Erotismo e Holocausto

“Os filhos da segunda geração de sobreviventes cresceram com o mito Auschwitz velado. É característica da relação dos sobreviventes com seus filhos uma certa dificuldade de relacionamento, carinho, excesso de zelo e muito silêncio. Vergonha, trauma e limitação para contar o que aconteceu constituem paradigmas difíceis de serem enfrentados pelos sobreviventes. Permeados por histórias, livros, relatos truncados e muitas dúvidas, a segunda geração atinge a puberdade sem compreender seus pais e Auschwitz. É nesse contexto conturbado que se cria esse imaginário pornográfico na sociedade Israeli — inicialmente por meio dos Stalags e da literatura de Ka. Tzetnik, e posteriormente pela exploração cinematográfica.” Um ensaio de Jacques Fux sobre a fantasia pela Shoah, uma direção distinta e ainda pouco explorada.

por Jacques Fux

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O cenário, a memória e a segunda geração

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, uma geração de vítimas transtornadas, traumatizadas e perdidas segue em busca de seus antigos pertences e moradas, mas os encontra em posse de outros donos. Alguns imaginam a possibilidade de imigrar para Palestina que estava, até então, com as fronteiras fechadas em virtude do domínio inglês. O mundo não conhecia suas histórias, seus traumas e a grande tragédia dos Campos de Extermínio e por isso os questionavam constantemente, perguntando-os se eles se deixaram abater e se teriam sido fracos, entregando-se sem lutar. A ignorância, o silêncio e o desconhecimento reinavam nessa Era anterior ao testemunho. Como tudo isso pode ter acontecido? (Hoje, vivendo neste mundo político pandêmico e repleto de notícias falsas sabemos como a ignorância e o negacionismo infelizmente convencem e inebriam milhões.)

A grande mudança em relação à memória do Holocausto ocorreu em 1961 com o julgamento de Adolf Eichmann. As testemunhas, até então caladas, foram convidadas a testemunhar pelo que passaram. Os jovens finalmente ouviram e começaram a acreditar no que de fato tinha acontecido. Essa catarse coletiva foi unificadora e, a partir daquele momento, Auschwitz passaria a representar um sentimento de união e vínculo, mesmo diante da enorme diversidade cultural.

Essa transformação do sobrevivente, silenciado e desprezado, em um herói que resistiu não foi simples, sobretudo para a comunidade de Israel. Os filhos dessa geração, conhecidos como segunda geração de sobreviventes, cresceram com o mito Auschwitz velado. É característica da relação dos sobreviventes com seus filhos uma certa dificuldade de relacionamento, carinho, excesso de zelo e muito silêncio. Vergonha, trauma e limitação para contar o que aconteceu constituem paradigmas difíceis de serem enfrentados pelos sobreviventes. Assim, esse silêncio despertou medo, obsessão, invenção e fascínio nessa nova geração que crescia sem muito entender pelo que tinham passado seus pais:

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O desejo da juventude pela verdade sobre fatos da vida que os adultos parecem sempre esconder, e a simultânea curiosidade sobre o fascínio em relação ao sexo e à violência, transformara-os em um público particularmente receptivo para as representações do que poderia ser chamado “sinceridade explícita”, ou seja, a manipulação consciente ou inconsciente de leitores e telespectadores acerca dos seus próprios medos pelo não dito, pelos seus impulsos e por suas obsessões (BARTOV, 1997, p. 47).

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Permeados por histórias, livros, relatos truncados e muitas dúvidas, a segunda geração atinge a puberdade sem compreender seus pais e Auschwitz. Eichmann então é capturado, o julgamento começa e os testemunhos finalmente passam a contar suas histórias e experiências, já que o objetivo político do julgamento de Eichmann era justamente esse. Os testemunhos falavam catarticamente e a sociedade, assim como esses jovens da segunda geração, escutavam e fantasiavam o que tinha acontecido. Portanto, é nesse contexto conturbado, traumatizado por pais silenciados e filhos ansiosos por carinho, por entendimento e por desejo de saber, que se cria esse imaginário pornográfico na sociedade Israeli. Inicialmente por meio dos Stalags — livretos de conteúdo pornográfico nazista — e da literatura de Ka. Tzetnik — sobrevivente que escreveu livros com conteúdo similar —, e posteriormente pela exploração cinematográfica — nazisploitation —, a fantasia pela Shoah caminhou em uma direção distinta e ainda pouco explorada.

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Registro do julgamento de Adolf Eichmann, em 1961

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A pornografia da guerra: Stalags

Segundo Michel Foucault (1984), a pornografia e o erotismo do Nazismo estariam presentes em todos os lugares, especialmente nos Estados Unidos, França e Alemanha. E também nos stalags israelenses. Esses livretos chamavam a atenção especialmente pela narração de cenas de tortura, sadismo, dominação e sexo. Apresentavam oficiais femininas da SS vestindo uniformes sensuais e explorando sexualmente soldados aliados capturados durante a guerra. Autores sugerem que a literatura foi escrita originalmente em Hebraico (PINCHEVSKI; BRAND, 2007; BARTOV, 1997; LIBSKER, 2007), porém com uso de anglicismos e personagens com nomes americanos e ingleses com o intuito atrair maior público. A série Stalag foi um fenômeno de vendas durante os primeiros anos da década de 1960, sobretudo entre os filhos dos sobreviventes do Holocausto que estavam, também, interessados nos testemunhos apresentados durante o julgamento de Eichmann.

A explicação para essa questão foge um pouco às teorias tradicionais. Foucault argumentou acerca da banalização da imagem nazista (temos visto exatamente isso nos dias atuais), da utilização em toda parte da figura de Hitler, da suástica e de Auschwitz, porém seu estudo foi a posteriori e estaria mais relacionado à nazisplotation (cinematografia). Sontag (2002) discutiu, em seu famoso texto “Fascinating Fascism” (“Fascinante Fascismo”), o fascínio e encanto do cinema nazista, a partir da visão, sobretudo, dos filmes de Leni Riefenstahl. Para ela, a erotização e o fetiche estariam relacionados às relações de poder. O uniforme dos SS, que foi muito utilizado nos Stalags e nos filmes com conteúdo nazista pornográfico, também foi visto por Sontag como um signo erótico de poder e virilidade. Além disso, Sontag relaciona o Fascismo ao sadomasoquismo — enquanto o Fascismo é um teatro, o sadomasoquismo é a participação ativa nesse teatro com conteúdo sexual. Apesar de explicar alguns pontos em relação ao fascínio e ao sadismo dos Stalags, as teorias de Sontag não sustentam as relações culturais e complexas da recém sociedade Israeli. Já Friedlander apresentou o seu estudo sobre o “kistch and death” (“cafonice e morte”) que seria “uma sobrecarga de símbolos: um cenário barroco: uma evocação de uma atmosfera misteriosa, do mito e da religiosidade que envolve uma visão da morte anunciada como uma revelação que se abre para o nada — nada além de atrocidade e da noite” (FRIEDLANDER, 1993, p. 45). E mostrou que, talvez, a melhor forma de falar sobre essa experiência seria, paradoxalmente, por meio do silêncio.

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Susan Sontag

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Durante o julgamento de Eichmann, em 1961, começou a circular a primeira versão dos livretos conhecida como Stalag 13. O livreto conta a história de Mike Baden, um piloto Inglês que fica preso em um dos Campos nazistas. De repente preso, Mike Baden se vê na mão de um regimento SS composto somente de mulheres, com roupas e corpos provocantes, e que o exploraram sexualmente. O livreto narra ainda muitas práticas sadomasoquistas e, ao final de tanta exploração e tortura, os prisioneiros conseguiam se libertar e passariam a ser os torturadores e exploradores sexuais das SS. Aqui aparece uma relação importante: as vítimas buscavam e conseguiam vingança.

Com o sucesso da primeira tiragem (cerca de 80 mil revistas foram vendidas, de acordo com Pinchevski e Libsker), uma outra série é lançada — Stalag 217, que clamava ser “a verdadeira, honesta e brutal história da vida dos prisioneiros confinados por mulheres sádicas […] mulheres cuja essência toda é baseada no desejo transbordante pelo sangue dos outros, a fim de obter prazer sádico de sua dor, e explorar a masculinidade dos prisioneiros totalmente entregues” (PINCHEVSKI; BRAND, 2007, p. 389). A série continuou até 1965.

Os Stalags têm basicamente o mesmo enredo. Soldados paraquedistas americanos ou britânicos, que ao atacar os exércitos nazistas, são presos e levados aos Campos Alemães Permanentes — Stammlager. Nesse local, um grupo de mulheres SS, com roupas insinuantes, seios avantajados e uniformes sedutores, torturavam e estupravam esses soldados aliados.

A geração que se atraiu pelos Stalags encontrava nas torturas, nos abusos e no sadismo os seus próprios pais. Assim, para entender o sucesso dos Stalags é necessário compreender a questão do sadomasoquismo (dominação e poder) e sua representação nesse contexto conturbado da sociedade Israeli. Subversão, silêncio e mistério levaram essa nova geração a se interessar por essa prática: “O que aparece através do sadomasoquismo é a subversão, mais que a afirmação de um poder social codificado. Isto ocorre pela dramatização de momentos e situações onde o poder submisso é mais visível” (PINCHEVSKI; BRAND, 2007, p. 393).

Uma primeira forma de analisar o sadismo é pensar na possibilidade da representação de algo impensável ou inumano que subverteria a moral (KERNER, 2011). O termo criado a partir das experimentações de Marquês de Sade, além de apresentar um catálogo de perversões e libertinagem, polemiza a questão e “ilustra como o raciocínio estrito sistematizado promove uma desumanização das vítimas, e elimina todo sentimentalismo humano a partir de atos de crueldade” (KERNER, 2011, p. 102).

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Sade (Reprodução)

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Em relação à sociedade Israeli, o que representa o sadomasoquismo nesses livretos é o questionamento das relações de poder, seja diante do Estado autoritário e poderoso, seja diante dos pais traumatizados e silenciados: “em tais casos, a prática cultural do sadomasoquismo serve como uma resposta a maneira de lidar com as relações de poder socialmente codificados” (KERNER, 2011, p. 102). Por meio da erotização e do sadomasoquismo, os Stalags representavam o imaginário da relação do soldado aliado viril que se revoltava e se vingava dos perpetradores nazistas. Primeiramente submetidos à tortura e submissão, os soldados americanos e ingleses

Se por um lado aparece a justiça oficial representada pelo Estado, por outro, aparece esse desejo velado dos sobreviventes e dos que receberam essa postmemory pela vingança e pelo prazer de perpetrar a dor aos carrascos nazistas, como narrado nos Stalags: “os Stalags podem ser lidos como uma reencenação de mais um drama, o do direito de punir. Essa questão manifestou o que foi rejeitado de forma consistente no julgamento – que a punição seria inseparável da economia do prazer” (PINCHEVSKI; BRAND, 2007, p. 393). Um dos Stalags, por exemplo, apresentava em seu epílogo uma citação do Deuteronômio que justificaria essa busca pela vingança: “A mim pertencem a vingança e a recompensa” (DEUTERONOMIO, 32:35). O que se encontra nos Stalags é, portanto, mais que uma questão somente sexual e de violência: é uma questão de inversão de ordem e poder.

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Stalags (Reprodução)

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O prisioneiro — Ka. Tzetnik 135633 — e seu livro House of Dolls

Antes da chegada e do sucesso dos Stalags, um outro autor já criava polêmica. Ka. Tzetnik havia publicado em 1953 o livro House of Dolls, de forte conteúdo erótico, descrevia um suposto bordel que se encontrava em Auschwitz, conhecido como Joy Division, onde os soldados nazistas teriam relações sexuais com prisioneiras judias. O autor já havia publicado, em hebraico, outros livros polêmicos e também de forte conteúdo sexual, relatando sua passagem por Auschwitz: Salamandra (1946) e Piepel (1961).

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House of Dolls (Reprodução)

Ao ser chamado como testemunho durante o julgamento de Eichmann, o verdadeiro nome do pseudônimo de Ka. Tzetnik foi revelado: ele se chamava Yehiel Dinur e era sobrevivente em Auschwitz. A sua participação no julgamento de Eichmann foi uma das cenas chave desse penoso processo. O sobrevivente contou sua própria história e revelou ser o escritor Ka. Tzetnik (KZ, abreviação de Konzentrationslager, prisioneiro que tinha o número 135633). Visivelmente transtornado ao testemunhar e relembrar o que chamou das “crônicas de outro planeta”, Dinur desmaiou durante seu testemunho e teve que ser carregado para fora do tribunal. Anos mais tarde, em uma entrevista concedida ao 60 Minutos, o escritor argumentou que o mais pavoroso em Auschwitz, e que de fato reviveu durante aquele momento do seu testemunho, foi compreender que ele próprio (ou todo ser humano) teria sido capaz de fazer o que os nazistas (na figura do temível e banal Eichmann) fizeram: “Eu fiquei com medo de mim mesmo… Eu vi que era capaz de fazer exatamente isso. Eu sou… exatamente como ele. Eichmann está em todos nós” (LIBSKER, 2007).

Ao escrever sob o pseudônimo de Ka. Tzetnik, Dinur queria escrever em nome de todos aqueles que vivenciaram os terríveis acontecimentos de Auschwitz e que não foram mais que um número nessa grande indústria da morte. Seus livros foram os primeiros a circularem em Israel com o tema da Shoah e escritos na nova língua do povo e do Estado de Israel. Diferentemente dos Stalags, os livros de Ka. Tzetnik, apesar de lidos, não foram um grande sucesso de vendas, já que a sociedade ainda se encontrava no momento de silêncio em relação a esse tema.

A literatura de Ka. Tzetnik, a meu ver, pode ser vista como uma tentativa de ampliar o campo de ação da literatura de testemunho. Assim como ousou Georges Bataille, ao discutir os limites da linguagem, Ka. Tzetnik foi além da desumanização do ser humano, que encontramos nos Campos, para narrar acontecimentos além dos limites da linguagem e do entendimento humano. O autor, ao escrever o que alguns chamam de ficção-documentário, apresenta o indivíduo da forma mais cruel e crua possível, capaz de realizar as coisas mais absurdas e inconcebíveis enquanto seres supostamente racionais. Esses membros da ‘zona cinzenta’ — os afogados e sobreviventes de Primo Levi — atestaram os limites dos ambientes concentracionais nazistas e da crueldade humana.

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Primo Levi

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Além da literatura, Dinur ficou marcado como um importante testemunho no julgamento de Eichmann, pois o escritor criou, naquele momento, uma concepção de Auschwitz como sendo “outro planeta”: “isso é uma crônica de um outro planeta Auschwitz” (LIBSKER, 2007). Essa questão foi (e ainda é) muito discutida, já que não foi em outro planeta que a indústria alemã conseguiu criar, com tamanha eficiência, essa indústria do extermínio. Giorgio Agamben, por exemplo, problematiza a questão ao dizer que ainda vivemos nesse mundo que produziu, e é capaz de produzir, novamente, Auschwitz: “a matriz escondida e o nomos de um espaço político no qual ainda estamos vivendo” (AGAMBEN, 1998, p.166).

Ao violar tabus e tratar/enfrentar a pornografia, Ka. Tzetnik estaria tentando atingir e aumentar os limites e o alcance da língua e do testemunho? O não narrável estaria mais próximo na experiência verbal descrita por meio da perversão sexual? “Na literatura representativa de Ka. Tzetnik, ele é transportado para uma terra selvagem, onde traços normais humanos que constituiriam os seus determinantes genéticos de humanidade não têm lugar nenhum” (MILNER, 2008, p. 135). Discutir os limites do próprio ser humano e se ver apenas como um sobrevivente que teve a sorte de não ser um perpetrador é uma questão crucial e muito discutida na obra de Ka. Tzetnik.

A fascinação pela imagem pornográfica, pela desumanização do ser e pelo sadomasoquismo como forma de desacordo diante do poder, levou os jovens a se interessarem secretamente por esse tipo de literatura:

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Ka. Tzetnik apresenta assim a desumanização como uma redução dos seres humanos e de seus mais íntimos valores a nada, a objetos negociáveis ??no sistema de câmbio do Campo. A diferença entre o humano e a matéria foi eliminada nesta zona cinzenta em que uma política de escassez total leva à exploração das partes humanas e de seus restos (MILNER, 2008, p. 137).

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Qualquer tentativa de manter alguma sombra de humanidade e de solidariedade, compaixão, lealdade e amizade é descartada nas obras de Ka. Tzetnik, já que, segundo o autor, o “poder absoluto” desumaniza as vítimas: “O Poder Absoluto lança seres humanos a um estado natural, um universo hobbesiano de roubo e corrupção, desconfiança e animosidade, a luta de todos contra todos” (SOFSKY, 1997, p. 24).

Ka. Tzetnik construiu seus personagens de uma forma que ninguém desejava ver e acreditar ser possível. O ser humano, sim, seria capaz de chegar ao fundo, à desumanização total, à categoria de “muçulmano” — aquele totalmente entregue, sem mais “vontade” e “força” de continuar. Mas, segundo o autor, o ser humano ainda seria capaz de algo muito pior: perder qualquer capacidade de discernimento moral, de companheirismo e de humanidade. As narrações heroicas acerca dessa essência humana que ainda seria preservada, mesmo diante das grandes tragédias e privações, foram refutadas veementemente pelo polêmico escritor: “de fato, nos livros de Ka. Tzetnik, os casos mais extremos de estudo da existência darwinista são aqueles detentores de função que, ansiosos para preservar as suas posições, perdem todos os restos de empatia e solidariedade e cruelmente atacam colegas de cela que representam um obstáculo ao seu status” (MILNER, 2008, p.135).

Dinur havia escrito e publicado um livro de poemas antes do Holocausto. Após, evento que marcou profundamente seus escritos, sua vida e a criação de um novo personagem — Ka. Tzetnik —, Dinur dizia que seu livro de poemas não tinha mais sentido algum e que deveria ser queimado. Assim, pegou emprestado seu próprio livro na biblioteca e devolveu apenas as suas cinzas. Cinzas do seu passado, das suas crenças e das suas próprias palavras, agora inconcebíveis. Relendo a famosa frase de Adorno — “escrever um poema após Auschwitz seria um ato de barbárie” —, Dinur desconsiderou a própria poesia escrita antes do Holocausto já que, para ele, as palavras antes do Holocausto não significavam absolutamente nada.

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Yehiel De-Nur

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Filmes e ideias Sadiconazistas ou a Nazisexploração

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É possível reconstruir os interesses, atitudes e valores de uma sociedade perdida a partir do seu próprio lixo? Talvez devêssemos dar uma olhada em alguns dos lixos que estão passando em nossas salas de cinema hoje. Você gostaria que um historiador do futuro especulasse sobre sua vida baseado em uma impressão musguenta de uma cópia, por exemplo, do Ilsa, She Wolf of the SS? (CANBY, 1975, p. 13)

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Ilsa, She Wolf of the SS foi lançado em 1974 e o crítico do New York Times Vincent Canby teceu os comentários acima acerca do que chamou de lixo ou dejeto dessa nova categoria de filmes. O enredo do filme apresenta uma história muito similar ao dos Stalags, lançados quase uma década antes. O filme trata da personagem Ilsa, uma comandante da SS, voraz e sexualmente insinuante, que estuprava e praticava atividades sadomasoquistas todas as noites com algum prisioneiro e logo em seguida os matava. Enquanto os Stalags eram baseados em alguns momentos chave e revelações que surgiam durante o julgamento de Eichmann e os livros de Ka. Tzetnik relatavam a visão particular do autor enquanto sobrevivente de Auschwitz, esse filme apresentava cenas de torturas e exploração sexual supostamente inspiradas em um personagem nazista real, que já teria sido estudado historicamente. O nome Ilsa seria uma referência à criminosa de guerra Ilse Koch, conhecida como “The Bitch of Buchenwald” (Die Hexe von Buchenwald — “A puta de Buchenwald”), esposa do SS Karl Koch que comandou Buchenwald e Madjanek. Segundo testemunhos e provas, Ilse utilizava, por exemplo, pele humana para construir suas lâmpadas e golpeava frequentemente prisioneiros que a olhassem enquanto ela desfilava trajando apenas minissaia sem calcinha. Apesar dessa nota ‘explicativa’ apresentada no início do filme, a construção desse trash não representava um documento ou uma ficção histórica.

A maioria desses filmes de exploração sexual nazista apresentava o mesmo enredo: todos os alemães eram nazistas e todos os nazistas eram criminosos de guerra e pertenciam à SS. Além disso, remetendo à figura de Josef Mengele, todos os SS realizavam experiências médicas e sádicas com prisioneiros. Retomando o ‘fascínio do fascismo’, as comandantes da SS também eram sempre mostradas com uniformes e botas insinuantes e seios avantajados. Esses filmes de baixo orçamento e mal feitos foram lançados e comercializados principalmente na Europa e nos Estados Unidos, mostrando uma importante distinção entre Stalags e os livros de Ka. Tzetnik. Produzidos e comercializados na Europa e nos Estados Unidos esses filmes foram quase desconsiderados em Israel, pois, nesta nova nação judaica, os jovens já tinham recebido o mesmo tipo de conteúdo de forma diferente.

A questão aqui é interessante: se por um lado a segunda geração de sobreviventes em Israel convivia com o silêncio, com o trauma e com essa herança da memória que ia aos poucos sendo revelada a partir do julgamento de Eichmann, essa mesma segunda geração fora de Israel receberia, anos mais tarde, esses filmes em meio ao boom da literatura de testemunho e dos relatos e escritos cada vez mais frequentes dos sobreviventes do Holocausto. Talvez esse tipo de questionamento, trauma e enfrentamento de gerações, que foi discutido nos Stalags em Israel, tenha atingido a Europa e os Estados Unidos em proporções menores, mas com um atraso de alguns anos. Portanto, estudar esses filmes, assim como estudar os Stalags e os livros de Ka. Tzetnik seria uma forma de compreender o que estaria velado na literatura e nos documentos oficiais: “estas superfícies deram pistas sobre as mentalidades e as histórias que as narrativas oficiais não podiam” (KRECAUER, 1995, p.10).

O termo Nazisplotation é, no entanto, mais abrangente e engloba qualquer tipo de filme, desenho animado e propaganda que utilize o Nazismo e a violência como pano de fundo. O filme de Tarantino Inglourious Basterds foi discutido e rendeu polêmicas, mostrando como esse tipo de abordagem ainda atrai muito o público e a crítica, mas que é questionável enquanto ficção histórica.

Há ainda uma distinção entre os filmes trashes e/ou garbages, como são considerados os filmes da série Ilsa, os filmes SS Experiment Love Camp, SS Girls, SS Camp Women’s Hell, entre outros, e os que a pesquisadora Annette Insdorf, por exemplo, chamou de avant-garde. Segundo Insdorf, os filmes Il portieri di notte (The Night Porter, 1974, Liliana Cavani) e Salò o le 120 gionare di Sodomo (Salò, or the 120 Days of Sodom, 1975, Pier Paolo Pasolini) seriam novas representações sadomasoquistas e de uma certa qualidade, que tinham o intuito de quebrar tabus e representar metáforas do Fascismo. Entretanto, algumas críticas poderiam ser tecidas em relação a essa avant-garde cinematográfica:

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Uma das principais razões que os detratores ignorassem filmes Nazisploitation é que eles violam um tabu central da representação do Holocausto: eles mostram e exageraram nas atrocidades de forma que a torná-las compreensíveis, mesmo que os sobreviventes do Holocausto insistam que não-participantes simplesmente nunca poderão compreender já que não estiveram lá. Esse tabu desperta debates sobre a propriedade da representação dos crimes do Terceiro Reich no cinema e em outros meios de comunicação. Alegações como Theodor Adorno de que “escrever um poema depois de Auschwitz é ato de barbárie” ajudou a estabelecer o chamado Bilderverbot, uma “proibição do uso de imagens” em relação ao Holocausto (MAGILOW; LUGT; BRIDGES, 2012, p. 8).

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Há uma busca aqui por revelar/desvelar o que estaria escondido em relação aos desejos e obsessões dessa geração que buscou nesse gênero alguma forma de prazer e entendimento.

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Stalag (Reprodução)

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Referências bibliográficas

BARTOV, Omer. “Kitsch and Sadism in Ka-Tzetnik’s Other Planet: Israeli Youth Imagine the Holocaust”. IN: Jewish Social Studies, New Series, Vol. 3, No. 2 (Winter, 1997), pp. 42-76.

FUX, Jacques. A pornografia do Horror. Jornal Rascunho, 190.

FRIEDLANDER, Saul. Reflections of Nazism: An Essay on Kitsch and Death. Indiana: Indiana University Press, 1993.

HERZOG, Dagmar (org.). Brutality and Desire: War and sexuality in Europe’s Twentieth Century. New York: Palgrave Macmillan, 2009.

LIBSKER, Ari. Pornografie und Holocaust. DVD. Film. 63min, 2007.

MAGILOW, Daniel; LUGT, Kristin; BRIDGES, Elizabeth (org.). Nazisploitation! The Nazi Image in Low-Brow Cinema and Culture. New York: The Continuum International Publishing Group, 2012.

MILNER, Iris. “The “Gray Zone” Revisited: The Concentrationary Universe in Ka. Tzetnik’s Literary Testimony”. IN: Jewish Social Studies, New Series, Vol. 14, No. 2 (Winter, 2008), pp. 113-155.

PAGÉS, Natalio; RUBÍ, Nicolas. “Eros ausente: Apuntes sobre la erotización del nazismo”. 2010. Acesso 30/04/2013. Disponível em: https://www.catedras.fsoc.uba.ar/feierstein/escritosalumnos/ErosAusente.pdf

PINCHEVSKI, Amit; BRAND, Roy. “Holocaust perversions: The Stalags pulp fiction and the Eichmann Trial”. IN: Critical Studies in Media Communication. Vol. 24, No. 5, December 2007, pp. 387-407.

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