A obra de Reinhart Koselleck como antídoto à vergonha

Pode ou deve uma experiência particular mudar o modo como cada um de nós enxerga a História? Seja como for, e a partir da obra de Reinhart Koselleck, Vinícius Müller argumenta que "aquilo que aconteceu deve ser indissociável da honestidade de nossos métodos, todos eles contaminados pelos nossos julgamentos"; aquilo que define o nosso modo de contar a História, assim como os próprios elementos que ocorreram na História, só podem ser compreendidos se vistos em seus tempos diferentes". Afinal, "o reconhecimento de que a História é feita a partir de nossos julgamentos não nos livra da busca pela reconstrução da verdade daquilo que aconteceu."

por Vinícius Müller

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Pode ou deve uma experiência particular mudar o modo como cada um de nós enxerga a História? É inevitável que assim seja, mesmo que a experiência pessoal esteja envolta por outra, digamos, geracional? Quão traumática deve ser esta experiência para que mudemos o nosso ponto de vista sobre a História? Esta mudança é exclusivamente pessoal ou só se confirma quando comparada com a transformação no modo como as coletividades, tais como a nação, a família ou o partido político, passam a enxergar a História após uma experiência disruptiva?

Estas perguntas podem ser apenas retóricas para a maioria das pessoas, mas ganham significado especial para aqueles que se debruçam sobre a História e, principalmente sobre o estudo da História. Já seria suficiente a justificativa de que eventos disruptivos, como uma guerra ou uma pandemia, podem provocar mudanças no modo como as pessoas que as enfrentam entendem a História. E isso, por si só, seria motivo de preocupação de quem tem a História como profissão. Contudo, ficam ainda mais pertinentes àqueles que conjuntamente experimentam as duas situações; ou seja, são estudiosos da História e, ao mesmo tempo, enfrentam ou enfrentaram experiências pessoais determinantes tanto para o seu modo de enxergar a História, como também aos seus pares de geração. Imaginemos, então, um historiador alemão que vivenciou a Segunda Guerra Mundial e que lutou nas fileiras do exército nazista.  Como ele usaria a experiência da Guerra para reconstruir a trajetória de uma geração a qual ele mesmo foi membro? E como teria sua profissão de historiador impactada por ter sido ferido durante a Guerra? E por ter perdido familiares, como seus dois irmãos, durante a mesma Guerra? E por ter sido preso e mandado para um campo de trabalho forçado na então URSS?

Todas estas questões antecedem a obra do historiador Reinhart Koselleck, falecido em 2006, um dos mais importantes nomes do pensamento alemão da segunda metade do século XX e, certamente, um dos mais brilhantes historiadores de sua geração. Três de suas obras foram, neste caótico 2020, relançadas no Brasil pela Editora Contraponto em parceria com a Editora da PUC do Rio de Janeiro: Estratos do Tempo; Futuro Passado e; Critica e Crise. Nelas, o ex- soldado nazista revela seu profundo mergulho em busca de uma teoria que dê conta do modo como enxergamos a História ao longo do tempo, aproximando a linguagem, os conceitos e as variedades do tempo das experiências vividas e contadas pelas pessoas. Sua erudição — que torna sua obra pouco simpática aos que não são versados na ciência da História — revela uma tripla combinação entre a profundidade que a teoria e a filosofia da História podem alcançar, o poder da sua experiência pessoal no modo como construiu sua carreira e definiu seus interesses, e a atualidade urgente de sua obra em um contexto de não só certa confusão ‘pelas circunstâncias’ (Crise da democracia? Pandemia? Nova Guerra Fria?), mas, sobretudo, certa vulgarização no uso que — pasmem, especialistas — dão aos conceitos muito caros de nossa História em troca de likes nas redes (neofascismo e neostalinismo são os mais gritantes).

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Reinhart Koselleck (Reprodução: Getty Images)

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Isto porque a obra de Koselleck dá um passo atrás na própria História e busca a compreensão sobre o percurso que nos lega os conceitos, os parâmetros e os tempos da História. É assim, por exemplo, quando em Crítica e Crise, talvez sua obra mais conhecida, recupera a trajetória do pensamento burguês europeu face ao surgimento dos Estados Nacionais após 1648. Com o cuidado de mesclar na mesma medida a análise sobre o pensamento de Hobbes, Locke, Voltaire, Turgot e Schiller, entre outros, e a experiência histórica factual, identifica em um complexo jogo de temporalidades diferentes como o avanço da ideia de progresso se transformou em arma da burguesia em sua crítica ao Antigo Regime. E, com isso, Koselleck aponta como a burguesia confundiu a própria essência desta crítica ao modo como enxerga a noção de crise. Desta forma, conceitos fundamentais para o entendimento do modo como recuperamos a trajetória histórica do mundo contemporâneo estariam fundados em perspectivas derivadas das diferenças de tempo de construção, afirmação e legitimação das ideias da burguesia ante o Estado Absolutista moderno. E esta diferença seria visível na forma em que, ao longo do tempo, estas ideias teriam se afirmado como um embate entre um Estado ‘regressivo’ e uma crítica feita a ele pela burguesia que estabeleceria o conceito de ‘progresso’, antessala para o julgamento moral que o Antigo Regime recebeu do Iluminismo. A Revolução Francesa teria, então, sido a instrumentalização desta crítica que pretendeu não só romper com o passado, mas também recriar um outro passado: aquele que justifica não mais nosso entendimento sobre ele, mas que possibilita que o usemos para determinar o futuro.

É neste vai e vem do tempo que o autor alemão desdobra sua abordagem ao longo das outras duas obras. De uma História resultante da agregação de várias Histórias à outra que não só agrega, mas a entende de modo sistemático; ou seja, a História como acontecimento se unindo à História como pensamento. Assim, a História ganha um formato que, segundo Koselleck, se apresenta por pares e cuja estrutura se repete durante boa parte de sua obra: evento e representação; experiência e expectativa; ser e saber ser; futuro e passado. E nela, os estratos do tempo devem ser vistos como os parâmetros que identificam o fazer histórico em contraste com a História em si. Antes e depois são categorias temporais que se encaixam em outras, como ‘ainda não’, ‘não mais’, ‘mais cedo que’ ou ‘tarde demais’. E todas elas indicam as variações de temporalidade; não só aquelas análogas ao pensamento de Braudel (a estrutura, a conjuntura e o evento), várias vezes citadas e analisadas por Koselleck, mas também aquelas ligadas ao progresso, decadência, aceleração ou retardamento. É como se a História fosse dividida em duas partes complementares: um estoque, redutível aos fatos e à possibilidade de revelar a verdade, e um fluxo, vinculado aos julgamentos que fazemos sobre a História e seus atores. Ambos relevantes ao trabalho dos que se debruçam sobre a História — e, arriscaria dizer, ainda mais importantes e fundamentais para a própria reputação da História frente às outras ciências, que aparentemente fazem mais sentido a parcelas significativas da sociedade. A História não é o acúmulo de fatos e nem a interpretação que damos.  Nas palavras do próprio Koselleck, “os julgamentos morais são necessários, mas não são constitutivos daquilo que já aconteceu”.

Ao contrário, aquilo que aconteceu deve ser indissociável da honestidade de nossos métodos, todos eles contaminados pelos nossos julgamentos. Estes, por sua vez, respondem a tempos diversos, já que dependem tanto da experiência pessoal quanto da geracional. Portanto, aquilo que define o nosso modo de contar a História, assim como os próprios elementos que ocorreram na História, só podem ser compreendidos se vistos em seus tempos diferentes. Ora acelerado, ora em marcha lenta. Não reconhecer estes estratos do tempo nos faz estabelecer olhares por demais simplificados, no presente, sobre a relação entre o futuro e o passado. Ou seja, nos prende a um olhar sobre o futuro que só consegue ser inteligível quando julgamos equivocadamente o passado: apenas pelo nosso julgamento, com pouco rigor em relação aos conceitos e fechados em si mesmos.

O entendimento possível desta divisão entre o que compõe a História e o que sustenta o nosso julgamento sobre a História é o posicionamento ético que a obra de Koselleck nos obriga a ter. O que compõe a História forma este estoque que, em princípio, deveria ser a verdade que buscamos. Mas, ao buscarmos a verdade, fazemos em nome do nosso julgamento. Ainda que impossível separá-los, resta-nos desenvolver uma pedagogia que ao menos nos possibilite criar um mecanismo para nos alertar quando ultrapassarmos o sinal. Em outras palavras, o reconhecimento de que a História é feita a partir de nossos julgamentos não nos livra da busca pela reconstrução da verdade daquilo que aconteceu. Talvez seja isso que precisemos para projetar um futuro menos comprometido com o equívoco que muitos ainda cometem em relativizar o passado em seus piores momentos, como aqueles que se arvoram na condição moral de justificar, a partir de um suposto verniz histórico que julgam ter, aberrações como o nazismo ou o stalinismo. Sem nenhum cuidado com a História e nem com os conceitos.  Estes nos fazem ter vergonha. Mas desconfio que são os mesmos que nunca leram Koselleck.

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Koselleck (Reprodução: AKG)

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Obras do autor:

Koselleck, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: Ed. Contratempo/PUC-RJ, 2015. Primeira edição em português de 1999. Edição original de 1959.

________________. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto/PUC-RJ, 2012. Primeira edição em português de 2006. Edição original de 1979.

________________. Estratos do Tempo: Estudos sobre História. Rio de Janeiro: Ed. Contratempo/PUC-RJ, 2014, primeira edição. Edição original de 2000.

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