por Rodrigo de Lemos
Alexis de Tocqueville, em A democracia na América (1830), descreve em termos eloquentes aquele modo de opressão próprio à democracia conhecido como a “tirania da maioria”:
“Sob o governo absoluto de um só, o despotismo, para chegar à alma, feria grosseiramente o corpo, e a alma, escapando aos golpes, elevava-se gloriosamente acima dele; mas, nas repúblicas democráticas, não é assim que a tirania procede; ela deixa os corpos e vai direto à alma. O amo não diz mais: ‘Pensarás como eu ou morrerás’; ele diz: ‘És livre para não pensar como eu; tua vida, teus bens, ficas com tudo; mas, a partir de hoje, és um estranho entre nós. Conservarás teus privilégios na cidade, mas eles se tornarão inúteis; pois, se buscares o voto dos teus concidadãos, eles não te o acordarão, e se pedires sua estima, eles fingirão ainda recusá-la. Ficarás entre os homens, mas perderás o direito à humanidade. Quando te aproximares de teus semelhantes, eles fugirão tal de um ser impuro, e aqueles que creem em tua inocência serão os mesmos a te abandonar, pois todos fugiriam também deles. Vai em paz; eu te deixo a vida, mas te a deixo pior do que a morte.’”
Tocqueville concebia a sociedade democrática como um plano inclinado em que forças naturais a faziam tender a essa ditadura do mais cinzento conformismo. Cumpriria, então, agregar contra-forças que ponderassem essa atração gravitacional e que detivessem o de outro modo inexorável deslizar da esfera sobre o plano inclinado em direção ao reinado das maiorias, com o decorrente exílio humano dos dissidentes. Daí a importância por ele acordada aos corpos intermediários, como as associações ou os membros da profissão legal, que representavam interesses e princípios não necessariamente refletidos na opinião dominante.
É duvidoso que essas contra-forças estejam atuando com o efeito desejado em nossa época. Não porque esses corpos médios não existam, mas justamente porque, ao crescerem, alguns passaram a compor mundos à parte, dominados eles também por maiorias tirânicas. Tocqueville analisa a tirania das maiorias em um quadro nacional, americano. O deslocamento das identidades nacionais na nossa época não pareceu acompanhar-se de um esmorecer correspondente desse despotismo do número, mas de sua reprodução fractal em uma poeira de microcosmos: meios de ativistas de todas as cores, de todos os partidos; comunidades raciais e religiosas isoladas nas periferias das metrópoles.
Esse esfacelamento se dá num momento em que, no mundo intelectual, as visões decorrentes do Iluminismo caem em suspeição. A esquerda pós-moderna pede-lhes contas por seu suposto etnocentrismo; parte da direita imputa-lhes, em segundo grau, os crimes do totalitarismo progressista. Resta que, ao equiparar o espírito à universalidade, e ambos à liberdade, essas correntes de pensamento buscavam demarcar um espaço de autonomia da consciência individual quanto aos pertencimentos inscritos no corpo (o sexo, a cor) ou herdados de nascença (a classe social, a religião paterna, o vínculo tribal) – todas aquelas identidades que as formas contemporâneas e radicais da esquerda e da direita desejam reafirmar. Politizadas, algumas dessas comunidades de pertencimento orgânico seguem uma lógica de guerra contra o meio externo, o que contribui à busca de uma coesão da opinião interna a cada meio e, daí, à pressão acrescida sobre o indivíduo. Que cidadãos venham a resolver seus diferendos com paus e pedras nas ruas dos países mais prósperos e estáveis do Ocidente é apenas uma das consequências dessa nova tendência ao arcaísmo, e as cenas de Charlottesville talvez sejam tão-somente as primeiras de um ciclo.
Como sob muitos outros aspectos da nossa sociedade, as redes sociais fazem-se caixas de reverberação dessas tendências.
Isso não apenas porque, como no caso de Charlottesville, muitas das tribos contemporâneas se formam e se articulam por meio delas. Sobretudo, movida por esse funcionamento de grupo, uma nova forma de Justiça se constitui nessas redes. Nova, não; trata-se antes da velha Justiça popular. Viu-se isso em Charlottesville mesmo, na caçada às bruxas, via Facebook, contra os supremacistas brancos – os quais, não nos enganemos, teriam procedido exatamente da mesma forma caso tivessem tido “um dos seus” atropelado e assassinado pelos ditos antifascistas.
A tendência ao justiçamento pelas redes sociais não se limita a grandes eventos coletivos como o de Charlottesville; quem pode dizer que sua vida privada está imune? Uma mulher relata, em um texto de rede social, anos de um relacionamento abusivo com um homem, reclamando-se da intenção de esclarecer outras mulheres sobre o que há de intolerável nesse tipo de relação. Estas últimas se unem em apoio àquela que se reclama vítima de uma situação inaceitavelmente por demais comum a muitas delas. Ao mesmo tempo, uma massa se congrega num único asco ao antigo cônjuge, apedrejado em suas páginas pessoal e profissional, e cuja versão dos fatos ninguém se lembra de perguntar. Daí a culpa, antes mesmo de pesada, estende-se aos seus amigos, que teriam sido coniventes, no mínimo omissos. A condenação de todos: a perda dos direitos à humanidade de que fala Tocqueville, o ostracismo social e profissional. Todos os elementos do linchamento virtual em uma democracia contemporânea estão nessa história: um pequeno mundo homogêneo (no caso, os hipsters progressistas dos bairros centrais das cidades grandes – entre gays, militantes conservadores ou veganos, o funcionamento seria diferente?); a maioria unida por sentimentos unânimes de piedade e de repulsa; o exílio, descrito por Tocqueville, a que o acusado se vê condenado por seus pares.
O mundo ocidental, das tragédias gregas e da justiça romana a Beccaria e aos direitos do homem, levou séculos aperfeiçoando o sistema judiciário para assegurar o direito de defesa ao réu, a proporcionalidade entre a pena e o crime, a incidência da culpabilidade sobre o indivíduo, e tão-somente sobre ele. Estaríamos nos dirigindo a um mundo tribal de pequenas maiorias tirânicas em que a justiça pelas redes sociais estabelece o acusado de certos crimes ser culpado por ele ser quem é; a pena ser proporcional não ao crime, mas às paixões que o acusador suscita na turba justiceira, e a culpa extravasar do indivíduo aos seus próximos, familiares ou amigos? Tocqueville teria imaginado pior em seus parágrafos mais distópicos?