por Vinícius Müller
Há uma relação de complementaridade entre as insistentes teorias sobre o fim dos tempos e a produção de outras tantas sobre os caminhos que nos levam ao fim. Em geral, as primeiras abordam problemas que são inteligíveis no presente, apontando elementos que, em prazos curtos, nos indicam a decadência de certos valores ou modelos e sistemas; enquanto as segundas tentam reconstruir narrativas mais longas que nos mostram como chegamos até o fim. É como se a horizontalidade ampliada, em uma espécie de imaginação sociológica ao extremo, nos obrigasse a uma verticalidade histórica que apresente a trajetória, com começo meio e fim.
Foi assim com o fim do capitalismo que chegara hipoteticamente ao fim em 1929. Foi também com fim do socialismo real em 1989. E, porque não, com o fim da própria História nas palavras de Fukuyama. Todas elas eram amparadas por situações presentes, palpáveis tanto quanto falências e pedaços de concreto podem ser. É assim hoje com as hipóteses acerca do fim do poder (Moises Naím), o fim das democracias (Levitsky e Snider) e, novamente, o fim do capitalismo. Nesse ocaso da segunda década do século XXI, mais da metade dos jovens norte-americanos acreditam ser o socialismo um modelo superior ao capitalismo, segundo algumas pesquisas.
Mais da metade dos jovens norte-americanos acreditam ser o socialismo um modelo superior ao capitalismo
Todas as teorias sobre o fim tinham elementos mais do que plausíveis para apostar em suas conclusões. Em 1929, com a quebra financeira e social que se seguiu, parecia mais do que comprovado que o capitalismo de mercado, no estilo ‘mão invisível’, não se sustentaria. Mais do que isso, parecia comprovada a profecia de que o capitalismo se autodestruiria pelo desequilíbrio que ele mesmo promove internamente, em sua máquina de exploração dos donos do capital sobre os donos da prole (capitalistas e proletários). Em 1989, com a queda do Muro de Berlim, não só o socialismo parecia fadado ao fracasso final, mas também o modelo vitorioso da economia de mercado em sua associação com a democracia liberal parecia ser irresistível no plano global. Recentemente, o avanço das tecnologias da comunicação, da planificação do mundo e da criação de identidades mais amplas e variáveis do que as fronteiras nacionais e/ou regionais impunham pareciam servir de contraponto aos poderes tradicionais. Uma versão moderna do ‘uma câmera na mão e uma ideia na cabeça’. Ou seja, ‘um celular na mão, um programa de edição e uma conta no youtube’.
Questionado alguns anos atrás, Douglass North, vencedor do Nobel de Economia e ‘pai’ da Nova Economia Institucional, chegou a dizer que se a China não fizesse as reformas voltadas à abertura política e ao avanço da democracia, não sustentaria o crescimento econômico por muito tempo. Dez anos depois, a hipótese de que a China inventou um novo híbrido entre o capitalismo e o socialismo desmente North. A ascensão chinesa seria a prova de que o socialismo não acabou e, principalmente, que o fim da História não ocorreu.
Interessante nesses casos é que assim que a realidade muda, um sem número de narrativas são escritas buscando adaptar a produção historiográfica à nova situação. Foi assim com o fim da URSS, foi assim com a crise da globalização, continua sendo assim com a crise da democracia e do capitalismo liberal.
Neste sentido, algumas publicações recentes ganharam destaque. Uma delas tenta reconstruir o que chama de história do ressentimento ou da raiva. Em Age of Anger: A History of the Present (Farrar, Straus and Giroux,2017), Pankaj Mistra, romancista indiano, reconstrói uma versão muito articulada do que seria uma resposta, furiosa, às pretensões universalistas da democracia liberal. Enxerga as origens desta raiva em escritores iluministas, como Rousseau, para quem os resultados de uma matriz filosófica, política, econômica e social amparada na ideia de propriedade individual geraria, mais do que o equilíbrio imaginado por Locke e Adam Smith, competição, chauvinismo, e individualismo egoísta. Elementos destruidores de certa harmonia e coesão.
Com isso, a obra de Mistra, cujo subtítulo já indica sua pretensão de construir uma narrativa histórica em sua forma, mas de olho no presente em seu objetivo, tenta entender as origens e as motivações construídas historicamente que levam parcelas consideráveis da população em diversos países a escolher lideranças que abertamente defendem ideias e projetos antidemocráticos e iliberais. Ao contrário, portanto, do que Fukuyama previu (e já se desculpou pelo equívoco em ocasiões recentes) quando identificou o modelo capitalista e democrático liberal como o único possível. Ou mesmo Naim, que apostou que a revolução tecnológica ajudaria a população a mostrar seu ressentimento e raiva contra governos autoritários. O que se vê, em boa parte, é a população usando dos resultados da revolução tecnológica para atacar os governos democráticos e, por conseguinte, apoiar propostas autoritárias, autocráticas e iliberais.
A ascensão chinesa seria a prova de que o socialismo não acabou e que o fim da História não ocorreu
Não parece prudente, portanto, desprezar um alerta como o de Timothy Snider em seu recente livro (The Road to Unfreedom. Crown Publishing Group, 2018) ou mesmo de Madeleine Albright (Fascismo: Um alerta. Editora Planeta do Brasil, 2018) e suas relações com o aumento do ressentimento que parte da juventude norte-americana revela ter ao capitalismo. É como se por um lado a descoberta de que a democracia liberal não era tão invulnerável como se pensou por três décadas fosse gasolina para propostas políticas não democráticas. E, por outro, que o capitalismo liberal, não sendo tão indispensável como se pensou pelas mesmas três décadas, gerou o oxigênio necessário para propostas econômicas iliberais e protecionistas. Ou seja, gasolina antidemocrática para a ‘direita’, oxigênio anticapitalista para a ‘esquerda’.
Em resumo, a História não para. E sempre que seus movimentos ganham algum contorno inteligível, reconstruímos a narrativa e a trajetória para tentar justificá-la. A China não parece disposta a fazer as reformas democráticas, muito menos parar seu processo de crescimento econômico. A depender dos resultados nos próximos anos, muitos se apressarão para recontar a trajetória chinesa a partir do sucesso de um estado tomado pelo autoritarismo do Partido Comunista, como se isso fosse a prova de que o comunismo funciona e bem. Outros, ainda, se apressarão em recontar a história da China a partir de sua abertura econômica, mostrando como quem funciona mesmo é o capitalismo. Assim como alguns já se apressaram em recontar a história das democracias liberais a partir dos problemas que gerou e, portanto, justificando sua crise. Assim como daqui a poucos anos nos apressaremos em contar como a democracia sobreviveu aos ataques que sofreu por propostas iliberais e autoritárias.
O importante é sempre manter a perspectiva de que, assim como a Ciência (ou, exatamente por ser uma), a História é aberta. E que cair na armadilha de que o mundo vai acabar (como se acreditou no ano 1000), que o capitalismo vai acabar (como se acreditou em 1929), que não há alternativa à democracia e ao capitalismo liberal (como se acreditou em 1989) ou que a democracia está em seus últimos dias (como muitos acreditam nesta quadra do século XXI), é negar a própria essência da História. Não cabe aos historiadores recontar a trajetória daquilo que parece ser, no presente, a última e definitiva resposta. Isso é instrumentalizar a História em nome da formação das tribos. Cada qual com seu tribunal. Ao contrário, cabe aos historiadores recontar a trajetória que questione aquela que parece, no presente, a verdade final. O mundo pode acabar, a História não.