Os 30 anos da Constituição de 1988: comemoração ou reflexão?

Agora que se passaram 30 anos da promulgação de nossa Carta Magna, como devemos compreender seu legado e seu funcionamento na atual configuração da sociedade brasileira?

por José Eduardo Faria

Com a chegada da Constituição ao seu 30° aniversário, a indagação é saber se ela deve ser vista como texto sagrado, cuja força simbólica está nos valores e ideais que contempla e das mudanças que promete realizar, ou se ela é apenas um documento que vai sendo reconstruído por seus aplicadores no dia a dia judicial. Um das alternativas de resposta pressupõe a distinção entre Constituição rígida e Constituição aberta. A primeira tem caráter esquemático e uma estrutura fixa, prima pela racionalidade lógico-formal, contempla basicamente regras com sentido determinado e prioriza a segurança jurídica. A segunda tem uma estrutura flexível, combina racionalidade formal com racionalidade material, entrelaça regras e princípios e dá prioridade à efetivação dos direitos e valores consagrados pelo texto constitucional. 

Como o sentido das normas jurídicas nunca está fixado objetivamente, por mais claro que seja, dependendo assim dos resultados de sua interpretação pelos tribunais, a resposta à pergunta feita acima parece evidente. Texto legal, realidade socioeconômica e política estão em permanente inter-relação, de modo que toda interpretação acaba sendo uma construção da realidade jurídica. Não discuto aqui a oposição entre interpretação subjetiva e interpretação objetiva do direito. Apenas afirmo que toda interpretação está de algum modo presa não só à uma avaliação subjetiva das normas, mas, igualmente, aos processos históricos que deram feição pela qual a Constituição é vista hoje, três décadas após sua promulgação. 

Por isso, idealizar acriticamente um texto jurídico é o mesmo que canonizar um conjunto de palavras elaborado em outra época, quando eram diversas as condições sociais, econômicas, políticas e culturais do país. Como explicar hoje a efetividade ou ineficácia de direitos sociais e direitos políticos formalmente consagrados há trinta anos? Essa é, a meu ver, a questão que tem de ser discutida. Entre outros motivos porque muitos políticos e advogados, acreditando que bastaria uma interpretação mecânica e neutra das normas para concretizá-las, como se o direito pudesse ser derivado de um conjunto de axiomas de conduta, a exemplo da matemática, não têm medido esforços para tipificar, em nome do “garantismo”, o que chamam de crime de abuso de autoridade.  

Desde o advento do mundo moderno, marcado por uma crescente diferenciação funcional que se cristalizou em torno de núcleos organizacionais como partidos políticos, sindicatos, empresas e burocracias públicas, não há como se formular um sistema de regras sem mesclá-las com normas principiológicas ou programáticas – aquelas que estabelecem princípios éticos, políticos e sociais, por meio de conceitos vagos e indeterminados. Diante de pressões sociais contraditórias, as Assembleias Constituintes costumam recorrer a essa combinação como estratégia de acomodação de interesses, estabilização de expectativas e obtenção de legitimidade. Nas sociedades complexas, a lógica formal comum à concepção de Constituição rígida, encarada apenas como um conjunto de regras básicas que regula a criação das demais regras, fornecendo respostas-padrão para um repertório de problemas-padrão, não consegue dar conta das tensões e dos problemas que exigem intervenções compensatórias para as desigualdades sociais. 

A Constituição rígida propicia a discussão de temas relacionados à validez formal, não se preocupando com o problema da eficácia material de seus dispositivos. Contudo, a partir do momento em que o direito deixa de ter como função apenas a imposição e conservação das regras do jogo, passando também a exercer o papel de promover mudanças econômicas e transformações sociais, a efetividade de um sistema jurídico fechado e com pretensão de completude ou de uma obra acabada, que é viável em contextos sociais estabilizados e integrados, fica comprometida em contextos heterogêneos, conflitivas e cambiantes. Nestas sociedades, o sistema jurídico fechado entra em sobrecarga sistêmica, havendo a necessidade de uma concepção mais aberta de Constituição, vista como uma ordem jurídica capaz de compatibilizar sua estrutura constitutiva e o meio ambiente que a circunscreve. Por gerar problemas novos, que não encontram soluções previamente determinadas pelas regras, as sociedades complexas exigem soluções baseadas não apenas em regras, mas, também e principalmente, em princípios orientadores e por propósitos legitimadores. 

As concepções abertas de Constituição surgiram na Europa e nos Estados Unidos, mas em períodos e cenários historicamente distintos. Na Europa, elas tiveram um sentido mais culturalista e foram forjadas em sociedades fortemente divididas, com graves problemas de unidade étnica e territorial.  Por isso, a integração era vista como um processo espiritual e dinâmico, o que faz com que a aplicação de um texto constitucional tivesse como pressuposto uma certa flexibilidade por parte de seus intérpretes. Nesse sentido, entendia-se que a unidade própria criada por uma ordem constitucional não advém de um texto, mas de um ethos cultural comum. Na mesma linha, aceitava-se que as formas espirituais coletivas não são estáticas, configurando, isto sim, unidades de sentido que de uma realidade espiritual num contínuo processo de reconfiguração social. Já nos Estados Unidos, a concepção mais aberta de Constituição se expandiu a partir do caso Madison vs. Marbury. Ele foi decidido em 1803, quando a Suprema Corte avocou para si o poder de controlar a constitucionalidade das leis, afastando as leis federais que, apesar de aprovadas pelo Congresso, contrariavam a Constituição de 1787.  

Se o problema europeu foi a construção de uma ordem jurídica integradora, na perspectiva da formação de um Estado nacional, o problema americano era de tornar essa ordem efetiva num contexto de maior unidade social e ideológica, porém com grande extensão territorial. Era impedir a ruptura da coerência interna do sistema jurídico baseado numa Constituição formada por poucos artigos. O problema europeu, ao contrário, consistiu em impor em territórios relativamente pequenos ou de médio porte, mas estigmatizados por divisões de interesses étnicos, econômicos, culturais e religiosos, uma ordem constitucional legítima. Em vários países do heterogêneo continente europeu o modelo de Constituição fechada cedeu lugar ao modelo de Constituição aberta, após o término da 2ª Guerra. Mas não se pode esquecer que, no debate doutrinário desse continente, a defesa de uma concepção rígida de Constituição – em nome da necessidade de impedir interpretações discrepantes que pusessem em risco a integração de sociedades potencialmente explosivas e fragmentárias – teve, em momentos históricos anteriores, mais consistência e presença política do que no debate doutrinário americano. 

Esses dois cenários deixam claro que a conversão dos valores espirituais em direito positivo não permite que a Constituição seja vista como um texto pronto, estabelecido de uma vez por todas no momento constituinte – portanto, passível de ser canonizado como um documento sagrado. Cada uma a seu modo, as experiências europeia e americana mostram que a Constituição deve ser vista como uma construção hermenêutica sobre as inspirações históricas subjacentes à sua elaboração e às circunstâncias políticas do momento em que foi promulgada e em que é aplicada. As inspirações históricas e as circunstâncias políticas dizem muito mais sobre a estrutura de uma ordem constitucional e do sistema normativo de organização e legitimação do poder político por ela consagrado do que a ideia de que um simples conjunto de palavras elaborado no passado é, por si só, responsável pelo sucesso da democracia contemporânea. Assim, se a interpretação e a aplicação da Constituição estão abertas aos processos sociais, econômicos, políticos e culturais, isso relativiza o momento constituinte, não lhe conferindo um caráter extraordinário. “Os julgados de uma determinada jurisdição ao longo de uma geração levam em conta o conjunto do direito disponível, interpretando esse conjunto a partir dos pontos de vista da época na qual o direito é aplicado”, dizia há um século Oliver Wendell Holmes Jr., a grande referência do pensamento jurídico americano. Os argumentos, contudo, são atuais e válidos para as democracias contemporâneas. Em outras palavras, a interpretação e a aplicação da Constituição consistem num processo de comutação autocrítica dos fundamentos do próprio sistema jurídico, não o vendo apenas como um ajuntamento lógico-formal de regras e procedimentos.

Por isso, considerando (a) que não há valores totalmente consensuais e em condições de serem racionalizados pelo legislador, (b) que há uma permanente tensão entre a linguagem do texto constitucional e a intenção do legislador constituinte e (c) que uma Constituição vive de sua interpretação, já que os métodos hermenêuticos implícitos na aplicação de suas regras e princípios podem ser vistos como uma forma de consolidação democrática, o 30º aniversário da Carta de 1988 deve ser objeto, mais do que comemorações com direito a banda de música e discurso, de avaliações críticas e de reflexões profundas sobre seus resultados e sobre o que pode continuar oferecendo em matéria de garantias individuais, valores fundamentais, crescimento econômico e inclusão social. 

José Eduardo Faria é professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da Fundação Getúlio Vargas.

Mais de José Eduardo Faria no Estado da Arte:

O STF entre tanques e togas

Reformar a Constituição – da discussão necessária ao irrealismo político

Entrevista: “Há uma mudança no conceito de prova de processo e de delito

COMPARTILHE: