questionar.
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A construção social do inimigo parece se passar por rotulações e diabolizações do outro. Qual o peso desse recurso nas lutas políticas contemporâneas e quais os seus limites?
A Internet está em processo de se transformar (ou isso até já tenha se cumprido) em uma bagunçada arena de batalhas, raivosa e odiosa, onde todos os golpes são permitidos, onde todos os debates alimentam o ultrajante, se transformam em injúrias, em reductio ad Hitlerum ou ad Stalinam, se voltam para o julgamento da ordem do dia, em particular para o julgamento de intenções instruído, precisamente, na forma de uma acusação stalinista à ameaça explícita, ao desejo de silenciar. Podemos pensar que essa é a natureza do meio “quente” dos blogs e das redes sociais, e que são os sentimentos de invulnerabilidade e de irresponsabilidade que eles inspiram os responsáveis por obliterar e suprimir a argumentação racional, a discussão moderada. É inconcebível que essa dinâmica mude rapidamente. A lista básica de rótulos estigmatizantes pode ser facilmente traçada: “fascista”, “racista”, os mais antigos, permanecem insubmersíveis, aos quais foram acrescentados sucessivamente “sexista”, “homofóbico” e “islamofóbico”. Observamos um aumento do poder deste sumário meio de encerrar o debate pela pilhagem do adversário, processo evidenciado por um neologismo de sucesso imediato “diabolização” (diabolisation), advindo do anglicismo “demonização” (demonization).
“Terrorismo intelectual”, “polícia do pensamento” orwelliana, “nova inquisição” são as outras contrarrotulagens indignadas das pessoas visadas pelas manobras diabolizadoras. A “diabolização” do adversário e de suas ideias, a criação de um adversário diabólico fazendo mal pelo mal e que deve ser destruído, são fenômenos em evolução nos dias de hoje. Não é por acaso que as palavras diabolização/demonização entraram recentemente no vocabulário das mídias e na boca de todo mundo. O imaginário conspiratório, como disse acima, tem um futuro brilhante novamente. A “paranoia” do perseguidor-perseguido e o maniqueísmo dos milenaristas andam de mãos dadas: as ideologias radicais de ontem e de hoje mostram uma tendência para o recurso à causalidade diabólica, tendência, porém, reprimida pela consciência de sua afinidade com visões fascistas e antissemitas. A lógica conspiratória, que também prospera na Europa de esquerda, na antiglobalização e no esquerdismo antissionista é relativamente nova.
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Em tempos de crise, a retórica sempre ressurge. Concorda? Como o senhor vê o papel da retórica no século XXI?
Obviamente, vou pregar aqui para a minha capela. A retórica “antiga”, após um eclipse de quase dois séculos, voltou a vigorar no final do século passado, tanto nos estudos literários, quanto nas ciências políticas e sociais. Ela se concentrou na análise do discurso e na história das ideias. Foi apropriado: não há análise de discursos, análise de ideologias, sistemas de ideias, sem levar em conta as argumentações, as táticas persuasivas que as estruturam e garantem sua credibilidade em um determinado momento da história. A redistribuição bem-sucedida dos estudos retóricos é particularmente marcada na América do Norte. Mas também posso evocar diversos mundos acadêmicos em que esses estudos floresceram, Israel, Bélgica, pátria do pioneiro que foi Chaïm Perelman, meu professor. Uma história dialética e retórica, tal como eu as proponho, seria o estudo da variação dos tipos de argumentações aceitáveis, dos meios de prova, dos métodos de persuasão. Nada me parece mais específico aos estados de sociedade, aos grupos sociais, às “famílias” ideológicas e aos “campos” profissionais que o argumentável que neles predomina. Tal história de razoabilidade e de encadeamentos persuasivos eficazes em tal país, em determinada época, mal é esboçada; há muitos elementos elaborados (em um vocabulário díspar) por diversos historiadores e cientistas políticos, mas não realmente uma síntese.
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