por Heloisa Pait
Anos 1920. Uma cidade costeira, entusiasmada com seu time de futebol. Mulheres de maiô na praia ou andando pelas ruas com cabelos curtos e roupas práticas. Feiras de negócios que logo se tornariam grandes eventos internacionais. Um centro de artes com várias escolas em competição. População triplicando na década, acolhida pelo que havia de mais moderno em planejamento urbano.
Tel Aviv, ou Colina da Primavera.
Entre as imagens populares sobre Israel, está a de refúgio para os perseguidos ou extensão do capitalismo europeu. De terra santa redimida ou pátria ancestral de um povo disperso. De experimento auto-sustentável ou Sparta sem razão. A Tel Aviv contemporânea, com seus arranha-céus e startups, Parada Gay e techno music, herdeira daquela pequena cidade mediterrânea dos anos 1920, parece não fazer parte do país.
Estive três vezes em Israel. Na primeira, vi o país de norte a sul, no inverno. Da área central me lembro da casa onde fiquei, em Givataim, que me pareceu na época precária e mal aquecida. Na segunda vez, passei mais tempo em Tel Aviv e me encantei com seu jeito animado e informal, telões instalados na praia transmitindo os jogos da Copa e bares lotados e convidativos das ruas comerciais do centro.
Desta vez tive que usar parte das férias para trabalhar. À tarde, eu me instalava em cafés com ar condicionado, botava à frente o laptop e passava horas escrevendo. Senti-me menos turista e mais moradora. Escolhia os cafés como o faria na minha própria cidade, com conexão de internet, com gente em volta mas sem muito barulho, em lugares bacanas e seguros, e às vezes me distraía com os livros disponíveis em estantes para os clientes, como se estivesse em casa.
Andei muito pelas ruas arborizadas entre a Rua Rei Jorge e a Alameda Rothschild; boa parte dos edifícios foi construída nos anos 1930, por arquitetos vindo da escola Bauhaus: prédios de poucos andares, com pisos térreos abertos e “lajes” no topo onde os moradores, no passado, se reuniam ao final da semana para comer junto, relaxar e celebrar. O traçado da cidade havia sido feito pelo entusiasmado urbanista escocês Patrick Geddes, a partir do conceito de cidade jardim, que também inspirou partes da cidade de São Paulo.
Lembre que desde 1917 a região, incluindo a Jordânia, era controlada pelo Império Britânico. Sua administração moderna e benigna trouxe progresso e, mesmo com inúmeras restrições, tornou atraente a imigração judaica à região oeste do Mandato, hoje Israel, assim como a imigração árabe de países vizinhos. Seja pelos investimentos judaicos ou pela ordem imposta pelos ingleses, o futuro país tornou-se um destino desejado ainda antes das perseguições nazistas.
Na cidade branca, como se convencionou chamar essa parte da cidade, declarada patrimônio mundial pela Unesco, vi prédios muito bem mantidos, junto com outros onde o improviso, tão familiar entre nós brasileiros, dava um ar avacalhado às fachadas, varandas, pátios e quintais. Um amigo meu, fotógrafo e inventor amador, saiu do bairro e foi morar na cidade próxima de Ramat Gan, despejado por investidores de olho nos preços estratosféricos que uma reforma permitiria. Senti falta de ver sua sala confusa e atulhada de objetos, antítese da paisagem israelense descortinada pelo sol, mas não da história sinuosa de seu povo.
Visitei pequenos museus e institutos culturais que celebravam o bairro e a cidade moderna, como a casa-museu dedicada ao pintor pioneiro Reuven Rubin. Aprendi sobre mulheres artistas que foram para Tel Aviv nas primeiras décadas do séculos XX, como a fascinante Anna Ticho. Vi cartazes de design moderno com propaganda sobre a vida em Israel, chamando jovens europeus para essa grande aventura que seria construir um país. Tomando café diante de livros, estando portanto em meu habitat natural, percebi que os cartazes eram para mim, não para mim hoje, mas para um eu possível de cem anos atrás.
Nos anos 1920, como Woody Allen nos lembrou de modo tão poético em seu filme Meia-Noite em Paris, a capital francesa era onde tudo acontecia. Mas naquela década várias outras cidades atraíam jovens artistas e mulheres independentes, pois o estilo de vida urbano, livre e individualista, culto e arrojado, já tinha alcançado uma massa crítica em muitas capitais pelo mundo afora, nas Américas e na Europa. Tel Aviv era “cool”, percebi, era uma dessas cidades-destino. Claro, o país era o lugar de redenção nacional de um povo disperso, refúgio de um povo perseguido, oportunidade de retorno à terra e da agricultura. Mas era também o novo e o livre, a experimentação e a aventura. Senti vontade, como Woody Allen, de, passeando por Tel Aviv, estar em Tel Aviv nesse momento de alegria e otimismo.
A cidade, hoje, no discurso político majoritário, é raramente tratada como parte integrante do pequeno país. Uma cidade moderna e democrática aparentemente suspensa em outro plano que não o nacional. Tendo dificuldade em compatibilizar a imagem belicista de Israel com a pluralidade tolerante de suas principais cidades, os críticos tacham suas conquistas, como os direitos das minorias sexuais em Israel, de “pinkwashing” – políticas para inglês ver – quando é óbvia a linha que conecta suas origens e situação atual. Verdade seja dita, até mesmo habitantes de Tel Aviv às vezes vêem a ortodoxia religiosa e a ocupação da Cisjordânia como coisa de outro planeta…
Mas e se fosse o contrário? E se todos os percalços de Israel com seus vizinhos viessem não apesar daquele projeto moderno e libertário, mas exatamente por causa dele? E se Tel Aviv não fosse a ilha de tolerância imune aos rancores étnicos, mas seu alvo primordial? E se mais insuportável que os arrogantes ultra-ortodoxos e os rudes soldados fossem as mulheres independentes e as tecnologias europeias que aportavam na cidade mediterrânea a cada ano nessa década marcante do futuro país?
Os países árabes e muçulmanos da região também tiveram surtos modernos, com imprensa irônica e mulheres altivas. Mas nenhum deles com o ímpeto e a perseverança de Tel Aviv, e todos abafados por regimes autoritários e uma cultura nacional mais desconfiada do novo e da experimentação. Nesses tempos estranhos em que vivemos, pode ser boa idéia olhar para trás, para a utopia urbana, como dizia Gilberto Velho, e não apenas revalorizá-la, mas também entender qual a fonte de sua força, e como resiste ou sucumbe a seus incontáveis inimigos.