por Vinícius Müller
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Por qual lente devemos enxergar o capitalismo? Pelo empreendedorismo de Bill Gates ou pelo trabalho de crianças nas fábricas de camisetas em algum país asiático? Pelo aumento exponencial da riqueza nos últimos dois séculos ou pelas persistentes desigualdades? Pela competição do mercado ou pela formação de monopólios? Pelo consumismo ambientalmente inconsequente ou pelos ganhos de produtividade?
Todas essas questões, e mais tantas outras, foram inúmeras vezes responsáveis por longas teses sobre os fundamentos e funcionamento da economia e suas implicações históricas e sociológicas. E, a depender de quem olha, servem como uma gangorra que justifica desde pesquisas muito sofisticadas como, em seu avesso, posicionamentos ideológicos nebulosos.
Estas variadas possibilidades também estão apresentadas em outras possíveis divisões. Por exemplo, a depender de sua formação, onde estudou, o que lê, ouve e assiste, estará convencido de que o capitalismo é a competição, riqueza, empreendedorismo e produtividade. Já se sua leitura tiver outra preferência quanto ao veículo de comunicação, ou sua formação acadêmica for feita em outra instituição, possivelmente não enxergará o capitalismo para além da exploração da mão-de-obra, desigualdade, monopólios e consumo inconsciente e predatório. E terá, em ambos, um arsenal secular de autores, autoras, teses, livros, escolas de pensamento e afins que podem confirmar sua posição. Cachorro correndo atrás do próprio rabo.
Outros exemplos podem ser pertinentes. Tenho um pessoal e, portanto, de curto alcance — mas, mesmo assim, simbólico: comecei minha graduação em História no longínquo ano de 1994. Pensava que meus interesses maiores estariam vinculados à História das Religiões, com interfase com a Antropologia e a Filosofia. Os cursos de História e Historiografia Medieval Europeia confirmavam o interesse. Mas, logo depois, apareceu a fascinante História da América lecionada por professores ainda mais brilhantes. No meio do caminho, História do Brasil Monárquico e História Política do Brasil. A dúvida começava a me incomodar. Até que apareceu a História Econômica, tímida em meio às tantas outras leituras. Anos depois, interessei-me por um programa de Pós-Graduação em Economia. Grupo docente de primeira grandeza, leituras do que de mais atualizado existia no mundo e muita microeconomia e métodos quantitativos. Em meios aos economistas, me agarrei à bibliografia de História Econômica e, principalmente, àquela ligada à Nova Economia Institucional. Dali, claro, li Douglass North. A partir disso, Deirdre McCloskey, Joel Mokyr, Stanley Engerman, Kenneth Sokoloff, Daren Acemoglu, Phyllis Deane e Stephen Haber. E também outros, distantes da abordagem institucionalista, como os consagrados Robert Fogel e Richard Tilly. Descobri assim a força da obra de North, premiado pelo Nobel de Economia em 1993, um ano antes do inicio de minha graduação. E descobri também que, mesmo assim, na graduação de História, eu nunca tinha ouvido falar do economista que ganhara Nobel um ano antes e que cunhou a frase “A História Importa”. Imaginei, invertidamente, a quantidade de autores e obras importantes que havia lido e que os economistas ali comigo não tinham sequer ouvido falar: Edward Thompson, Christopher Hill, Perry Anderson, Fernand Braudel, John Galbraith, Charles Boxer, Paul Mantoux, Immanuel Wallerstein e, claro, o ‘já ouvi falar’ Eric Hobsbawm.
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Ou seja, as dúvidas eram muito maiores do que as certezas e, sinteticamente, eram formuladas em duas ou três questões: O sucesso da indústria e do capitalismo britânico ocorreu devido à exploração, ao mercado externo e à acumulação primitiva de capitais ou pelas transformações institucionais, mentais e políticas que ocorreram internamente? O crescimento dos Estados Unidos no século XIX deveu-se às oportunidades geradas pelo território e pela forma de ocupação, pelas ferrovias, pelo empreendedorismo, pela imigração e pela formação dos belts ou pela exploração da mão de obra, pelo escravismo e suas consequências, pelo massacre de povos nativos, pela exploração dos mexicanos e pelo imperialismo? E, por fim, o capitalismo contemporâneo, tecnológico, industrial, financeiro e globalizado é incompatível com a escravidão ou, ao contrário, não só é compatível como foi forjado sobre o sangue dos escravos?
Não sei a resposta, mas desconfio que para todos os casos já existe um conhecimento acumulado suficientemente grande para confirmar qualquer opinião. Do mesmo modo que, em uma hipótese mais otimista, há respostas que podem nos surpreender exatamente pelo contrário: são tão boas que conseguem colocar em dúvida aquilo que até então tínhamos como certo e indubitável. Por isso, lamento quando noto, por exemplo, que muitos historiadores não dão a atenção que julgo necessária ao magistral texto de Engerman e Sokoloff e penso em como não ficar fascinado pelos dados sobre avanço da alfabetização nos EUA na passagem do século XIX ao XX que os autores apresentam.[*]
Contudo, esta gangorra não é só definida pelas escolhas determinadas pelas preferências pessoais ou pelos programas de graduação e pós-graduação. Também pende em função do contexto. E, depois de décadas de brisa soprando em favor da visão que enaltecia o capitalismo e suas relações com o aumento da riqueza, das oportunidades, da globalização e do empreendedorismo, a crise de 2008, a reviravolta no processo de globalização, a ascensão de governos iliberais, a ampliação da desigualdade e, principalmente, a persistência de formas variadas de racismo e discriminação de matizes diferentes, fazem com que o nosso atual contexto ofereça outras formas de se contar a história do capitalismo.
Foi nesse contexto, e ainda é, que ganha força, a princípio nas academias norte-americanas, mas também na brasileira, a corrente conhecida como “A Nova História do Capitalismo”, que teve recentemente uma de suas principais obras traduzidas no Brasil. Trata-se de A Metade que nunca foi contada, de Edward Baptist (Editora Paz e Terra, 2020; no original, The half has never been told). Baptist, professor de História na Universidade de Cornell, traça uma linha por onde reconstrói a história da escravidão nos EUA, suas particularidades e, fundamentalmente, como esteve ligada à formação do capitalismo norte-americano. Uma verdadeira barreira à reprodução ingênua, esquemática, e às vezes irresponsável, de certa visão que ilumina apenas os aspectos engrandecedores desta história.
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A obra de Baptist, ao mesclar uma narrativa centrada na experiência pessoal de ex-escravizados e seu descendentes com análises sociológicas, busca e consegue mostrar que a suposta incompatibilidade entre o avanço do capitalismo e a escravidão é mentirosa. Ao menos parcialmente esta relação é não só visível como, principalmente, simbiótica. Ou seja, o capitalismo norte-americano foi construído a partir do resultado do trabalho escravo e do tráfico e também sobre o aumento da produtividade do trabalho escravo na produção do algodão. Sim, não está errado: aumento de produtividade. Desta forma, ataca diretamente a relação estabelecida por muitos entre capitalismo e produtividade, mas que não admite ganhos de produtividade pelo trabalho escravo. E, a partir disso, mostra como este aumento de produtividade do trabalho escravo na produção de algodão foi fundamental para a aceleração da indústria têxtil europeia no século XIX. Ou seja, como a escravidão esteve na base também do avanço do capitalismo fora dos EUA.
Mas, certamente, esta não é a novidade da obra de Baptist. O que mais convence pela originalidade é o apontamento que faz sobre questões sensíveis à História daquele país. Por exemplo, ao colocar em pauta que uma das causas centrais da Guerra Civil de 1861 não foi uma indisposição do norte do país com a escravidão do sul, mas sim porque a expansão da escravidão nos moldes sulistas daria um poder político aos estados escravistas que desequilibraria o delicado federalismo norte-americano. E que logo após o fim oficial da escravidão em 1863 e o fim da Guerra dois anos depois, as restrições ao avanço dos direitos civis aos libertados e seus descendentes foi uma engenhosa construção política que envolveu não só a persistência da mentalidade racista, mas também a deliberada ação das lideranças tanto do sul quanto do norte. Neste sentido, há um fio que liga a presidência do ‘racista e alcoólatra’ (nas palavras de Baptist) Andrew Johnson (1865-1869) ao declaradamente racista Woodrow Wilson (1913-1921). E, indispensável dizer, entre os anos posteriores à guerra de Lincoln e os movimentos pelos direitos civis ligados à Rosa Parks, aos nove de Little Rock, Martin Luther King e Malcolm X. E se o livro não tivesse sido publicado originalmente em 2014, ao Black Lives Matter e a George Floyd.
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Contudo, certamente, a força maior da obra de Baptist está na narrativa que constrói, na qual histórias pessoais, dados, análises de discursos, política, economia e mentalidades se misturam em nome da luz que pretende lançar sobre a ‘metade que não foi contada’. Portanto, uma história que por mais que seja, ao menos em partes, conhecida, ficou eclipsada por outra mais simpática ao modo como os EUA construíram sua riqueza e sobre quais seriam os fundamentos do capitalismo; em outras palavras, que o trabalho escravo também gerava ganhos de produtividade, que o capitalismo não é incompatível com a escravidão e que foi sim determinado e beneficiado pelas relações estabelecidas internacionalmente e não só pelas instituições internas. E, no caso dos EUA, que a ‘terra das oportunidades’ dos empreendedores, da liberdade e de ‘gigantes’ como Rockefeller, Carnegie e Vanderbilt não devem ser vistos como fundamentos do crescimento econômico e do funcionamento do capitalismo dominante nos últimos 150 anos. Em seus lugares, diz Baptist, está o sangue dos escravos.
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Embora ambas trajetórias sejam corretas, o contexto sinaliza para a recuperação, aprofundamento e importância da história contada por Baptist. O que significa dizer que, se concordamos com a versão de que o capitalismo é exploração de mão de obra, monopólio, desigualdade e consumismo, ler os autores da chamada “Nova História do Capitalismo”, entre eles Baptist, pode ser um conforto e uma confirmação da pertinência de nosso modo de entender a história e a sociedade capitalista. O risco, como sempre, é esquecer que Douglass North ganhou Nobel e que Stanley Engerman é genial. Baptist corre este risco e nele, ao flertar com certo ativismo, expõe o pior de sua obra.
Se, diferentemente, formos do grupo que entende o capitalismo como o sistema do empreendedorismo, da competição, da ampliação de riqueza e da produtividade, ler a obra de Baptist pode ser revelador da limitação de nossas narrativas e formações, mesmo que não haja a menor chance de esquecermos que McCloskey e Mokyr são imprescindíveis e, assim como Engerman, geniais.
Porém, se formos ‘tipos ideais’ de economistas ortodoxos, mas tivermos o mínimo de responsabilidade para entendermos por que o capitalismo e a sociedade que o comporta não funcionam como nossos coerentes modelos preveem e supostamente comprovam, ler Baptist é um imperativo que, diria, é de ordem moral.
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Nota:
[*] Engerman e Sokoloff escreveram um artigo sobre os diferentes processos de colonização na América. No artigo History Lessons: Institutions, Factor Endowments, and Paths of Development in the New World (2000) defendem que condições iniciais na colonização de diversas regiões do continente americano determinaram parte das instituições que se reproduziram e se adaptaram ao longo do tempo. Desta forma, indicam quais seriam as diferenças entre a América do Norte (Canadá e EUA) e o restante do continente quanto à concentração da propriedade sobre a terra, a expansão do sufrágio e a educação básica. Artigo disponível em <https://www.econ.nyu.edu/user/debraj/Courses/Readings/SokoloffEngerman.pdf>.
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