Um elogio às contradições de José Bonifácio

O Brasil ainda não era formalmente independente em relação a Portugal quando José Bonifácio começou a escrever, sem muita organização, algumas de suas ideias e projetos à nação – então inexistente – que à época ele e alguns outros imaginavam.

por Vinícius Müller 

Museu histórico nacional

O Brasil ainda não era formalmente independente em relação a Portugal quando José Bonifácio começou a escrever, sem muita organização, algumas de suas ideias e projetos à nação – então inexistente – que à época ele e alguns outros imaginavam. Tais ideias, por muito esquecidas e, propositadamente subestimadas por tantos outros, apontavam para uma ambiciosa combinação entre elementos que pareciam, senão contraditórios entre si, ao menos incoerentes e pouco afeitos a uma conciliação. Herdeiro da tradição intelectual lusitana do século XVIII, Bonifácio se encaixava parcialmente naquilo que convencionamos chamar de Paradoxo do Iluminismo, como magistralmente nomeou Kenneth Maxwell em sua obra sobre Marquês de Pombal. Ou seja, buscava uma possível combinação entre elementos considerados ‘modernos’, oriundos do avanço do liberalismo e do iluminismo, mas sem ameaçar certos elementos considerados ‘antigos’, como a monarquia e aquilo que chamava de civilização europeia, fortemente marcada por traços do Antigo Regime.

A mesma improvável combinação esteve presente nos escritos de Bonifácio: monarquia em meio às repúblicas que se formavam na América, crítica à democracia e defesa da libertação e integração de escravos, projeto civilizatório conduzido pelo Estado centralizado combinado com a universalização da educação básica voltada à construção da cidadania. Essas possibilidades, tão claras e necessárias ao intelectual e político do litoral paulista (Bonifácio era de uma influente família de Santos, cidade portuária de São Paulo) foram apenas parcialmente incorporadas ao país que ele ajudou a criar em 1822. A monarquia, ilhada por um sem número de republicas que pelo continente aparecia, foi uma delas. Talvez a única. O que se impôs foi um projeto que mantinha intactos os elementos reprodutores da desigualdade sem, em  contrapartida, um projeto civilizatório de integração social. Ou seja, terra e escravos para alguns poucos, educação e cidadania para quase ninguém. Em suma, o atraso, como apontam Fragoso e Florentino em “O Arcaísmo como Projeto”.

Contudo, a parcial derrota de Bonifácio e a implementação de um modelo que, embora vitorioso, legou ao país características que até hoje, de um modo ou de outro, ainda identificamos como presentes (desigualdade de acesso, instituições pouco inclusivas, síndrome de ‘todo mundo é barão’, centralismo político, elite pouco ilustrada), não significou, lá no século XIX, que outros projetos e variações inexistiram ou simplesmente morreram. E mesmo derrotados, tais alternativas não foram esmagadas pelos vencedores e nem pela história. Muitas foram as possibilidades de ajustes e adaptações que enfrentaram. E tais ajustes dependeram de fatores diversos; entre eles características regionais, econômicas e institucionais. Nesse sentido, como negar que, mesmo tradicional defensora de um modelo político e administrativo mais descentralizado, a elite representante da economia de São Paulo conseguiu combinar sua defesa pela maior autonomia com a centralização imperial? E quando tal combinação não mais atendia seus interesses encontrou em Minas Gerais o apoio que precisava para implantar o federalismo no país? Ou que a eterna tensão entre regionalismo e nacionalismo dos pampas sulistas não conseguiu se ajustar com a ascensão do modelo centralizado e marcadamente positivista de Getúlio Vargas? Ou que intelectuais de esquerda, após décadas de relativo anonimato, se ajustaram à ascensão do novo sindicalismo do fim da década de 1970? Ou ainda, que tradicionais lideranças do nordeste, no desejo de se diferenciar de outras ainda mais tradicionais, se aproximaram do projeto que nascia na combinação entre o modelo social-democrata dos tucanos paulistas com o liberalismo econômico de Gustavo Franco e Pedro Malan? Ou ainda, mais recentemente, que grupos que se dizem liberais não se aproximaram de outros tantos abertamente conservadores para ditar algumas regras morais que pensam ser necessárias?

Nesse momento, de tamanho hiato de projetos e ideias que apresentem algo de pertinente aos nossos desafios, resgatar essa história pode nos servir de alento. Pode ser, inclusive, um método para definirmos algum norte em meio ao deserto que vivemos.  Em outras palavras, como elementos que hoje gostaríamos de resgatar, mas que no passado estiveram relacionados a outros que não nos fazem mais sentido algum, podem ser rejuvenescidos? E com quais outros elementos e ideias eles poderiam combinar? Como fortalecê-los?

A oposição político-eleitoreira que se instalou nas últimas décadas no Brasil não mais dá conta de explicar nossos problemas e muito menos de propor algo razoável para resolvê-los. O ideal seria uma recombinação de elementos que estão dispersos na sociedade, ao mesmo tempo em que abandonamos alguns outros, de modo a criar uma nova geometria.  Ela pode ser a aproximação entre projetos regionais variados, marcados em suas trajetórias por diferenças aparentemente irreconciliáveis, mas que encontram alguns itens comuns que ficaram, por muito tempo, sendo tratados como menos relevantes. Pode ser a intersecção entre projetos políticos diferentes, mas que guardam semelhanças ou aproximações em alguns pontos antes subestimados.

As barreiras, nesse caso, na verdade são duas. Primeiro é não reconhecer que, ao longo da história, os projetos que aparentemente foram derrotados não necessariamente foram feridos de morte. Continuam vivos, em espaços menores, esperando uma nova combinação que os faça ressurgir. Adaptados, é verdade. Mas, renascidos. A segunda, derivada da primeira, é acharmos que os projetos e ideias são estanques, estáticos e que sempre apontam para o mesmo futuro. Não são. Ora estão em baixa, ora fazem mais sentido. E só retomam seu sentido quando entendem, em um contexto diferente, que devem abandonar alguns elementos, preservar outros e, principalmente, combinar aquilo que é mais relevante com outros itens de outros grupos e projetos.

Sendo assim, mais do que a oposição entre duas ideias ou dois projetos, é o modo como combinamos elementos aparentemente díspares que pode nos ajudar a superar a ausência de projetos que grassa o país.

Nesse sentido, como não lembrar de José Bonifácio? Sei que muitos não gostam, até porque as críticas que o santista chamado de “Patriarca da Independência” fazia ao que considerava a democracia não nos cabem mais. Por outro lado, como não concordar com ele quando dizia que não haveria uma sociedade civilizada se não acabássemos com a escravidão e tivéssemos, como política e projeto nacional, a integração dos descendentes de escravos por meio de um sistema educacional voltado à formação de cidadania e à criação de riquezas? E que só conseguiríamos tal façanha se tivéssemos uma elite ilustrada e engajada, que assumisse tamanha responsabilidade junto ao país?

Por mais paradoxal que possa parecer, adversários circunstanciais não podem, em nome de suas diferenças, mesmo que muitas vezes coerentes, ameaçar aquilo que nos une ou deveria nos ser comum.  A polarização não nos ajudará nesse momento. Ela colocará em risco os avanços institucionais democráticos, a estabilidade econômica e o mais do que fundamental debate sobre os avanços sociais. Se para isso precisamos aproximar grupos, pessoas e ideias que, aparentemente ou circunstancialmente estão em lados diversos e/ou opostos, não deveríamos nos preocupar em sermos contraditórios. José Bonifácio não teve esse pudor. E ele, certamente, era melhor do que somos.

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