por Heloisa Pait
Qual era a nacionalidade do meu avô? A pergunta é respondida da melhor forma com uma história, passada de geração a geração. Quando terminou a Primeira Guerra Mundial, em que serviu na artilharia, ele mandou fazer um par de castiçais com as pesadas moedas de prata do Império Austro-Húngaro. Sobrava, de um império pelo qual ele quase dera a vida, um objeto de culto que tinha sua imponência e sofisticação. Não sei se era um modo de derreter memórias de um país inexistente ou de guardá-las de outra forma, mais perene.
Estamos acostumados a pensar em estados nacionais, com suas bandeiras e línguas e territórios relativamente definidos. Atribuímos as incongruências que vemos na Copa do Mundo, com jogadores de uma nação lutando pelo time de outra, aos efeitos de um processo mágico chamado globalização, que embaralhou tudo o que antes era perfeitamente categorizado. Mas esse embaralhamento é mais a regra que a exceção. Somos diversos, temos costumes, línguas, crenças e caras distintas e é natural que assim seja. A troca e o contato com o outro sob o mesmo poder político foi a norma no Império Romano e nos Califados Árabes, em confederações de tribos americanas e cidades gregas, e os eruditos que completem a lista, decerto longa. Meu avô cresceu num desses ambientes profundamente multiculturais, e viu ao longo de sua vida esse mundo, equilibrado ainda que repleto de conflitos, ser destruído em ondas sucessivas.
Em alguns dias corridos e sem muito preparo, passei por sua cidade natal e pela bela capital do Império Habsburgo, visitando lugares que, acredito, ele possa ter frequentado. Alguns desses lugares não existem mais, como a sinagoga da cidade de Teschen. Outros, como a Universidade Técnica de Vienna, está bem preservada em seus prédios antigos e modernizada com novos campi. A história familiar conta que ele nasceu numa pequena cidade na fronteira da Polônia com a Tchecoslováquia. As histórias que ouvimos na infância têm uma aura difícil de questionar, e a experiência mostra que, em larga medida, correspondem à realidade. Mas é preciso fazer também um trabalho de aproximação e revisão destas histórias, sem contudo desmerecê-las. A cidade de Teschen não é grande, é verdade. E era uma cidade fronteiriça quando ele decidiu abandonar o Velho Continente. Mas quando ele nasceu era a capital de um ducado com certo desenvolvimento e bastante tolerante. Era parte da cultura mais geral da Galícia, região da Europa Central, mas tinha lá sua autonomia.
Os habitantes de Teschen falavam tcheco ou polonês, além de um dialeto compreensível pelos falantes das duas línguas eslavas, mas a língua mais comum era o alemão. O ducado era parte do Império Austro-Húngaro, afiliado com a cultura de Vienna mais do que com Praga ou Cracóvia, importantes cidades vizinhas. Até hoje, o Kaiser é homenageado pela cidade com fotos pregadas nas paredes, ainda que ironizado pelos mais jovens, que como em todo o mundo questionam as narrativas nacionais fundadoras. Muitos habitantes de Teschen eram portanto de fala e cultura alemã e, entre esses, os judeus, que não eram etnicamente alemães, mas sim culturalmente. Meu avô se referia à cidade por seu nome alemão, Teschen, e não Cieszyn, em Polonês, ou T?šín, em tcheco, como me ajudou a notar uma amiga austríaca. Talvez o alemão fosse uma língua franca, e todos falassem algumas poucas palavras nessa língua, talvez os falantes de alemão aprendessem um pouco de polonês ou de tcheco, conforme suas atividades exigissem; não sei ao certo. O fato é que o ducado era multicultural e inserido no universo mais amplo do Império, que abarcava regiões com outros mosaicos linguísticos e culturais, cuja capital era a moderna cidade de Vienna.
Estamos falando da virada do século XIX para o XX, e a lista de conquistas culturais e científicas da capital habsburga não caberia nesse artigo: música, literatura, pintura, psicanálise nos vêm à cabeça sem demora. A Vienna de hoje pode ter pouco a ver com a de cem anos atrás, mas o mundo de hoje repousa, de tantas formas, nesta cidade imperial onde Arthur Schnitzler teve seus romances, Sigmund Freud seus sonhos, Egon Schiele recebeu suas modelos e outros personagens menos dignos da nossa memória impuseram seus pesadelos a milhões de pessoas.
Meu avô me pareceu mais presente, entretanto. Fui visitar a Universidade Técnica de Vienna, uma das escolas onde ele pode ter estudado engenharia por um ano, antes de estourar a guerra. Que ambições teria? Que promessas um curso de engenharia não oferecia ao jovem meu avô? Construir máquinas, aviões, criar novos equipamentos médicos: que será que ele buscava? Lia Julio Verne, como seus netos? Que imaginação não teria aquele adolescente indo morar na capital do Império, que sonhos de menino, de construir coisas!
Senti vontade de entrar e falar com alguém, “oi, escuta, meu avô estudou aqui.” Mas como continuaria a conversa? Eu não estaria compartilhando uma mera curiosidade. E se ele tivesse completado seus estudos em Vienna após a guerra? E se tivesse se empregado em alguma das modernas fábricas de equipamentos locais? Seus colegas, o que fizeram depois de 1918? Onde trabalharam, o que comandaram? Voltaram ao front em 1939 como oficiais? Se eu me encontrasse com o neto de algum ex-aluno, que histórias compartilharíamos? Haveria um abismo, pois todo um grupo social sumiu de uma guerra para outra, toda uma teia de relações nesse grande estado multinacional foi rompida. Que conexões essa conversa descobriria, uma vez que provavelmente seus amigos mais próximos foram assassinados?
Uma placa comemorativa em vidro, sobre outra placa datada do final da Segunda Guerra Mundial em homenagem a um prefeito anti-semita, pregada na fachada principal da universidade, me impressionou. Usava o pronome “nós” para se referir à conivência com o regime nazista, até o amargo fim. Nunca havia pensando no nazismo nessa perspectiva, como algo que algum “nós” fez ou apoiou. E estava lá, diante de mim, essa declaração arrependida e talvez até um tanto orgulhosa de seu arrependimento, o que não deixa de ser compreensível, pois é mesmo heróico assumir um fardo do tamanho do passado nazista.
Quero ir à biblioteca, disse para minha amiga austríaca. É do lado da praça do discurso de anexação, ela me respondeu, com um tom um pouco amargo, se referindo à anexação da Áustria pela Alemanha em 1938, como se passando lá perto eu prestasse alguma homenagem ao ditador. Fui para ver iluminuras, impressões de Gutemberg, globos impressionantes e altas estantes: o conhecimento reunido do império, de seus povos, das ciências. Depois da Primeira Guerra, com o fim do império, a missão da biblioteca passou a ser a de depositária da cultura germânica em países estrangeiros, da cultura de um grupo apenas, de uma identidade só. Durante a Segunda Guerra, a biblioteca se lança ao roubo formal de bibliotecas particulares de cidadãos expoliados e assassinados, penosamente devolvidas em décadas posteriores.
Uma sinagoga vienense resistiu ao nazismo, ao contrário da de Teschen, hoje um campinho de escola. A disposição é idêntica ao de uma antiga sinagoga paulistana, e subi sem pensar ao meu lugar habitual correspondente. Um menino fazia seu Bar-Mitzva, a cerimônia de maioridade religiosa, e o rabino o abençoava com piadas sobre jogadores de futebol, como o faria em qualquer lugar do mundo. Havia um clima de alegria. Ao meu lado, as mulheres conversavam animadas. Um coro infantil, tradição vienense, cantava no púlpito. Imaginei meu avô começando a vida, sem o porte imponente da maturidade, sem assento com seu nome, um pouco penetra na cidade grande. No almoço, que filei despudoradamente, ouvi várias línguas, inglês e espanhol inclusive. Era uma comunidade viva, recomposta, ressurgida.
Uma placa, no saguão, homenageava os soldados judeus mortos na Primeira Guerra. Como meu avô, que recebeu a Cruz de Ferro por seu serviço militar, aqueles jovens haviam arriscado a vida para defender o Império. Pois não era lógico defender o Estado que lhes possibilitava, mesmo como minoria, viver, estudar, sonhar? Não valeria a pena defender aquele grande arquipélago cultural, que abria tantas portas, e que ao seu modo tolerava a todos? Por saber um pouco de cálculo, meu avô serviu na artilharia, portanto um pouco mais protegido do front, ainda que não do anti-semitismo grassante do meio militar.
Meu avô ainda ficou alguns anos em Vienna, depois da guerra, segundo os relatos familiares, onde foi parte de uma brigada de defesa judaica, pois os ataques de hooligans à comunidade o exigiam. O império havia acabado. Sua cidade havia se tornado, de centro de um ducado, uma cidade cortada por uma fronteira, marginal tanto para a Tchecoslováquia quanto para a Polônia – apenas hoje, com a União Européia, a fronteira se dissolveu e podemos passar de um lado ao outro sem pedir permissão. Em cada um destes países, ele seria uma minoria. Na Áustria, a cuja cultura ele pertencia, um racismo diferente do que ele já tinha vivenciado se fortalecia. Imagino meu avô fazendo cálculos, como fazia com os tiros de canhão, sobre a geometria das relações sociais. No Império, eu era uma minoria entre muitas; na nova Europa, serei uma minoria singular.
Ainda de acordo com as histórias familiares, meu avô aportou no Rio de Janeiro em direção a Buenos Aires e, vendo em pleno Carnaval brancos dançando com negros, calculou novamente as trajetórias sociais e concluiu: ninguém nesse país vai se importar se sou judeu ou deixo de ser. Estava de volta portanto ao seu mundo multicultural, deixado para trás.
Nunca perdeu o sotaque. Pelo modo como minha mãe falava quando ficava brava, botando os verbos todos fora de lugar, infiro que nunca largou o modo germânico de pensar. Nunca abriu mão dos charutos e das salsichas, que comprava no Mercado Municipal. Nem de seu judaísmo secular, o mais europeu de todos os produtos, mais que as tulipas e as valsas, mais que o romance e a reforma urbanística, que consumimos todos, europeus ou não, judeus ou não, todos os dias de nossas vidas, e que ele celebrava com rituais próprios, como fumar no jejum sagrado e levar o jornal para ler na sinagoga.
E nunca voltou à Europa.