O fascismo para além das dualidades no pensamento de Renzo De Felice

A partir da obra de Renzo De Felice, Vinícius Müller argumenta que a perspectiva "que obriga que qualquer interpretação sobre o fenômeno histórico do fascismo seja limitada pela cronologia" não é apenas "evitável", como também "perde a sutileza de procurar tanto antes quanto depois o desenvolvimento e a sobrevivência de elementos da matriz fascista". "A questão não está na impossibilidade de eles existirem antes ou continuarem existindo depois, e, sim, na sabedoria de que não podemos permitir, nunca mais, que eles tenham um contexto favorável às combinações que possam potencializá-los." Uma publicação do Estado da Arte em parceria com o projeto Bolsonarismo: O Novo Fascismo Brasileiro, do Labô/PUC-SP.

por Vinícius Müller

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Este ensaio é uma parceria do Estado da Arte com o projeto Bolsonarismo: Novo Fascismo Brasileiro, desenvolvido pelo Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP, o Labô.

Em uma investigação multidisciplinar e colaborativa que envolve pesquisadores voluntários de diversas instituições de ensino superior do Brasil, o projeto BNFB pretende unir esforços para compreender o atual estágio da crise da democracia liberal, constitucional e representativa, a ascensão de populismos de extrema direita, a degradação das instituições brasileiras e a ameaça política, social e humanitária representada pelo movimento social e político do bolsonarismo.

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O risco é sempre imenso, mas o cálculo o domestica: analisar o passado em busca de respostas factíveis no presente não é terreno fértil só para o anacronismo, mas também para a confirmação, pela história, daquilo que já pensamos. E se a história nos serve para confirmarmos o que pensamos, também serve para quem a usa equivocadamente, como receita ou como instrumento. As analogias potencializam estes riscos, já que nos servem, na mesma medida, para codificarmos o que no passado podemos buscar para entender o presente, e também para os equívocos de achar que a história se repete. E, por fim, os riscos se amplificam quando o anacronismo, os vieses, a instrumentalização e as frágeis analogias são voltados não só para a reconstrução da história, mas também ao debate sobre determinado fenômeno histórico.

Contudo, na ponta do lápis, é possível o cálculo que, mesmo falível, nos protege parcialmente de, tomados por certa arrogância, arvorarmos nosso modelo mental, nossas respostas bem desenhadas e nossas análises internamente coerentes como o arsenal necessário para darmos a última palavra sobre algo que é, pela própria polêmica que enseja, gigante ante nossas convicções.

Tomado o risco e feito o cálculo, eis que a aventura à qual se lançou, décadas atrás, o historiador italiano Renzo De Felice nos parece revigorada e fundamental para questões que se impõem nesta quadra tão confusa e delicada de nossa trajetória. Em sua vastíssima obra, De Felice se pôs a vasculhar e, a partir disso, apresentar uma ampla tese sobre o fenômeno do fascismo, de forma geral, e sobre o fascismo italiano, em particular. E a qualificação referente à grandeza de seu trabalho se justifica tanto pela sua obra mais conhecida, a biografia de 6.000 páginas sobre Mussolini,[1] mas também pela sua tentativa hercúlea de minuciar as interpretações sobre o fenômeno do fascismo, ora diferenciando, ora aproximando-as em seus itens comuns.[2]

A polêmica lançada pelo historiador italiano revelou-se em muitas facetas e, pertinentemente, deu vazão a uma série de críticas — algumas contundentes demais — sobre suas intenções mais obscuras. De Felice havia sido membro do Partido Comunista em seu país, com quem rompeu nos anos 50 após a desmoralização do stalinismo. Mesmo ficando próximo no espectro ideológico-partidário ao seu filiar ao Partido Socialista, passou a ser visto como adversário ou inimigo da interpretação do fascismo feita pela esquerda. Neste sentido, já apontava para os riscos da generalização do termo ‘fascista’ como arma ideológica, e como tal uso geraria um esvaziamento da experiência histórica do fascismo nas mãos de interpretações vulgarizadas. Daí sua obsessão em detalhar não só a história do fascismo como também todo o debate em torno dela. Também daí a raivosa crítica que recebeu, já que esta imersão mostrava o fenômeno do fascismo para além da ‘luta de classes’ — o que para muitos significava defender, simpatizar ou no mínimo possibilitar uma espécie de desagravo ao Duce.

Nada mais enganoso. De Felice buscava exatamente o contrário, ciente que estava sobre o efeito-elástico possível neste tipo de caracterização: quanto mais o uso do termo e a interpretação sobre o fascismo fosse generalista, estigmatizada ou, no limite, irresponsável em sua tentativa de subordinar um fenômeno tão complexo a um só modelo teórico-explicativo, maior seria a chance de seus elementos variados serem tratados como internamente coerentes e partes de uma ‘resistência’ legítima e necessária. Ou seja, quanto mais ‘fascista’ fosse genérico e forçadamente enquadrado pela abordagem da ‘luta de classes’, mais seria coerente e necessário aos seus possíveis defensores.

Mussolini e os camisas-negras na Marcha de 1922

Por isso mesmo, o historiador italiano concentrou seu entendimento na História e não nas classificações sociológicas. Para tanto, dividiu sua atenção em duas partes. A primeira era o fascismo como ‘movimento’; a segunda, como ‘governo’. Ao se dedicar à primeira — a que aqui daremos destaque —, De Felice questiona duas das mais tradicionais análises sobre o tema: o fascismo como representação dos interesses da grande burguesia e dos capitalistas contrários ao avanço dos trabalhadores e, principalmente, dos movimentos socialistas e comunistas — e, por isso, o fascismo como reação conservadora. Para De Felice, o fascismo como ‘movimento’ pouco apoio teve, ao menos em seus dias iniciais, da alta burguesia italiana. Ao contrário, o apoio vinha de grupos da pequena burguesia e dos trabalhadores, ambos em busca de ampliação de suas respectivas vozes políticas. Ou seja, De Felice argumenta que a matriz do fascismo não seria a reação conservadora, mas sim a revolução. Isso, além de esvaziar o entendimento binário sobre fenômeno tão complexo, invertia o modo como a ideia de revolução era usada e manipulada ideologicamente. Seria o fascismo uma tentativa de revolução? Se sim, nem sempre a revolução é inevitável e desejável. Ao contrário, a resposta ao fascismo seria conservadora, no sentido de manutenção dos fundamentos anteriores.

Interessante então é perceber como a tese da inevitabilidade histórica do fascismo, neste caso, perde sentido — inevitabilidade que era amparada tanto no olhar daqueles que enxergavam os elementos do fascismo na trajetória dos países retardatários (ou com experiências diversas e distantes do ‘modelo’ anglo-saxão), como Itália, Alemanha e Japão, quanto no olhar daqueles que identificaram o fascismo como um estágio do capitalismo e, portanto, da exploração do capital sobre o trabalho inscrito, por hipótese, na essência do sistema. Para De Felice, mesmo que alguns elementos do fascismo pudessem ser identificados na trajetória da Itália, não deveriam e nem poderiam ser reorganizados de modo linear. Ao contrário, não haveria uma única trajetória unindo o pragmatismo da ética de Maquiavel e, mais recentemente, o nacionalismo do século XIX e a ascensão do fascismo. O significado e resultado do nacionalismo presente na unificação do país não seriam percussores do nacionalismo fascista, assim como os escritos de Nietzsche não seriam as origens do nacional-socialismo. A combinação e os significados destes elementos, por mais que eles estivessem presentes na sociedade há muito tempo, não foram os mesmos. Variavam conforme as circunstâncias. No caso do fascismo, a tríade revolução-iluminismo-nacionalismo, outrora combinados de modo ‘progressista’ na sociedade italiana, foram recombinados pelo impacto da Primeira Guerra. E geraram outra ponderação entre eles, esta sim estaria na base do fascismo.

O mesmo valeria para a tese de que o fascismo seria resultado do avanço do capitalismo. Muito pelo contrário, aponta De Felice: o capitalismo avançou muito mais em sociedades que nem de perto foram seduzidas pelos ideais do fascismo. Neste sentido, o fascismo seria uma tentativa de subversão dos elementos capitalistas, principalmente, e por óbvio, aqueles ligados à liberdade e individualidade. E sua retórica anticomunista seria antes de tudo um modo de disputar com os grupos de esquerda a proeminência sobre a crítica ao modelo liberal. Portanto, não uma oposição, mas sim uma disputa pelo protagonismo no ataque à democracia e ao capitalismo liberal. Deste modo, a aliança entre parte dos capitalistas e os fascistas foi muito mais tática do que o resultado de uma convergência entre seus valores fundamentais; no mínimo, tanto quanto o pacto Ribbentrop-Molotov, que por alguns meses aproximou Stalin e Hitler.  (E a ênfase, aqui, está em ‘no mínimo’.)

Stalin e Ribbentrop (Bundesarchiv)

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Estas considerações já são suficientes para entendermos os motivos pelos quais De Felice passou a ser alvo das críticas dos comunistas, inclusive da absurda acusação de ter sido responsável por um desagravo à Mussolini e ao fascismo. Não foi, evidentemente.

A crítica a ser feita — e que já foi feita, na verdade — à magistral obra de Renzo De Felice é sua excessiva simpatia com a tese de que o fascismo foi um ‘acidente’ ou um ‘desvio moral’ italiano e, com algumas semelhanças entre tantas diferenças, alemão, japonês e espanhol, entre outros.[3] Esta tese, não obstante sua relevância, tem grande potencial para se transformar em uma armadilha, que obriga que qualquer interpretação sobre o fenômeno histórico do fascismo seja limitada pela cronologia: ou seja, que só podemos entender o fascismo entre 1919 e 1945. Esta perspectiva, evitável, perde a sutileza de procurar tanto antes quanto depois o desenvolvimento e a sobrevivência de elementos da matriz fascista. A questão não está na impossibilidade de eles existirem antes ou continuarem existindo depois, e, sim, na sabedoria de que não podemos permitir, nunca mais, que eles tenham um contexto favorável às combinações que possam potencializá-los. E este contexto só pode ser alcançado e reproduzido de um modo: pela firme e inegociável defesa dos elementos fundamentais da democracia. Nem um ponto para cá, nem um ponto para lá.

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De Felice

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Notas:

[1] De Felice, Renzo. Mussolini. Turin: Einaudi, 1965–97. 4 volumes.

vol. 01: Mussolini il rivoluzionario, 1883–1920.

vol. 02: Mussolini il fascista. La conquista del potere, 1921–1925 (parte 1).  L’organizzazione dello Stato fascista, 1925–1929 (parte 2).   

vol. 03: Mussolini il duce.  Gli anni del consenso, 1929–1936 (parte 1)  Lo stato totalitario, 1936–1940 (parte 2).

vol. 04: Mussolini l’alleato, 1940–1945. L’Italia in guerra, 1940–1943 (parte. 1, livro 1). Dalla guerra “breve” alla guerra lunga  (parte 1, livro 2).  Crisi e agonia del regime (parte 2, livro 1).  La guerra civile, 1943–1945 (parte 2, livro 2).

[2] A obra que sintetiza as interpretações sobre o fascismo é: De Felice, Renzo. Explicar o Fascismo. Lisboa: Edições 70, 1976.

[3] Para as críticas e comentários sobre a obra de Renzo De Felice, ver: Chessa & Villari (ed). Interpretazioni su Renzo De Felice. Milano: Dalai Editore, 2002. Ver também Ledeen, Michael A. Renzo De Felice and the Controversy over Italian Fascism. Journal of Contemporary History, vol. 11, no. 4, 1976, pp. 269–283. JSTOR, www.jstor.org/stable/260199.

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