Vasculhando os escombros da memória familiar, escritor clama contra o esquecimento da repressão soviética em seus romances
por Astier Basílio
A fita de São Jorge, disposta em cores amarelo e preto, aparecia no anúncio, distribuído por toda Moscou, precedida pela seguinte legenda: “nós lembramos”. Vi-o há dois anos em cartazes afixados em data próxima a 9 de maio, o Dia da Vitória, feriado mais importante daqui. O símbolo está associado à memória dos que lutaram na Grande Guerra Patriótica. O curioso é que, praticamente, todos os atos de censura envolvendo a figura do ditador Josef Stálin têm como escudo o respeito às vítimas que tombaram contra o inimigo nazista.
O verbo lembrar, entretanto, não é conjugado em todas as suas extensões. Serve para tecer loas a Stálin, comandante do exército vitorioso, mas, ao mesmo tempo, não é conjugado para se referir ao exílio, à prisão, às execuções e ao envio de camponeses, trabalhadores e mesmo revolucionários para os campos de trabalhos forçados, os famigerados Gulags. Mas há uma voz na literatura russa contemporânea que se ergue e parece dizer: “eu também me lembro, mas não tenho medo de me lembrar de tudo “. Seu nome: Sergei Lebedev.
O escritor britânico Orlando Figes, autor, dentre outros livros de referência, da monumental Uma história cultural da Rússia (Record, 2017), na edição de 18 de julho da New York Review of Books, fez um elogio aos três romances de Lebedev traduzidos em inglês. No texto, Figes pontua que o romance de inspiração mais pessoal de Lebedev é Oblivion (New Vessel, 2016, tradução para o inglês de Antonina W. Bouis).
Em Oblivion, o narrador se embrenha nas lembranças do seu passado para descobrir a realidade da vida de certa pessoa que ele evita nomear, referindo-se apenas como “Avô II” — um vizinho que achegou-se à sua família, à época em que moravam na dacha. Cego, homem que mal falava de si, como um prestidigitador, o “Avô II” conseguiu esconder sua vida dos demais. A obra apresenta, além disso, a memória da perversa e estranha relação do narrador (então menino) com o velho. Nessa relação, podemos ver uma metáfora da relação entre os obscuros tentáculos do passado soviético e a infante Rússia pós-comunista. “Vovô II havia decidido – e ninguém percebeu! – me pegar em seu poder”.
Geólogo de formação, como o narrador de seu romance, Lebedev também nasceu na última década de vigência do regime soviético. Os atributos de poeta ilustram a narrativa seja na descrição das paisagens, na instauração de uma atmosfera reflexiva como também no trato com a língua. O bardo português Manuel Alegre escreveu um poema que serviria de epígrafe para o estilo denso de Lebedev: “na minha língua… todo verso é uma outra geografia”. Embora tenha me referido à poesia, o gênero não comparece, não se materializa; mais se apresenta na capacidade de engendrar as reflexões do que propriamente para se criar uma prosa poética.
O romance começa às margens da fronteira com a Europa, mas é necessário fazer uma viagem de volta. E é por meio da língua que esta travessia será possível. “Aprendi que a língua russa era minha terra natal, minha pátria; aqueles que povoam a língua russa são meus vizinhos, meus camaradas”.
Há viagens no tempo e na memória. Não há experimentalismos vazios. Nem fluxos de consciência. O que há é um caminho a ser percorrido no qual as ações não atropelam os pensamentos. Quando o escritor brasileiro Graciliano Ramos viajou à União Soviética, disseram-lhe que a verdadeira Rússia localizava-se no Volga. E é para esta região que vai o narrador de Oblivion. Há uma jornada dentro da outra, porque mergulhamos em uma Rússia suja, feia e composta dos escombros de um não-tempo. O local a que se chega é descrito com uma beleza metafórica com requintes de fúria: “A cidade foi batizada com o nome de um bolchevique morto em meados dos anos 1930; o nome da cidade não diz nada ao lugar, ou o lugar ao nome. Eles falam diferentes línguas e se evitam um ao outro”.
É nesta geografia de terra desolada que acontecem as sequências com maiores ações. O forasteiro é engolfado pelo microcosmo da corrupção local. E como num faroeste, onde não há lei, são os códigos de honra que se impõem como moeda e salvação. Em um dos momentos em que o narrador é acossado por um bando integrado até mesmo pelo chefe da polícia local, lê-se esta emblemática frase: “Você quer se manter limpo”, ele disse. “Não vai funcionar, eu vou sujar você!”.
Não há redenção, nem esvaziamento no final, mas apenas o peso de ter que lidar com a verdade e a consequente libertação que há nisso. Não há maniqueísmos; não se encena um mal ou bem absolutos; coloca-se no palco uma intrincada relação entre sombra e luz, em que os gestos aparentemente benevolentes mascaram sentidos perversos e ocultos.
As obras de Sergei Lebedev já foram traduzidas em 15 línguas: inglês, alemão, francês, tcheco, italiano, sueco, polonês… Falta o português.