Em frente ao Supremo Tribunal Federal, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, ergue-se a imponente estátua da Justiça, com os olhos vendados, os seios nus, e as mãos segurando, delicadamente mas com firmeza, uma espada no colo, como uma Madona medieval entronizada embalando o Menino Jesus. Esculpida em 1961, a partir de um robusto bloco de granito claro, de Petrópolis, por Alfredo Ceschiatti, a estátua invoca a antiga personificação alegórica da Justiça como uma deusa romana, Iustitia. Antes dela veio Dike, a deusa grega da Justiça, que supervisionou as leis humanas, assim como sua mãe, Themis, erguendo uma balança e brandindo uma espada, representou a lei divina.
Esta tradição simbólica começou no Egito, onde a deusa Maat monitorava e mantinha o equilíbrio físico e moral do universo. Os corações dos mortos egípcios eram pesados em uma balança, equilibrados pela “Pena de Maat”. A balança sagrada também apareceu na astrologia babilônica e sobrevive até hoje na Constelação de Libra. Brilhantemente, Ceschiatti integrou a espada e a balança da Justiça, cujos ombros femininos inclinam-se para braços robustos de angularidade cubista: suas mãos fortes, uma voltada para cima e a outra para baixo, parecem testar o peso de sua temível lâmina, que invoca o poder de punição do estado.
A antiga balança de Themis representava a sistemática e científica pesagem de provas, o triunfo da razão fria sobre a emoção explosiva e o preconceito inflexível. Este é o grande tema da Oresteia, de Ésquilo, onde Fúrias Femininas impiedosas, espíritos de natureza tormentosa impulsionados por vingança, rendem-se às novas instituições da civilização, representadas pelo tribunal ateniense de Justiça sobre o Areópago. A deusa guerreira Atena, carente de mãe, lança o voto decisivo para a rendição do poder feminino primordial e o triunfo da razão masculina, aspirando ao abstrato e impessoal.
Cesciatti, estranhamente achatou a cabeça da Justiça, como se estivesse aludindo ao busto de Nefertiti, com sua conceitualmente protuberante peruca-coroa, ou ao Chac-Mool mesoamericano, que supervisionou, com olhos alertas, o ritual de sacrifício de sangue, garantindo o surgimento do sol. A Justiça está recebendo pressão e iluminação de cima, em uma nova era conduzida pela mente e não pela paixão. Após a impulsividade caótica do tribalismo e guerra de clãs, a codificação do Direito produz um padrão mais elevado e um sistema de calculado processo equitativo. A lentidão cerimonial da lei abre espaço para o pensamento.
A faixa icônica que veda os olhos da Justiça, significando a imparcialidade da lei em relação à riqueza, fama ou poder, não era um tema antigo, mas apareceu pela primeira vez na Renascença do norte europeu. Uma análise marxista, com seu cinismo instintivo, insistiria que a lei é sempre um produto de exploração política e econômica e que, enquanto inerentemente opressiva, serve apenas a uma elite dominante. Mas o idealismo, por mais sabotado que seja pela realidade desordenada, é um valor humano fundamental que nos separa do reino animal.
Hoje há um novo dilema frente à Justiça de olhos vendados: o gênero deve ser visível ou invisível para a lei? As mulheres devem, na busca pelo objetivo nobre da igualdade, ser tratadas exatamente da mesma forma que os homens ou devem receber privilégios e proteções especiais da lei? E, neste caso, a base para essa distinção de gênero é biológica ou cultural? Este argumento, que tem dividido o feminismo, não será resolvido tão cedo.
Apesar da majestosa deificação da Justiça, mulheres reais, durante a maior parte da história mundial, raramente conseguiram exercer o poder da lei em seu próprio benefício, salvo se tivessem herdado autoridade real do pai ou emprestada do marido morto. Frequentemente, as mulheres foram vítimas da lei, ao invés de suas agentes. Na literatura, vê-se a Antígona, de Sófocles, perseguida pelo draconiano Creonte; a bíblica Maria Madalena, e Hester Prynne, em Nathaniel Hawthorne, condenadas ao ostracismo por adultério; Joana D’Arc, julgada e condenada por inquisidores do sexo masculino; Hedda Gabler, em Ibsen, levada ao suicídio por seu aprisionamento claustrofóbico pelo Juiz Brack.
A mulher, como defensora e praticante da lei, como advogada ou juíza, constitui-se em fenômeno moderno no qual o Brasil desempenhou um papel pioneiro. Shakespeare, cuja admiração por mulheres fortes e articuladas pode ter sido inspirada em parte pela combativa Rainha Elizabeth I, previu esta evolução em The Merchant of Venice, onde sua engenhosa heroína, Portia, disfarça-se de homem, como assessor jurídico, para frustrar o contrato cruel do usurário Shylock, no tribunal. No entanto, a maior parte do público seria apresentada à persona decidida da mulher advogada por meio do cinema de Hollywood, no qual ela agora domina as regras e estratégias do que foi outrora um jogo exclusivamente masculino.
Nos Estados Unidos, depois da conquista do direito de votar, por meio de uma emenda constitucional, em 1920, houve um aumento de mulheres optando por profissões masculinas. Este foi, na minha opinião, o melhor e mais produtivo período do feminismo – quando as mulheres expressaram abertamente admiração pelas conquistas do sexo masculino e exigiram simplesmente a oportunidade de igualá-las ou ultrapassá-las. Muitos filmes de estúdio da era clássica de Hollywood mostraram mulheres profissionais com grande poder no trabalho, mesmo que o enredo fosse, frequentemente, focado nos conflitos enfrentados por uma mulher de sucesso em conciliar seu trabalho com as necessidades emocionais de seu marido e do casamento – um difícil problema que até hoje perturba as mulheres.
Rosalind Russell desempenhou o papel de uma repórter de jornal de fala rápida em His Girl Friday (1940) e uma juíza em Design for Scandal (1941) e Tell it to the Judge (1949). Katharine Hepburn atuou como uma famosa e multilíngue jornalista (baseada em Dorothy Thompson) em Woman of the Year (1942) e uma advogada corajosamente assertiva na defesa dos direitos das mulheres em Adam’s Rib (1949), onde ela confronta seu marido, um promotor público assistente (Spencer Tracy), na Sala de Audiências. A enorme autoridade e comando cristalino da retórica de Hepburn ante o júri (em roteiro escrito especialmente para ela por Ruth Gordon e Garson Kanin) continuam a ser um modelo inspirador para as mulheres advogadas de todos os lugares.
No período pós Segunda Guerra Mundial, os vitoriosos mas exaustos EUA retrocederam a uma cultura reacionária de domesticidade, e filmes centrados em profissionais mulheres tornaram-se muito mais raros. Em Witness for the Prosecution (1957), por exemplo, a mulher novamente sabota a lei em vez de fazer cumpri-la: em depoimento no bando de testemunhas, a perturbadoramente glamurosa Marlene Dietrich é desonesta e serpenteante, outra sedutora Eva. Seria necessário um longo tempo antes de advogadas voltarem para a tela do cinema. Em Lipstick (1976), lançado pouco depois do ressurgimento do feminismo no final da década de 1960, Anne Bancroft desempenha o papel de uma promotora inflexível, iniciando e conduzindo uma ação penal pelo estupro de uma modelo (Margaux Hemingway). Em Legal Eagles (1986), uma jovem advogada, representada pela vivaz Debra Winger, entra em confronto com um promotor assistente (Robert Redford) no tribunal. Em Mujeres al borde de un ataque de nervios (1988), de Pedro Almodóvar, uma dublê, interpretada por Carmen Maura, descobre que seu amante está prestes a fugir com uma advogada feminista grosseiramente indelicada.
No entanto, o papel mais importante de mulher advogada, desde Adam’s Rib, foi certamente o da promotora assistente interpretada por Kelly McGillis em The Accused (1988). Jodie Foster ganhou seu primeiro Oscar, de Melhor Atriz, por interpretar uma vítima de estupro cujo caso é investigado e levado a juízo por McGillis. O filme baseou-se em fatos reais que ocorreram em 1983, na comunidade luso-americana de New Bedford, Massachusetts, no passado, um dos principais portos baleeiros do mundo. Uma jovem mãe, Cheryl Araujo, foi estuprada por quatro imigrantes portugueses sobre uma mesa de bilhar em um bar. O subsequente e bem-sucedido julgamento dos estupradores, televisionado ao vivo, foi um espetáculo nacional, prenunciando o julgamento de 1994-1995 do famoso atleta O. J. Simpson, acusado por duplo assassinato, durante o qual a promotora chefe, Marcia Clark, foi catapultada ao estrelato midiático.
Como se tornaram mais habituais na vida real, mulheres advogadas desapareceram gradualmente da tela do cinema, mas se multiplicaram na televisão, como em L. A. Law (1986-1994), seriado de grande sucesso sobre um escritório de advocacia de Los Angeles. Em Ally McBeal (1997-2002), Calista Flockhart (que mais tarde casou-se com Harrison Ford) desempenhou o papel de uma advogada constantemente atrapalhada com melodramas românticos. Em Sex and the City (1998-2004), seriado sobre mulheres profissionais em Manhattan, que alcançou popularidade mundial, uma advogada de língua afiada, Miranda Hobbes (Cynthia Nixon), se aborrecia com os problemas usuais em relacionamentos íntimos com homens. Judging Amy (1999-2005) tinha seu foco em uma jovem mulher juíza presidindo uma Vara de Família, enquanto em Boston Legal (2004-2008), Candice Bergen atuou como uma litigante mordaz e cofundadora de uma renomada firma de advocacia de Boston.
A trajetória das mulheres, nos termos da lei, tem sido uma longa saga de ganhos, perdas e recuperações. No alvorecer da civilização na Mesopotâmia Antiga, uma nova cultura urbana trouxe maior sofisticação, permitindo que as mulheres gozassem de mais direitos do que tiveram mais tarde. Na Suméria, as mulheres de classe alta podiam realizar negócios e vender escravos domésticos. Entretanto, o adultério feminino era punido com a morte. Após a conquista da Suméria pela Babilônia, as mulheres sob o Código de Hamurábi tinham menos direitos, mas ainda podiam comprar e vender, herdar e legar propriedade, participar em processos judiciais como autoras, rés ou testemunhas, e até mesmo atuar como juízas.
No Egito, os direitos legais eram determinados principalmente pela classe social e não pelo gênero. No entanto, mulheres de diferentes níveis sociais tinham igualdade com os homens. As mulheres egípcias podiam ser proprietárias de casas e terras e participar de litígios. Na Judeia, ao contrário, a vida das mulheres era estritamente circunscrita pelo patriarcado, conforme imposição da religião. Maridos hebreus podiam ser polígamos, enquanto as esposas tinham que ser monogâmicas. Esposas dirigiam-se a seus maridos como “senhor e mestre”, ecoando um título honorífico usado pelos escravos. Um marido podia se divorciar de sua esposa, mas não o contrário. Mulheres hebreias não podiam herdar bens, salvo se não houvesse herdeiro vivo do sexo masculino.
Em Atenas, no apogeu da cultura clássica, as mulheres não tinham direitos de cidadania e eram definidas pela lei apenas em relação a um pai ou marido, que atuava como guardião. Contudo, o marido não podia gastar o dote de sua esposa, em relação ao qual ela conservava seus direitos. Com exceção de pequenas transações comerciais permitidas aos empresários da classe trabalhadora, tais como vendedores de produtos hortícolas, as mulheres atenienses não podiam firmar contratos. Tampouco podiam herdar a crucial posse da terra, que ia diretamente para filhos ou netos, ignorando filhas. Na comédia de Aristófanes Women of the Assembly (391 a. C.), mulheres atenienses disfarçadas de homens assumem o governo e aprovam leis para libertar as mulheres e estabelecer um paraíso comunista de riqueza compartilhada e bem-estar social universal. Estranhamente, Esparta, inimiga mortal de Atenas e cidade-estado militarista, que nada criou de importância cultural duradoura, concedeu muito mais status e visibilidade para suas mulheres, que foram reconhecidas em toda a Grécia como atletas profissionais.
Durante a República, os antigos romanos reverenciavam a lei como princípio moral fundamental do universo. As Doze Tábuas, primeiro código de leis, em Roma, foi também a primeira obra sobrevivente da literatura romana. O paterfamilias, chefe de família que poderia ser um filho após a morte do pai, agia como um juiz com autoridade legal absoluta e poder de vida e morte sobre os membros da família, que não tinham nenhuma possibilidade de apelação. A identidade das mulheres romanas da República era absorvida no clã: os homens tinham três nomes, enquanto as mulheres eram conhecidas apenas por uma versão feminina de seu nome de clã; irmãs, como clones, carregavam o número de sua ordem de nascimento. As matronas romanas, notáveis por sua força de personalidade, tinham, na verdade, certos direitos de propriedade, mas as mulheres romanas recebiam educação mínima e não podiam ocupar cargos públicos.
Sob o cristianismo, as mulheres eram corrompidas filhas de Eva, conforme definido pelas complexidades crescentes do Direito Canônico medieval; seres não confiáveis e inferiores, eram classificadas com as crianças e os deficientes mentais, e não podiam possuir bens ou firmar contratos. Um marido cristão, exercendo a autoridade punitiva de Adão depois do “Pecado”, era o guardião de sua esposa, cujo patrimônio automaticamente tornava-se seu. As mulheres não podiam depor em audiências ou atuar como testemunhas.
Na China Antiga, as mulheres não tinham direitos legais e não podiam possuir terras ou herdar bens. Somente as concubinas gozavam de privilégios especiais. No entanto, as sogras na China tinham, frequentemente, poder quase ditatorial em casa. O Partido Comunista Chinês tornou a emancipação feminina o pilar central da modernização. Em 1953, a Lei Eleitoral da República Popular da China concedeu às mulheres o direito de votar e de ocupar cargos políticos.
Tanto no Japão quanto na China, o confucionismo destacava o coletivo sobre o individual, tradição que tendia a suprimir a preocupação com os direitos das mulheres. O Japão possuia, até o período Samurai militarista, um sistema matrilinear. As mulheres japonesas não tinham situação legal e não podiam ter propriedades até a reabertura do Japão ao Ocidente, no século XIX. A Segunda Guerra Mundial, com sua destruição catastrófica de cidades japonesas, acabou com o feudalismo no Japão. A ocupação do Japão pelos Aliados (e em grande parte pelos americanos) no pós-guerra introduziu um sistema parlamentar, bem como direitos femininos ao estilo ocidental. Em 1947, o Japão aprovou a Lei de Práticas Trabalhistas, que garantia a igualdade de remuneração para as mulheres – 16 anos antes de os EUA aprovarem uma lei semelhante.
O feminismo, como movimento político, começou nos Estados Unidos e Grã-Bretanha, que compartilhavam uma tradição de Direito comum de mil anos, com base em precedentes consuetudinários e judiciais (em oposição ao Direito Civil, baseado em estatutos legislativos, que vieram da Europa para o Brasil). Sob a lei comum, uma mulher perdia todos os direitos de propriedade ao se casar, e sua identidade jurídica era dissolvida na de seu marido.
O primeiro manifesto feminista foi publicado por uma escritora britânica inspirada pela Revolução Francesa: em A Vindication of the Rights of Woman (1792), Mary Wollstonecraft defendia que fosse concedido o direito de voto às mulheres e de que fossem educadas para o ingresso em profissões. Ela protestou ferozmente contra o falho estatuto jurídico das mulheres casadas, pelo qual não tinham direitos, mesmo em relação à guarda de seus filhos. Aos 38 anos, Wollstonecraft morreu de infecção após o nascimento de sua filha Mary, que acabaria por se casar com o poeta romântico Percy Shelley Byshhe e escrever o romance clássico de horror gótico, Frankenstein.
O feminismo, como ativismo organizado, surgiu a partir do movimento abolicionista entre os Quakers, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Foi em “reuniões” (cultos) quaker e sociedades antiescravagistas que as mulheres foram, pela primeira vez, autorizadas e incentivadas a participar em falas públicas, tradicionalmente consideradas impróprias e até mesmo escandalosas para senhoras respeitáveis (que deveriam evitar a exposição aos olhos masculinos). Houve uma forte presença das quakers na campanha em favor do “sufrágio feminino” (direito ao voto), de Lucretia Mott e Susan B. Anthony a Alice Paul. A primeira convenção pelos direitos das mulheres, realizada na pequena cidade de Seneca Falls, ao norte do Estado de Nova York, em 1848, emitiu um documento revolucionário declarando que “todos os homens e mulheres são criados da mesma forma” e que quaisquer leis opostas a tal igualdade são contrárias à grande “lei da Natureza” e, portanto, “não têm validade”.
Mais tarde, no século XIX, o movimento das mulheres americanas tornou-se disperso devido à cruzada pela Temperança, que pressionou o governo a proibir a fabricação e venda de álcool. Susan B. Anthony e Elizabeth Cady Stanton foram muito ativas nesta campanha puritana, assim como Carrie Nation, inacreditável justiceira que posava para fotos com a machadinha assustadora que usava para quebrar barris de cerveja. Os movimentos Women’s Christian Temperance Union (1874) e Anti-Saloon League (1893), finalmente conseguiram seu objetivo: em 1919, a Lei Seca tornou-se legislação nacional nos EUA, através de uma emenda constitucional; quatorze anos depois, foi revogada: tinha sido um fracasso total que apenas criara uma rede subterrânea de contrabando, estabelecendo as bases para o atual tráfico internacional de drogas.
Com sua intromissão autoritária em assuntos de decisão privada, a cruzada Temperança seria comparada à campanha hostil e às vezes histérica contra a pornografia na década de 1980, pelas feministas Andrea Dworkin e Catharine MacKinnon, uma professora de Direito e a filha de um juiz de longa data da Corte de Apelações dos EUA, em Washington, D.C. Dworkin e MacKinnon enviaram um decreto-lei para as prefeituras que proibia a venda e distribuição de pornografia, que elas arbitrariamente definiram como violação dos direitos civis das mulheres. Dworkin e MacKinnon queriam banir até mesmo revistas masculinas reconhecidas, como Playboy e Penthouse. Seu decreto, aprovado em lei pelas cidades de Mineápolis e Indianápolis, foi derrubado em recurso pelos tribunais superiores como uma violação dos direitos de liberdade de expressão, garantida pela Primeira Emenda da Constituição dos EUA. No entanto, o decreto-lei foi aprovado no Canadá, onde se tornou difícil e, por vezes, interrompida, a importação de livros sobre sexo, incluindo, ironicamente, os de Dworkin.
Na década de 1920, depois que as mulheres conseguiram o direito de voto nos Estados Unidos e Reino Unido, o feminismo organizado desapareceu. Quando Simone de Beauvoir começou a escrever sua obra épica, O Segundo Sexo (publicada em 1949), foi considerada irremediavelmente antiquada por colegas intelectuais de Paris. O livro profundamente pesquisado e filosófico de De Beauvoir teria seu impacto retardado. Em 1963, Betty Friedan, educada escritora de uma revista americana, publicou um livro raivoso e altamente pessoal, que se tornou um surpreendente best-seller: The Feminine Mystique, que expressava as insatisfações de mulheres afluentes, de classe média, com sua falta de oportunidades profissionais e seu aprisionamento nos papéis de esposa e mãe.
Em 1967, Friedan foi cofundadora do National Organization for Women (NOW), primeiro grupo, em mais de quatro décadas, dedicado a ações políticas pelos direitos das mulheres. Entretanto, feministas mais jovens, algumas delas lésbicas, trouxeram dos direitos civis e movimentos antiguerra da década de 1960, um estilo político mais conflituoso. Por volta de 1970, Friedan estava afastada do NOW, que, em sua opinião, havia se tornado um movimento anti-homens, anticasamento, e antifamília, bem como demasiadamente centrado no lesbianismo (que ela chamou de “a ameaça da lavanda”), e tudo isso, conforme ela corretamente profetizou, iria conduzir muitas mulheres para longe do feminismo. O manifesto do feminismo radical foi The Dialectic of Sex (1970), de Shulamith Firestone, que usou terminologia extraída de Marx e Freud para propor a reprodução cibernética substituindo a gravidez, e que os filhos fossem criados em coletividades, abolindo, assim, a estrutura familiar tradicional.
Duas grandes questões públicas causaram alvoroço em torno do movimento feminista recém-renascido. Em 1972, o Congresso dos EUA, instado pelo grupo National Organization for Women, aprovou a Emenda dos Direitos Iguais, que proibia discriminação por lei federal ou estadual “em razão de gênero”. Dentro de um ano, a E.D.I. foi ratificada por 30 dos 38 Estados necessários. No entanto, um movimento de “PARE E.D.I.” foi lançado por uma mãe conservadora e advogada, Phyllis Schlafly, argumentando que a emenda prejudicaria as mulheres em áreas fundamentais, tais como pensão alimentícia, guarda dos filhos, e alistamento militar (do qual as mulheres são isentas). Em 1982, o limite de tempo oficial, já prorrogado por quatro anos pelo Congresso, expirou, e o E.D.I. extinguiu-se. Além disso, a campanha vigorosa de Schlafly havia mobilizado conservadores de todo o país (incluindo cristãos evangélicos), levando a um imenso renascimento da ideologia e ativismo conservadores, que continuam até hoje.
O segundo alvoroço foi a respeito do aborto. Em 1973, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, por razões de privacidade, que uma lei do Texas que proibia o aborto, era inconstitucional. Antes disso, cada Estado tinha o direito de determinar as suas próprias leis sobre o assunto. Agora o aborto (nos primeiros três meses de gravidez) tornara-se um direito em todo o país. O caso de Roe vs. Wade iria inflamar paixões nos EUA nos próximos cinquenta anos. Ele colocou a Igreja Católica e os cristãos evangélicos contra o feminismo e tornou o aborto a questão número um a motivar ainda os eleitores liberais durante as campanhas presidenciais norte-americanas (porque o presidente nomeia os juízes para o Supremo Tribunal, o que pode subverter o caso Roe vs. Wade). O movimento Planned Parenthood Federation, vilipendiado e bloqueado pelos conservadores, controversamente recebe financiamento do governo para oferecer serviços de planejamento familiar e aborto para as mulheres, algumas das quais carecem de seguro de saúde. O grupo predecessor de Planned Parenthood foi o American Birth Control League, fundado em 1921 por Margaret Sanger, que havia sido presa e levada a julgamento depois de abrir uma clínica de controle de natalidade no Brooklyn, em 1916.
Desde o final da década de 1980, a abordagem dominante na teoria feminista, tanto nos EUA quanto no exterior, derivou-se do pós-estruturalismo de Michel Foucault e sua discípula Judith Butler, acadêmica americana. A premissa deste sistema, com seu jargão distorcido, é de que o gênero é uma ilusão de linguagem, através da qual toda a realidade é refratada. Não podemos saber nada sobre nós mesmos ou sobre o mundo, exceto por meio da linguagem, que é inerentemente traiçoeira. O corpo em si não existe, a não ser como objeto passivo de obscuro controle social. O gênero está em contínua mudança em uma arena a-histórica de desempenho subjetivo. É difícil entender como o feminismo é auxiliado por um sistema teórico tão divorciado dos problemas e aspectos práticos enfrentados pela maioria das mulheres na vida cotidiana. A recusa por feministas pós-estruturalistas a estudar, respeitar, ou mesmo reconhecer a natureza e a biologia, irá, inevitavelmente, limitar o alcance de seus discursos autorreferenciais a uma pequena elite.
Hoje, as principais questões enfrentadas pelo feminismo são: a mulher é uma vítima, mutilada pelos horrores da história, ou ela é agente capaz e resiliente, responsável por suas próprias ações e desejos? Em que medida o Estado deve atuar para promover o avanço decisivo das mulheres na sociedade? As quotas legalmente impostas e outros tratamentos preferenciais são autenticamente progressistas, ou são reacionários, paternalistas e infantilizadores? As mulheres devem, tendo escapado do controle de pais e maridos, transferir essa dependência humilhante para a burocracia labiríntica do Estado? Ou as mulheres devem, como testemunho de sua própria força e coragem, valorizar a liberdade acima de tudo, apesar de sua dor e risco?
* Este ensaio foi originalmente publicado como Prefácio para o livro Histórias de Vida: mulheres do Direito, mulheres no Ministério Púbico, organizado por Gunter Axt e publicado em 2015. A tradução do inglês para o português foi feita por Cristina Macedo. Versão em inglês foi publicada na obra Provocations, collected essays, de Camille Paglia, lançada em outubro de 2018 pela Editora Pantheon, de Nova York.