Ficção e História: Burke e Camus conversam em um bar

No encontro, Burke e Camus debateriam quais seriam os valores universais ameaçados pela lógica criminosa dos jacobinos e dos stalinistas.
Ilustração: Os Jogadores de Cartas, de Paul Cezanne

por Vinícius Müller

Entre os inúmeros modos de se reconstruir a História, há um que desafia certos cânones e que, talvez por isso mesmo, seja entendido como menos rigoroso ou, quem sabe, menos relevante à pretensão metodológica das Ciências Sociais em geral. Melhor dizendo, há uma justificada desconfiança entre os cientistas sociais em relação a determinados modos de se reconstruir a História e as tramas sociais que lhes são peculiares. É como se tivéssemos uma hierarquia, mesmo que informal, classificando os modos, as abordagens e até as fontes históricas, por uma régua que indica quem ou qual nos coloca frente a frente com a verdade ou, ao contrário, nos engana descaradamente. A História Econômica, por exemplo, é vista como séria – e é mesmo – quando sua fiança está nos dados e no tratamento que recebem. Mas, o que dizer sobre a percepção que um determinado ator tinha sobre as questões econômicas de seu tempo quando este ator era um romancista? Como reconstruir a História a partir de informações que recolhemos de um romance? Em outras palavras, mais objetivas, será que a ficção é uma fonte confiável para a História? Qual a possível relação entre Literatura ou  Cinema e a História?  

Os limites de uma abordagem assim são óbvios. Ou seja, é fácil apontar para a subjetividade presente no modo como um historiador pinça em uma obra literária aquilo que lhe interessa em sua reconstrução do passado. Assim como também é óbvio que a obra literária e quem a escreve não têm nenhuma relação com a verdade objetiva. Ao contrário, é esperado que a obra ficcional apresente certa ‘liberdade’ metodológica. E isso vale para a literatura, mas também para o teatro, para as artes plásticas e para o cinema. 

Contudo, como não reconhecer a relevância contemporânea anunciada na sequência de cenas nas quais Hitler, o Führer, ‘acorda’ depois de um sono de mais de meio século e tenta reconstruir seu prestígio político na Alemanha do século XXI? E naquela na qual é visto pelos alemães do século XXI como um ator interpretando um personagem cômico? Tais cenas estão no filme Ele está de volta, do diretor David Wnendt (2015) que, por sua vez, é uma adaptação às telas do romance, de mesmo nome, de Timur Vermes (Intrínseca, 2014). Estas reflexões, a rigor anacrônicas, são, concomitantemente, reveladoras de como o autor entende, em seu tempo, as possíveis continuidades da História. Assim como também revelam novas conexões entre elementos que, até então, pareciam estar distantes uns dos outros. Por exemplo, como que algumas características do pensamento e comportamento do líder nazista não foram definitivamente enterradas e ainda são reproduzidas, mesmo que separadamente, por outras lideranças contemporâneas. Somos capazes de, hoje, reuni-las novamente em uma proposta unificada? É relevante que identifiquemos tais ideias – mesmo que hoje estejam separadas e representadas por agentes diversos – para entendermos questões de nosso tempo? As diferenças entre os contextos são tão grandes que tornam desprezíveis tal comparação? Por fim, é possível identificar nas reações apresentadas às propostas e ideias que nos remetem ao nazismo e sua liderança algum traço de mudança e de continuidade no comportamento e nos valores de parcelas da sociedade? 

Estas questões certamente podem ser apontadas sem que lancemos mão da literatura, do cinema e afins. Mas, a possibilidade de invertermos o tempo, de aproximarmos personagens históricos de períodos tão diferentes, de combinarmos temporalidades diversas e, em suma, de criarmos novas hipóteses sobre os problemas que nos afligem, parece-me muito mais próxima daquilo que em essência faz a literatura, o cinema e outras formas artísticas do que nossos compreensíveis, justificados e relevantes, mas, limitados métodos científicos. 

Penso nestas questões a partir da releitura que faço de duas obras, ou melhor, de dois autores. Um deles é o irlandês Edmund Burke e seu clássico Reflexões sobre a Revolução Francesa (Edipro, 2017). O outro é Albert Camus ou, na verdade, um capítulo sobre o autor franco-argelino e sua obra, escrito por Tony Judt em O Peso da Responsabilidade (Objetiva, 2014). Ambos, Burke e Camus, solenemente desprezados por todos ou quase todos os professores e professoras que tive durante minha graduação em História. Talvez porque aqueles professores e professoras, preferindo ou concordando com Marx e Sartre, achassem que não deviam apresentar ideias e obras contrárias ou questionadoras ao que pensavam e defendiam. Ou que isso os tornaria menos engajados com suas causas e verdades; quiçá traidores. De qualquer forma, leituras que fiz em oposição àquilo que intuitivamente condenava, ou seja, de que deveria seguir certo mainstream da História em detrimento dos outsiders

Burke, o irlandês, que, não obstante ter apoiado e verdadeiramente se entusiasmado com os acontecimentos que culminaram na Independência dos EUA, se transformou em um fervoroso crítico da Revolução Francesa. Camus, o franco-argelino que após se transformar em um dos mais festejados intelectuais franceses do período pós-guerra, foi covardemente atacado por seus antigos companheiros, pois se aventurou em um manifesto anti-revolucionário e virulentamente anti-stalinista, O Homem Revoltado (Record, 2017). Estes posicionamentos, responsáveis para que ambos se transformassem em outsiders, foram em contextos posteriores retomados não com muito cuidado por interesses variados. Burke como mentor intelectual de uma possível aliança ocidental contrária ao avanço soviético nos anos da Guerra Fria; Camus como um antecessor de certo individualismo radical do liberalismo triunfante no pós queda do Muro de Berlim e do ocaso da ex-URSS. 

Minha aposta é que nenhum deles concordaria com o uso que fizeram de suas obras e posicionamentos. Mas, isso é especulação. Assim como seria, em um hipotético romance ou roteiro de um filme, um encontro entre eles. Não resisto em imaginar Burke e Camus em um bar explicando suas angústias e ideias um para o outro. E, principalmente, buscando identificar, cada um a seu modo, o que tem em comum com o outro. Parece-me quase real a cena na qual debatem quais seriam os valores universais que estariam sendo ameaçados pela lógica criminosa que viam, respectivamente, nos jacobinos e nos stalinistas. Burke apostando em questões como a liberdade, Camus na radicalização do Humanismo. O irlandês ironizando a demora de Camus em condenar o stalinismo; o argelino desconfiando que Burke condenara os acontecimentos da França por interesse pessoal, para agradar certa elite britânica. Ambos estariam errados, claro. O que faz com que se entendam nesta cena hipotética de um romance ou um filme que passa em minha cabeça é que ambos concordam que o jacobinismo, para Burke, e o stalinismo, para Camus, se arvoravam na condição de determinadores do ritmo da História, o que os autolegitimava como juízes. Para um cristão como Burke esta posição é inaceitável. Para alguém que entendeu profundamente o pensamento de Santo Agostinho (Camus se doutorou em Filosofia com uma tese sobre o pensador cristão do século V) era moralmente criminoso. 

Talvez estivesse aí a convergência. O conservadorismo cristão de Burke se arrepiava ao imaginar um futuro tomado por um código revolucionário, jacobino. Contudo, diferenciava o que pensava ser um jacobinismo daqueles que ‘não tem pão’ de outro, pretensioso e político.  Camus, por seu lado, se revoltava com a possibilidade de apagar um passado idealizado em Argel, cidade onde viveu até a juventude, em nome de uma causa ou ideologia que justificava o que ele mesmo chamava de ‘crimes de lógica’. E diferenciava este tipo de crime do que chamava, em contraste, de ‘crimes de paixão’. Ou seja, ambos se referiam a imagens cristãs, do ‘pão’ e da ‘paixão’. O irlandês de modo abertamente cristão; o argelino de modo tangente ou incidentalmente cristão.

Portanto, depois de tanto tempo, é possível que identifiquemos um trajeto, nada linear, que possibilita um entendimento que, desconfio, meus professores da graduação não gostariam que ninguém tivesse. Mas, se por um lado há uma crítica pertinente que aponta para uma falha metodológica nesta forma nada rigorosa de pensar a História, um bom romance, tanto quanto um bom filme, com sua liberdade e possibilidades de transgressão temporal, poderia revelar algo muito além do que o suposto rigor científico é capaz: Burke e Camus conversando em um bar. Azar de quem acha que a História não pode se valer da ficção.

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