por Rodrigo de Lemos
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Entre 1990 e 1991, as televisões do mundo reproduziam imagens de Lênins de bronze, destruídos por toda a superfície do bloco comunista, que se desfazia. A oposição antitotalitária, à esquerda e à direita, celebrou, como sinais do fim do pesadelo soviético, essas multidões em êxtase pondo abaixo os ícones do pai da Revolução a golpes de marreta. Pisotear estátuas de Lênin tornou-se símbolo de libertação — e o pisoteamento ocorreu mesmo nos protestos da Euromaidan, na Ucrânia, mais recentemente, em 2013. Não passou pela cabeça de ninguém lamentar a fúria da turba sobre a estátua inerme do tirano como se houvesse nisso um atentado ao patrimônio, nem à memória histórica. A História estava se fazendo — ou se desfazendo — ali, em frente a todos.
A mesma sorte acometeu a estátua do conquistador Pedro de Valdivia, na cidade de Concepción, durante o Estalido Social, no Chile de 2019. Pedro de Valdivia foi o dominador espanhol do Chile no século XVI. Também foi o flagelo dos mapuches. Ordenou mutilações, torturas e massacres indizíveis, com o fim de espolia-los. Acabou prisioneiro em batalha e executado cruelmente pelos indígenas; as amputações que lhe impuseram assemelhavam-se às que o próprio Valdivia impingira aos mapuches para aterrorizá-los durante a Batalha de Andalién. A vingança de Valdivia, no entanto, foi lenta, segura e secular. No Chile de 2019, os mais de um milhão de mapuches sobreviventes à colonização violenta são a minoria étnica mais miserável, menos longeva e mais desescolarizada do país. Somente nos anos 1970, tiveram suas terras e seus direitos como cultura reconhecidos em uma lei, assinada por Allende e aniquilada por Pinochet. Quando, em 2019, a pressão social explodiu contra o Estado herdado de Pinochet, foi sem surpresa que a pobre estátua do terrível Valdivia pagou pelos quatro séculos de crimes e de humilhações históricas impostas aos mapuches pelos colonizadores e por seus descendentes.
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É na espessura sangrenta e irrespirável da História que se erguem e se abatem estátuas. Estátuas não surgem para a contemplação estética. São representações do dominador. São postas propositalmente nos mais públicos dos espaços públicos, aos olhos de todos, para assujeitar simbolicamente pelo bronze e pelo ferro aqueles muitos que a carne frágil e o corpo limitado do soberano não bastariam a submeter na realidade. Que ele esteja vivo ou tenha morrido — e aí fala-se em homenagem —, é um poder que toda estátua afirma ou celebra. Quando o domínio do dominador cai, a multidão ainda pode não se abater sobre as estátuas do poeta, do pintor ou do astrólogo do regime. O soberano é que jamais é perdoado.
Não haveria tampouco por que pouparem Churchill, quando uma onda antirracista questiona a ordem sociorracial produzida nos cinco séculos de imperialismo europeu. Foi em péssima hora que os movimentos liberais e conservadores elegeram Churchill como herói das democracias. Não surpreende que a democracia liberal seja tida em tão pouca conta no resto do mundo: com um Relações Públicas desse tipo… Para transformar Churchill em símbolo do liberalismo para o resto do mundo, foi lembrada, a grandes golpes de kitsch político e de mistificação, a sua atuação contra o nazifascismo. Ora, aos olhos desse mesmo resto do mundo, Churchill incarna o imperialismo mais espoliador. Se esse é o Relações Públicas da democracia, não há muito a surpreender no ceticismo iliberal com que a Índia de Modi ou com que a Turquia de Erdogan dá de ombros quando se fala de direitos humanos ou de pluralismo. Churchill ajudou a libertar a Europa do nazismo. Mas e a nós — indianos, quenianos, iraquianos, curdos —, quem nos libertou de Churchill?
Os crimes coloniais do deliciosamente e pitorescamente mal-humorado Churchill são bem conhecidos. Que se leia sobre o tratamento que recebiam os resistentes ao jugo suave do Império Britânico por aquele personagem afável, com seus charutos e seus quadros razoáveis, ele próprio resquício único da masculinidade ao mesmo tempo bruta e espirituosa da era eduardiana. Suas estripulias na África e na Ásia empilharam vítimas, como os mortos na fome de Bengala, na Índia, e os campos de detenção instalados logo após a Segunda Guerra, durante a revolta dos Mau Mau, no Quênia, são um monumento na história da vergonha: foram apelidados de gulags britânicos. Algumas de suas palavras sobre raça não teriam soado deslocadas na boca daqueles que ele combateu na Segunda Guerra. Nada disso, no entanto, é central ao episódio da estátua de Churchill vandalizada na Inglaterra nesta semana.
Ocorre que Churchill é um péssimo Relações Públicas não apenas das democracias centrais para o resto do mundo, mas mais e mais para o interior dessas democracias também. E isso porque mais e mais essas democracias centrais são espelhos do resto do mundo dentro de um país. É cada vez mais difícil a um cidadão-citadino, britânico ou francês, reconhecer legitimidade nas velhas figuras do imperialismo — Churchill ou Edward Colston ou o rei genocida da Bélgica ou os velhos republicanos franceses — que impuseram aos quatro cantos do mundo um sistema de expropriação violento e racista ao qual foram submetidos aqueles não-brancos que agora dividem em igualdade formal com os brancos nas metrópoles europeias o mesmo prédio, a mesma escola, o mesmo lugar de trabalho, quem sabe a mesma cama.
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Por um lado, a entrada na comunidade política pós-colonial desses não-brancos se dá pela representação vitimária, cujo modelo foi legado pelos judeus vitimados por Hitler. Os não-brancos alegam que também eles são vítimas de fato, legítimas eles também, à imagem do que fizeram os judeus para obter uma integração, é verdade, sempre preocupantemente instável na sociedade europeia. Por outro lado, a dessacralização dessas estátuas do domínio imperial corresponde à dessacralização daqueles que perpetraram as agressões contra esses novos membros da comunidade política que buscam seu reconhecimento vitimário. Essa dessacralização é tão mais eficiente porque expõe, por sua vez, o racismo antivitimário dos reacionários contemporâneos. Por chocante que isso seja, os não-brancos ainda hoje têm o ônus de provar que nem o tráfico humano a partir da África, nem o colonialismo, nem a escravidão foram crimes de alguma forma mais aceitáveis do que o Holocausto. Negar a africanos, a árabes ou a indianos o estatuto de vítimas legítimas é negar, como aos judeus antes deles, o pertencimento social e político dessas minorias às nações europeias pós-coloniais.
A mutação no interior dessas sociedades europeias é sem volta. Pode acontecer que outro modelo que não o vitimário surja. Ainda assim, por enquanto, a integração como cidadãos dos antigos submetidos passa pela noção de vítima, e os protestos antirracistas são uma passagem obrigatória em um processo incontornável. Chateaubriand avisava os franceses, depois da sua entrada no Magrebe em 1830, que o destino da África e da Europa estava a partir de então selado e seria único. Os duzentos anos seguintes não cessaram de confirmá-lo. O que fazer da velharia imperialista nesse novo complexo geográfico e cultural afro-arábico-europeu em que as fronteiros entre brancos europeus e o resto inescapavelmente se indistinguem?
É significativo que essa pergunta se coloque por meio de estátuas, e da imagem de estátuas destruídas — como se a época de triunfalismo das democracias ocidentais nos anos 1990 se abrisse com elas e se fechasse com elas também nos anos 2020. Pode-se, no entanto, ser mais conservador e menos caótico e dissipador do que o bloco comunista em dissolução e optar por preservar a memória coletiva, sem ao mesmo tempo fingir que ainda estamos no século XIX?
Não é imaginável que, em tal ponto de fusão entre the West and the rest, estátuas celebrando heróis do imperialismo sigam publicamente expostas com o mesmo estatuto que o Valdívia no Chile ou que Lênin em Kiev — como homenagens de uma coletividade a um grande homem. Se se quer reconhecer como vítimas e, portanto, integrar à comunidade política esses cidadãos não-brancos, não cabe reconhecer como símbolo agregador esse mesmo grande homem que traficou, escravizou, espoliou e massacrou as comunidades a que pertencem esses mesmos novos membros. O antirracismo vitimário judeu é, novamente, precursor e exemplar. Num exercício imaginário, seria impossível refundar as nações da Europa Central com estátuas de Himmler ou suásticas em praça pública. Tratou-se, então, na construção da memória da Shoah, não de destruir os símbolos e as insígnias públicas do perseguidor, mas de transformá-los em item de memória, com uma função documental e pedagógica. De conservá-lo para revesti-los com uma mensagem de nunca mais.
Paris e Berlim têm seus memoriais do Holocausto. A Europa poderia ter também seu Memorial do Colonialismo. Ou seu Museu do Imperialismo. Poderia estar nos seus salões solenes a saída honrosa que as estátuas heroicas da empresa colonial e da subjugação dos povos poderiam encontrar nas sociedades que vão surgir no complexo afro-asiático-europeu. Sem dúvida um memorial ou um museu desse tipo não precisaria se encontrar em um prédio que contaria como mais um ponto turístico em Londres ou Paris. Poderia se estender pelas cidades, deixando inclusive essas velhas estátuas de Leopoldo II ou de Churchill ou de Colston adormecidas em praça pública como sempre estiveram — mas ressignificadas por intervenções artísticas, pedagógicas ou documentais. Destruíram-se estátuas de Lênin — mas a subversão mais sutil e eficaz está no deboche corrosivo dos grafiteiros que transformaram os operários e camponeses robustos nos velhos monumentos comunistas das praças de Sófia, na Bulgária, em super-heróis de quadrinhos, com tinta e spray. Churchill daria um belo Pinguim.
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É evidente que a extensão desse memorial do colonialismo europeu poderia, e deveria, ultrapassar as fronteiras do continente e tocar as costas desse fóssil social do Antigo Regime, para algum bem e muito mal, que são a América Latina e o Brasil. Não precisamos nos livrar das raras e esparsas ocorrências de símbolos históricos que as camadas sucessivas de modernizações sempre mais predatórias deixaram sobreviver nos interstícios da nossa malha urbana caótica e precária. Não precisamos fundir o bronze dos Valdivias, nem utilizar as pedras nas estátuas da nossa parca nobreza para revestir saguões de novos prédios corporativos. Podemos assumir que o complexo cultural afro-asiático-europeu em que a Europa e o Mediterrâneo estão de novo se transformando já se realizou, de outras formas, e há séculos, por aqui, no nosso continente, nesta extensão ultramarítima e até agora periférica do grande lago mediterrâneo (como Braudel definiu famosamente o Mare Nostrum). Não precisamos destruir as estátuas do Duque de Caxias, nem do Borba Gato (embora a do Borba Gato…). Podemos deixar que as nossas estátuas sobrevivam para que prestem testemunho e para que encontrem o destino que o resto do mundo que nós somos lhes reservar.
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