por Vinícius Müller
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Qual História nos serve para entendermos o presente? Sempre me questionei sobre isso e minhas primeiras lembranças me remetem a uma aula de Geografia na qual a professora insistia em dizer que os EUA tinham um plano para invadir e controlar a floresta Amazônica. A opinião — talvez desejo — da professora era ilustrada com um mapa que supostamente circulava em livros didáticos no país do norte. Nele era possível ver a Amazônia destacada por uma legenda que dizia ser, a região, uma área de controle internacional ou multinacional. Uma espécie de soberania compartilhada. Aprendi que era um modo de preparar futuras lideranças norte-americanas que, quando adultas, não respeitariam a soberania brasileira sobre a Amazônia e, assim, justificariam o imperialismo yankee sobre o ‘pulmão do mundo’.
A partir disso, passei anos esperando o dia que os EUA invadiriam a floresta Amazônica, o que me causava sentimentos ambíguos: receio e ódio ao imperialismo ao mesmo tempo em que imaginava o alívio e o prazer de poder falar ‘eu avisei’ aos familiares que insistiam em gastar suas poupanças de classe média em viagens para a Disneylândia. Os passos estavam estabelecidos; ou seja, fake news alimentada por teorias conspiratórias e/ou desejo de uma especialista (a professora de Geografia), identificação do inimigo de modo implacável, muito importante para a formação psíquica das crianças e adolescentes, e moralismo barato na passagem para a vida adulta.
A invasão norte-americana na Floresta Amazônica não veio, mas a sequência lógica, dedutível e amplamente sustentada pela minha professora continuava. Ela se transformara na narrativa de que a globalização e a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) eram a ‘nova Amazônia’ e representariam a versão modernizada do velho imperialismo. Não faz muito tempo que vi, em um documentário sobre a História Financeira do Brasil (12 moedas, de Renato Rossi), uma economista (?) falando que o Plano Real foi a submissão do país aos ditames do Consenso de Washington e que reproduzia a mesma história secular, desde 1500, de dominação estrangeira sobre o Brasil!
Contudo, depois de poucas décadas, o imperialismo yankee não veio. Foi no máximo uma subordinação bisonha de um presidente brasileiro ao seu par norte-americano. E mesmo assim, não representa, na essência, nenhuma novidade: mesmo que com qualidade e dignidade superiores, Dutra, Castelo Branco e Collor já tinham feito suas escolhas de política externa de modo indiscutivelmente alinhado aos EUA. Desta forma, há que se fazer algumas perguntas. Por exemplo, se a este possível imperialismo norte-americano não é contraposta uma outra narrativa fortemente presente na sua história; se há de fato uma relação positiva entre as manifestações daquilo que identificamos como demonstrações de uma autodefinida superioridade dos norte-americanos e o modo como identificamos o que seria o seu imperialismo; ou mesmo, ainda, se a história do modo como os norte-americanos se relacionam com o mundo pode ser entendida linearmente ou, ao contrário, apenas na medida em que identificamos os seus principais elementos e suas recombinações ao longo do tempo.
O exemplo recente é bastante elucidativo. Nas últimas décadas houve um reforço da posição de liderança dos EUA, principalmente após a queda do Muro de Berlim. Tal liderança se amparava em uma combinação que surgiu em meados do século XX: na liderança dos EUA repousava a chance de reorganização de um ambiente de cooperação internacional e de ampliação do mercado, ambos feridos pelos dois conflitos mundiais da primeira metade do século. E esta reorganização só seria segura se resistisse ao avanço soviético. Em 1989 parecia que chegara ao fim a única ameaça e que, portanto, mais do que nunca, esta combinação entre cooperação e ampliação do mercado mundial viveria para sempre.
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Mas não foi bem assim. As fracassadas incursões dos EUA no Oriente Médio, a ascensão da Ásia e especialmente da China, os ataques às torres gêmeas em 2001 e as feridas causadas nos derrotados da globalização mostraram os limites desta pax americana. E estes limites é que fizeram com que uma parte dos norte-americanos resgatasse um sentido à sua História que foi definido antes de sua liderança internacional. Esta História é a do isolacionismo.
É precisamente este o nome do novo livro de Charles Kupchan (Isolationism: A History of America’s Efforts to Shield Itself from The World. Oxford University Press, 2020). Kupchan é professor da Universidade de Georgetown e tem credenciais insuspeitas que devem ser reveladas antes que seja acusado de nutrir alguma simpatia aos republicanos e, principalmente, a Donald Trump: o autor foi membro do Conselho Nacional de Segurança nas administrações democratas de Clinton e Obama, sendo assistente especial do último.
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A história recuperada por Kupchan é muito anterior e mais longa do que aquela que colocou os EUA no papel de liderança internacional. Começa logo após a Revolução de 1776, ainda na presidência de George Washington. O ponto original deste isolacionismo foi a estratégia que deixava aos negócios o papel de mantenedor dos laços internacionais do país; e, portanto, dava certa independência à diplomacia que se entendia desamarrada de qualquer acordo feito com outras nações. O auge deste posicionamento foi a declaração resumida pela frase “América para os Americanos” do presidente James Monroe em 1823. Equivocadamente, a declaração de Monroe, mesmo sendo feita logo após a Segunda Guerra de Independência frente à Grã-Bretanha, foi vista como a antessala da expansão norte-americana sobre o continente e não como a reafirmação da política de Washington. Este isolacionismo perdurou até a Segunda Guerra Mundial, mesmo que tenha sido relativizado ou mesmo enfrentado em ao menos três outras ocasiões.
São estas três ocasiões que acabaram por combinar alguns elementos que tornaram esta posição norte-americana contraditória e, por isso, mal entendida por quem busca explicações em uma trajetória linear. A primeira foi a expansão territorial para o oeste, principalmente na conflituosa relação com os mexicanos. A conquista do Texas em meados do século XIX e a guerra pela Califórnia (1848) para muitos confirmaram a proposta imperialista dos EUA que enxergavam na expressão de Monroe. Contudo, a expansão e sua expressão no “Destino Manifesto” guarda maior relação com o isolacionismo do que com alguma manifestação imperialista, pois estava amparada na defesa de uma especificidade e superioridade norte-americana. E foi esta combinação que causou esta aparente ambiguidade no modo como os EUA pensam, desde então, seu papel no mundo. A defesa do isolacionismo, historicamente justificada e reforçada por lideranças incontestáveis da trajetória do país, como Washington e Monroe, passou a ser entendida como uma proteção de certa especificidade da nação ante uma possível impureza que viria de fora. E não como o respeito à soberania de outros povos e nações. Por isso que não havia contradição para os norte-americanos entre o isolacionismo de Monroe e a conquista do Texas e da Califórnia.
Esta mesma questão apareceu na guerra que o país travou contra a Espanha em 1898 e na Primeira Guerra Mundial. O isolacionismo foi relativizado em nome de uma missão, quase religiosa, de confirmação de um destino. E a guerra serviria ao isolamento e a manutenção desta especificidade na medida em que protegeria os EUA do mundo. Esta ambiguidade explica parcialmente a saída dos EUA, após votação no Senado, da Liga das Nações, organização proposta pelos próprios norte-americanos ao final da Primeira Guerra Mundial.
Foi apenas na Segunda Grande Guerra que esta aproximação entre o isolacionismo e a percepção de singularidade enfraqueceu. Após o fracasso do primeiro, representado pela frágil reconstrução europeia e pela eclosão do conflito de 1939, e do segundo, em forte queda após 1929 e a Grande Depressão, os norte-americanos formularam a crítica a este binômio entre isolacionismo e singularidade, vista como ingênua e arrogante ao mesmo tempo. Esta nova situação gerou a posição do país na reconstrução do segundo pós-guerra, na afirmação de sua liderança na institucionalização das relações internacionais da segunda metade do século XX por meio da criação das organizações internacionais como a ONU e o FMI e ainda na salvaguarda dos valores liberais ante a ameaça soviética.
A grande questão é que este mundo do pós-guerra acabou. E com ele muitos norte-americanos se voltaram à mesma composição que marcou o período anterior, ou seja, aquela caracterizada pelo encontro entre isolacionismo e a arrogância embutida em certo sentimento de singularidade de um povo escolhido. O contexto das últimas três décadas foi habilmente explorado por aqueles que viram a oportunidade de resgatar esta combinação em frases como “Make America Great Again” ou “America First”. E a ironia é que se antes achávamos que o melhor para o mundo era o isolamento dos EUA ante a possibilidade de termos a Amazônia invadida, agora comemoramos como uma vitória nossa a ascensão de um presidente que diz abertamente que pode interferir na Amazônia.
O livro de Kupchan revela que a verdadeira ameaça não era o universalismo dos EUA do pós-guerra. Este era uma tentativa de romper o isolamento tradicional do país em nome de uma ordem institucionalizada e liberal. O perigo maior é, na verdade, o isolacionismo reforçado pela arrogância contida na sensação da singularidade daqueles que ainda acham que são os preferidos de Deus.
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