Michel Maffesoli: “O reconhecimento do passado não é conservador ou reacionário, mas sublinha que a vida não existe ex nihilo”

Michel Maffesoli, sociólogo francês, é um dos maiores especialistas na pós-modernidade e uma referência da sociologia dos anos 1990. Professor de Sociologia na Sorbonne, é diretor do Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano e do Centro de Pesquisas sobre o Imaginário. Em entrevista exclusiva ao Estado da Arte, conduzida por Rodrigo Coppe, Maffesoli falou sobre o sagrado e a secularização, sobre conservadorismo e reacionarismo, sobre progresso e revolução, sobre o fanatismo, sobre nostalgia e transcendência. Tradução de Rodrigo de Lemos e Rodrigo Coppe.

Michel Maffesoli, sociólogo francês, é um dos maiores especialistas na pós-modernidade e uma referência da sociologia dos anos 1990. Professor de Sociologia na Sorbonne, é diretor do Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano e do Centro de Pesquisas sobre o Imaginário.

Em entrevista exclusiva ao Estado da Arte, conduzida por Rodrigo Coppe, Maffesoli falou sobre o sagrado e a secularização, sobre conservadorismo e reacionarismo, sobre progresso e revolução, sobre o fanatismo, sobre nostalgia e transcendência.

Tradução de Rodrigo de Lemos e Rodrigo Coppe.

Michel Maffesoli

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Na introdução de sua nova obra, La nostalgie du sacré, o senhor afirma: “Bem entendido, a modernidade conduziu inelutavelmente à secularização, à desmitologização e, então, à perda do sagrado. Mas para aqueles que estão atentos à verdade sombreada própria à espécie humana, é inegável que se assiste a uma surpreendente renascença ‘sacral’.” Quais são as manifestações desse “renascimento”?

Para compreender os feno?menos da Renascenc?a, que regularmente ressurgem nas histo?rias humanas, e? preciso destacar que, para ale?m da linearidade pro?pria a? mitologia do progresso que marcou a cultura ocidental, existem as e?pocas. Como se sabe, na Gre?cia, a palavra “e?pocas” significa “pare?nteses”: os pare?nteses se abrem e os pare?nteses se fecham. E? nesse sentido que se pode dizer que o pare?ntese moderno marcado essencialmente por uma racionalizac?a?o da existe?ncia e, como diz Max Weber, o famoso desencantamento do mundo, essa e?poca esta? acabando. Mu?ltiplas sa?o as manifestac?o?es desse retorno ao sagrado. E? interessante notar, particularmente entre as gerac?o?es mais jovens, os mu?ltiplos desejos pelo que e? da ordem do imaterial, do invisi?vel. Assim, por exemplo, os sites da Internet que propo?em diversas formas de meditac?a?o; o papel inega?vel desempenhado pelo tantrismo; os fatos de que as peregrinac?o?es (por exemplo, Santiago de Compostela) encontram um vigor inega?vel. A ti?tulo de exemplo, pode-se igualmente notar em uma cidade racionalista, como Paris, a multiplicidade dos lugares em que se oferecem candomble?s brasileiros. A lista esta? longe de se encerrar, mas o que e? certo e? que se assiste desde ha? muito tempo a um verdadeiro reencantamento do mundo.

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As teorias da secularização são muito variadas. Como compreende o conceito de secularização e o debate em torno dele nos últimos anos, já que afirma que há um “retorno do sagrado”?

A partir do se?culo XVII e mais precisamente sob o impulso da filosofia cartesiana vai se instaurar o que, de uma maneira figurada, pode-se chamar de “rolo compressor” do racionalismo, esvaziando os feno?menos sociais que na?o correspondem ao que a Escola de Frankfurt chama de “raza?o instrumental”. E? nessa perspectiva que, sob a e?gide da filosofia iluminista do se?culo XVIII, os grandes sistemas sociais, particularmente marxistas, do se?culo XIX, reforc?aram uma concepc?a?o materialista da vida individual ou coletiva. E? um materialismo que privilegia o elemento econo?mico e que esvazia, por isso mesmo, tudo o que tinha a ver com a espiritualidade ou com o imaterial. Sob o choque desse materialismo, pouco a pouco, a religia?o foi marginalizada e, como se pode constatar na Europa, as igrejas se esvaziam cada vez mais. E? nesse sentido que se pode compreender no sentido estrito a palavra “secularizac?a?o”; quer dizer, centra-se no presente se?culo, sem esperar uma fruic?a?o futura no parai?so celeste.

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Descartes

No capítulo 3, “La descente aux enfers”, o senhor diz que “As revoltas atuais não são mais da ordem do político, mas do que Joseph de Maistre chamava de ‘metapolítica’. O que equivale a retornar no tempo, a reencantar um mundo sem horizontes, que os revoltados contemporâneos dedicam-se a transfigurar e a transcender.” A quais revoltas faz referência e como elas demonstram essa ligação com a transcendência?

A expressa?o proposta do Joseph de Maistre, “metapoli?tica”, e? com efeito muito instrutiva para entender como, para ale?m de uma concepc?ão poli?tica puramente racional, renasce a necessidade, e mesmo o desejo de para?metros humanos que tenham a ver, de perto ou de longe, com o fato religioso. Por exemplo, tudo o que, com a ajuda da internet, acentua a partilha, a troca, e mesmo, para retomar um termo de conotac?ão religiosa, o caritativo. E? nessa base que se podem compreender as diversas sublevac?o?es que, em toda parte, estão em curso e que devera?o se desenvolver de maneira muito forte. Essas revoltas, essas insurreic?o?es do povo sublinham que ele na?o se satisfaz mais simplesmente como uma concepc?ão econo?mica, e mesmo economicista. Se se toma o exemplo dos coletes amarelos na Franc?a, ve?-se que o que era essencial tinha a ver com a troca, a amizade, ao fato de que as pessoas não se contentam mais com uma existe?ncia puramente materialista. E? nesse sentido que, como o historiador E. Hobsbawm falava da “era das revoluc?o?es, elemento essencial da modernidade, propus que se falasse da “era das sublevac?o?es”, que va?o crescentemente balizar a vida social.

E? isso a metapoli?tica, quer dizer, o fato de que não e? mais uma questão econo?mica que prevalece, mas algo que destaca o lado qualitativo da existe?ncia. Em numerosos pai?ses, na Europa, na Franc?a, na Ita?lia, na Espanha, chama a atenc?a?o o quanto essa dimensão qualitativa, e mesmo espiritual, ganha cada vez mais importa?ncia.

Joseph de Maistre

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Como o jogo entre progressismo e reacionarismo se relaciona com esse contexto de “nostalgia do sagrado”? Os novos messianismos sociais, que emergiram nas últimas décadas, têm alguma relação com essa nostalgia do sagrado?

O que eu chamo de “nostalgia do sagrado” serve a ultrapassar a disputa teta?nica que pode existir entre uma concepc?ão progressista da vida e uma concepc?ão reaciona?ria. Quanto a mim, falo frequentemente de uma progressividade, de uma filosofia progressiva que esta? cada vez mais em jogo na vida social. O que e? essa filosofia progressiva, sena?o o destaque dado a? Tradic?ão? A Tradic?ão, que e? a memo?ria imemorial da humanidade, ganha de novo importa?ncia. Assim, na Franc?a, as festas do patrimo?nio, o desenvolvimento dos monaste?rios, a importa?ncia dada a?s pra?ticas de meditac?a?o etc., isso tudo sublinha a “nostalgia do sagrado”. Para retomar um oxi?moro que propus para explicar a po?s-modernidade em gestac?a?o, para ale?m do mito do progresso ou da atitude reaciona?ria, trata-se do “enraizamento dina?mico”. Isso quer dizer que as pessoas voltam a dar-se conta de que, como toda planta, a planta humana necessita rai?zes para crescer e se desenvolver. A figura alego?rica desse dinamismo poderia se exprimir pela imagem do espiral.

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Em outra passagem o senhor afirma que “a verdadeira progressividade é aquela, justamente, que reconhece a autoridade do passado”. Poderia nos explicar o que quis dizer, já que ideia de “reconhecer o passado” seria tomada geralmente tomada como “conservadora” ou “reacionária”?

E? nessa perspectiva espiralesca que se pode compreender o que ha? de interessante na filosofia progressiva, oposta ao simples progressismo. A verdadeira progressividade considera o presente e o futuro como tendo fortes rai?zes, o que se pode resumir na fo?rmula de Le?on Bloy, quando ele diz que o profeta e? aquele que se lembra do futuro. Esse reconhecimento do passado na?o e? um movimento conservador ou reaciona?rio, mas sublinha que toda vida individual ou toda vida coletiva na?o existem ex nihilo. Elas sa?o, ao contra?rio, dependentes do que, no longo prazo, se sedimentou. A Tradic?a?o sublinha esse processo de sedimentac?a?o que e? o centro vivo de toda cultura aute?ntica. Sublinhando aqui que a vida social so? pode se criar a partir e em func?a?o de uma memo?ria imemorial, cuja eficie?ncia atualmente se esta? reconhecendo.

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Léon Bloy

Em um momento de seu livro, o senhor cita A França contra os robôs, de George Bernanos, e afirma que vivemos nos tempos modernos sob o mito do progresso, “transformado na forma profana da religião”. O que o senhor quis dizer com isso?

Toda a obra de Georges Bernanos — particularmente, claro, La France contre les robots, e sobretudo Le Chemin de la croix des a?mes, que, lembro, foi escrito no Brasil — toda a sua obra mostra bem, com efeito, como o mito do progresso substituiu a dimensão religiosa da existe?ncia. Mais precisamente, secularizando o messianismo cristão e substituindo o parai?so celeste por um parai?so terrestre. Numerosos são os autores que mostraram que esse progressismo e? um verdadeiro mito que profaniza a religião. Mais precisamente, e e? isso que a figura do robo? sublinha, valorizando ao extremo a tecnologia ou ainda as dimensões materiais e econo?micas de toda vida social. O paradoxo, para ficar em uma o?tica cara a Georges Bernanos e desenvolvendo-a, e? que, enquanto a te?cnica tinha contribui?do ao famoso desencantamento do mundo, chama a atenc?ão que e? essa mesma te?cnica que contribui a seu reencantamento. Basta ver a multiplicidade das redes na internet que tratam de problemas filoso?ficos, religiosos, intelectuais para compreender como se opera esse reencantamento.

A definic?ão que propus da po?s-modernidade resume bem esse discurso: “Sinergia do arcaico e do desenvolvimento tecnolo?gico”. Arcaico significa, no mais perto de sua etimologia (arche?), o que e? primeiro, fundamental, essencial. No?s so? estamos no comec?o desse processo e penso que essa ligac?a?o entre te?cnica e espiritualidade vai tornar-se uma realidade cada vez mais presente em toda vida social.

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O senhor diria que o projeto transumanista, ao ser compreendido como uma última etapa do progresso humano, teria também um fundo religioso/metafísico? Ou ele seria sua própria negação?

Ha? va?rias concepc?ões do transumanismo. A que e? dominante consiste em levar ate? as u?ltimas conseque?ncias o mito do progresso. E? isso que alguns chamam de “homem aumentado”. Esse aumento consiste em ultrapassar as imperfeic?ões para conseguir ultrapassar a morte. Desse ponto de vista, o transumanismo e? uma maneira de secularizar a dimensão religiosa ou metafi?sica. Seria desse ponto de vista uma forma profana da religião. Observo, entretanto, que existe, mesmo que ela seja minorita?ria, uma outra concepc?ão do transumanismo, que me parece mais pertinente. Ela consiste em lembrar que, em oposic?a?o a uma concepc?ão bastante estreita do racionalismo, e? preciso reforc?ar uma concepc?ão que se pode chamar de holi?stica. E? o que chamei de “razão sensi?vel”. Quer dizer, retomando ao mesmo tempo Aristo?teles e Sa?o Toma?s de Aquino, “nada ha? no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos” (nihil est in intellectu quod non sit prius in sensu). Desse ponto de vista, o transumanismo traduz bem o retorno e a importa?ncia da integralidade do ser, dito de outro modo, uma concepc?ão holi?stica do mundo.

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Aristóteles com um busto de Homero, Rembrandt, 1653

O senhor, em seu livro A violência totalitária, deixa claro que a revolução é perpassada por uma estrutura mítica. Essa estrutura é possível de ser reconhecida em movimentos políticos atuais? Estamos diante de um novo surto milenarista?

Com efeito, em meu livro, ?La Violence totalitaire, eu mostro que a revoluc?ão se inscreve bem em uma estrutura mi?tica, mais precisamente a de um messianismo que consiste em realizar na terra a famosa “Cidade de Deus”, de Santo Agostinho. E e? essa perspectiva que da? a? revoluc?ão sua dimensão milenarista.

Pore?m, em minha opinião, as insurreic?o?es poli?ticas atuais não se baseiam na busca de uma sociedade perfeita no porvir, mas se dedicam, para retomar uma expressão de Le?vi-Strauss, a uma bricolagem que consiste em se acomodar, a se ajustar, a viver com aqui e agora. Essa bricolagem e? uma maneira de se ajustar ao mundo valorizando o que e? da ordem da tradic?ão. Posso lembrar sob esse ponto de vista que a palavra revoluc?ão significa etimologicamente —revolvere — retornar, quer dizer, estamos vendo retornar o que em nosso progressismo simplista acreditava-se estar ultrapassado. E? sob esse ponto de vista interessante ver como, com a ajuda da internet, os movimentos poli?ticos atuais, caracteri?sticos do “net-ativismo”, não buscam a realizar uma utopia longi?nqua, mas se dedicam a executar o que eu chamei de “utopias intersticiais”, quer dizer, realizac?ões cotidianas, com outros, em uma perspectiva comunita?ria.

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Na última parte de seu novo livro o senhor afirma que “O pior não é menos evidente: o fanatismo. Aquele toma formas múltiplas”. Como combatê-los num mundo em que parece desaparecer a possibilidade de se encontrar amplos consensos políticos?

E? importante guardar na mente que o fanatismo contempora?neo, cujo exemplo perfeito encontramos no radicalismo islâmico, e? simplesmente uma reac?ão contra o que foi o racionalismo mo?rbido pro?prio a? modernidade. As sociedades equilibradas souberam ritualizar, integrar, homeopatizar o sagrado. E e? quando não se sabe fazer isso que esse sagrado toma a forma do fanatismo, sanguina?rio e totalmente indomina?vel. Mas me parece que esse fanatismo não e? realmente nada mais que um combate de retaguarda. E como todo combate de retaguarda ele e? tão mais violento, tão mais sangrento, quanto mais sente aproximar-se seu fim. Quanto a mim, e isso e? o centro do que chamo de “nostalgia do sagrado”, me parece que para ale?m e para aque?m dos diversos fanatismos de esse?ncia secta?ria, as pra?ticas juvenis — particularmente ao viverem, muito concretamente, uma perspectiva holi?stica, quer dizer, a união da alma e do corpo, da natureza e da cultura — integram o religioso e permitem, assim, evitar o aspecto perverso desse u?ltimo. E? em uma tal perspectiva que se encontrara? um verdadeiro consenso pro?prio a qualquer convive?ncia digna desse nome. E?, alia?s, em func?a?o disso que Aristo?teles definia o homem como sendo um zoon politicon. Animal poli?tico na?o no sentido estrito do termo, mas, ao contra?rio: o que me liga ao outro, o que sublinha o aspecto essencial de toda vida social, a comunicabilidade ou o “primum relationis”. E? em func?a?o disso que se pode dar a? palavra religia?o seu sentido essencial (religare), o que me liga ao outro, a? Alteridade da natureza, da comunidade e do divino.

Maffesoli, em palestra no Fronteiras do Pensamento

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