Hermes Lima: pragmatismo e inspiração democrática no Supremo Tribunal Federal

Gabriel Heller recupera a trajetória de Hermes Lima, ministro do Supremo Tribunal Federal.
O ministro do STF Hermes Lima: democrata consistente

por Gabriel Heller

“Nenhuma constituição resiste à indiferença e conspiração dos guardadores. (…). Elas dependem da inteligência que as instrumenta e executa. Constituições não funcionam por si mesmas. Há de movê-las o pensamento mobilizador de suas potencialidades. Outro fator importante é a mentalidade constitucional do governante, a disposição de ouvir, de compor, de negociar, de sobrepor-se à impaciência, à cólera, de não desesperar das soluções legais”.

A resistente crise de representatividade que marca os últimos anos no Brasil, resultante da combinação de um Estado que não atende aos anseios sociais com frequentes escândalos de assalto aos cofres públicos, acabou por dirigir os holofotes – e as cobranças – para o Judiciário, o Poder sem votos, mais especificamente para o Supremo Tribunal Federal (STF). A cada julgamento polêmico, na tentativa de antecipar ou de condicionar os votos e a opinião pública, a imprensa traz um histórico dos Ministros e a sugestiva informação de quem foi o Presidente da República responsável por sua indicação para a Corte. A partir desse dado, aparecem “teses” um tanto deterministas que pretendem vincular a decisão dos juízes à orientação político-partidária da autoridade que os escolheu.

Apesar da contribuição que certos membros do STF dão para o descrédito do órgão e sem a ingenuidade de afastar a influência que afinidades ideológicas e amizades antigas podem exercer sobre alguns, é necessário desfazer, ao menos em parte, a visão de que o STF é um tribunal mais político(-partidário) do que jurídico. Para tanto, nada melhor que abordar a trajetória e o pensamento de um grande mas pouco lembrado Ministro do Supremo: Hermes Lima.

Nascido em Livramento do Brumado, Bahia, em 1902, Lima foi professor da Faculdade de Direito da Bahia, da Universidade de São Paulo e da Universidade do Brasil (atual UFRJ). Na vereda política, foi deputado estadual na Bahia, deputado constituinte em 1945-1946 pela União Democrática Nacional (UDN), fundou o Partido Socialista Brasileiro (PSB), exerceu os cargos de Ministro do Trabalho, Ministro das Relações Exteriores e Chefe da Casa Civil de João Goulart, além de Primeiro-Ministro no curto parlamentarismo da década de 60. Indicado por Jango, chegou ao STF.

Sua especialidade era o Direito Público. Tratou, em teses defendidas nos concursos para o magistério superior, da intervenção federal nos Estados e daquilo que denominou “poder” de revolução, recusando a ideia de um “direito” de revolução. Defendeu sempre, por sua utilidade social, o valor da ordem, a cuja proteção deve servir o Direito; em complemento, reconhecia na sociedade um Direito sempre novo a florescer, produto de novas necessidades sociais, o qual, quando não reconhecido e concretizado pelos governos, constituiria “a seiva das revoluções”. Realista e pragmático, constatava que o governo cabia invariavelmente a uma oligarquia – “com ou sem sufrágio universal” –, mas alertava que, quando os governos que deveriam servir ao povo convertem-se em seu opressor, a reação popular não constitui revolução, mas “reconstituição da legalidade”; conservador, defensor da ordem, é quem está com a Constituição.

Ao tratar da intervenção federal, manifestou a necessidade de pôr fim às farsas eleitorais típicas da República Velha e advogou que “a terra e a gente com seus problemas e desafios deveriam constituir os pontos básicos para referência da prática constitucional”. Nesse sentido, via no mecanismo constitucional uma utilidade prática por propiciar “o consentimento, a catarse para se aceitar que quem governa é sempre uma minoria” detentora do monopólio do uso legal da força.

Em 1933, Hermes Lima publicou o primeiro manual de Introdução à Ciência do Direito editado no Brasil. Resultado de uma mente inquieta em busca de uma explicação para o fenômeno jurídico, a obra revela um jurista marcado pela influência de autores canônicos da sociologia, como Vilfredo Pareto, Nardi-Greco, Achille Loria e Auguste Comte. Não à toa, enxergava o Direito como um fato social decorrente das exigências e circunstâncias impostas pelo regime de produção vigente, isto é, como instrumento da Economia.

Desprovido de soluções oriundas de uma justiça absoluta e ideal, o Direito não seria, portanto, mais que regras de conduta garantidas por uma sanção, necessárias pela insuficiência das normas morais. Lima rejeitava, assim, as diversas teorias do Direito Natural, encaradas como meras manifestações de preferências pessoais, que expressam não o Direito que existe, mas o Direito que parece melhor aos olhos de seus defensores, com o fim de conciliar seus conceitos com os fins práticos que têm em vista. (Não seria desarrazoado transpor essa crítica para boa parte das correntes refratárias ao positivismo jurídico surgidas a partir da metade do século XX).

Lima via no Direito Constitucional uma função basilar de satisfação das exigências democráticas, como conjunto de regras destinadas a tornar favoráveis à estabilidade social os sentimentos políticos dominantes nas democracias.

Merece ainda maior destaque, pela coragem e pelo contexto em que foi escrito, o pensamento democrático de Hermes Lima. Mesmo identificado com o ideário de esquerda, não se furtou a denunciar, em 1933, o autoritarismo de Stálin na União Soviética, afirmando que a liberdade diante do poder político é sempre o grande problema humano. Bem antes da concretização do welfare state, vendo no Estado um promotor de transformações sociais e econômicas, defendeu que os poderes de que dispõem os governantes não são direitos de um soberano, mas instrumentos para o exercício de seu papel social, para a oferta de serviços públicos, em suma, para o cumprimento de deveres estatais.

De maneira consistente, Lima via no Direito Constitucional uma função basilar de satisfação das exigências democráticas, como conjunto de regras destinadas a tornar favoráveis à estabilidade social os sentimentos políticos dominantes nas democracias. Lembrava, porém, que a participação do povo está sempre condicionada pelas circunstâncias econômicas e culturais e, como leitor de John Dewey, observava que a realização da democracia, do governo do povo por si mesmo, é impossível sem a igualdade de oportunidades que só a educação promove. Em suas palavras, “o sentido espiritual da forma democrática está portanto em elevar a massa dos cidadãos à participação efetiva no governo”.

Dois anos após a publicação de seu manual, a “conta” da Intentona Comunista de 1935 foi paga por boa parte da esquerda nacional, independentemente de participação ativa ou intelectual no levante. O registro transparente das críticas ao stalinismo não foram suficientes para evitar que Lima passasse mais de um ano preso pelo regime varguista, sem uma acusação formal. E isso, de seu turno, não impediu que o então professor reconhecesse valor à evolução administrativa dos anos Vargas. Sobre a Constituição de 1937, sempre classificada pela doutrina como autoritária, lamentou apenas não ter sido seguida por aqueles que a redigiram.

Como deputado constituinte, ajudou a elaborar a Constituição de 1946, percebendo, a seguir, a debilidade de nosso presidencialismo, incapaz de gerar mais colaboração que preponderância entre Poderes, e de nossa representação proporcional, em que “a caça ao quociente eleitoral primava sobre qualquer razão de ordem doutrinária”. Por “defeitos e falhas de nossa educação política”, não era mais esperançoso em relação ao Parlamentarismo.

Próximo a João Goulart, em cujo governo foi Chefe da Casa Civil, Hermes Lima foi indicado para o STF em 1963. Na Corte, julgou com a técnica e o pragmatismo que marcaram sua obra. Atuando durante o regime militar, logrou, com alguns de seus pares, proteger o pouco de institucionalidade que restava ao País: em casos nos quais, mesmo à luz dos Atos Institucionais, sobressaía a arbitrariedade estatal, proferiu votos condutores concedendo a ordem em habeas corpus e em mandados de segurança contra atos abusivos dos militares.

Por prudência política ou por convicção jurídica, não deixou de reconhecer a autoridade do governo militar e a validade do que se chamou, à época, “legislação revolucionária”. Mesmo assim, pouco mais de um mês após a edição do AI-5, juntamente com os Ministros Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal, foi aposentado compulsoriamente pelo Presidente Costa e Silva. Nada surpreendente, afinal, regimes antidemocráticos, por natureza, não sabem lidar com aqueles que se dedicam à defesa da igualdade e da liberdade.

A despeito das consequências que teve de suportar, Hermes Lima mostrou-se, ao fim da vida, tranquilo com as opções que fez. Como anotou em seu livro de memórias: “[é] necessário que o sistema não cale a razão, filosófica ou política, que a liberdade de criticar e dissentir não desapareça ou se amofine. No debate entre verdade e erro, a última palavra cabe à experiência e à luta”.

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