por Pedro Sette-Câmara
Em 23 de junho de 1789, no Palácio de Versalhes, o rei Luís XVI disse que ele próprio se encarregaria das reformas discutidas por nobreza, clero e burguesia, e deu a entender que os Estados Gerais ali reunidos estavam dissolvidos, e que agora cada segmento da sociedade deveria voltar a confabular consigo próprio. Três dias antes, no hoje famoso “juramento da quadra de tênis”, o Terceiro Estado, isto é, a burguesia, decidira constituir-se como Assembleia Nacional e não se dissolver até que a França tivesse uma constituição. Quando Luís XVI deu a entender que a reunião tinha acabado, a nobreza retirou-se imediatamente, mas o Terceiro Estado não se moveu, deixando claro que a Assembleia Nacional não recebia ordens de ninguém. Luís XVI, ao ser informado de que os burgueses não se retiraram, teria dito algo equivalente a “está bem, que saco, então eles que fiquem lá discutindo”. Não podemos dizer que foi a atitude mais sábia que o rei poderia ter tomado. Claro que se poderia dizer que o rei era o rei, e que no sistema jurídico da época sequer havia a possibilidade de uma Assembleia Nacional que recusasse ordens do rei. Porém, aí é que está a questão: ou você simplesmente aplica as categorias que já conhece, exasperando-se quando os fatos não cabem nelas, ou tenta ouvir um pouco a realidade, que está querendo alterar as suas categorias mentais.
Chamar de “populista”: um modo de não ouvir?
Penso nesse gesto de Luís XVI quando percebo hoje a atitude de desprezo perplexo de tanta gente — que também apoia o establishment — diante do que chamam de “populistas” de hoje, mais notavelmente Donald Trump e Marine Le Pen. A diferença é que não estamos mais falando de candidatos que se apresentam como alternativas dentro de um sistema legítimo, mas de candidatos que põem em xeque esse sistema por representar eleitores motivados não simplesmente pela paixão política, mas por um ressentimento contra a própria maneira como a política é feita. São pessoas que entendem que não podem formar uma Assembleia Nacional, e que entre elas e a presidência da República — ou da Comissão Europeia — a distância é muito maior do que aquela que existia entre um camponês e o rei, com o agravante de que a teoria do direito divino dos reis é muito mais fácil de entender do que a legislação moderna. Além disso, o próprio Estado moderno tem uma estrutura clientelista. Vi Sergio Cabral fazer carreira política no Rio de Janeiro vendendo-se para os idosos, assim como Lindbergh Farias entrou na carreira política vendendo a ilusão da meia-entrada. A diferença entre “populismo” e “conquistas sociais” é dada por quem paga a conta e por quem recebe o benefício. Essa ressalva, todavia, não deve servir para fazermos a classificação fácil, que nos permita pôr de lado o que acontece, mas apenas para termos ciência do nosso próprio ponto de vista.
Entra Napoleão
Não apenas a Revolução Francesa foi dar em Napoleão Bonaparte, como a inspiração que ele trouxe — o self-made man genial que conquista tudo — é um dos fenômenos culturais mais documentados e estudados de todos os tempos. A ideia do self-made man napoleônico não é apenas a ideia do homem que vence na vida graças a seus esforços e a sua diligência. Pensemos num dos mais famosos personagens animados por Napoleão: Julien Sorel, o protagonista de O Vermelho e o Negro de Stendhal, autor que tinha ele próprio acompanhado Napoleão. A esperança trazida por Napoleão era justamente que a hierarquia da sociedade pudesse ser abalada para que as ambições de pessoas sem oportunidades pudessem realizar-se — ou ao menos tentar realizar-se. Não estou comparando Le Pen ou Trump a Napoleão, exceto na medida em que eles também parecem representar as esperanças de ressentidos. Por isso, recoloco em evidência o outro aspecto da analogia. Além do descarte do que não deveria ter sido descartado, há o risco de que não seja levado a sério o que distingue o eleitor de Lindbergh Farias e Sergio Cabral do eleitor de Trump ou de Le Pen. Enquanto os primeiros queriam apenas benefícios dentro do sistema vigente, os outros são animados, assim como a Assembleia Nacional de 23 de junho de 1789, pelo desejo de no mínimo alterar o próprio sistema, que já está posto em xeque, que já é objeto de desconfiança. Assim como a burguesia reunida na forma do Terceiro Estado, a desconfiança em relação ao sistema ainda busca os meios que existem dentro do próprio sistema para encontrar vazão, o que equivaleria a dizer que esse novo Terceiro Estado ainda está buscando os ouvidos de Luís XVI. Se o diálogo aparentemente fora de cogitação ficar mesmo fora de cogitação, ao menos a experiência sugere que possamos aguardar um novo Napoleão do ressentimento.