É a mais trágica ironia da literatura histórica que dos aclamados inventores do alfabeto não tenhamos mais que uns traços e sequer seu nome. Tal qual a denominação grega “fenícios” ou a hebreia “cananeus”, sugerindo a púrpura dos seus mantos imperiais vendidos a bom preço, o que sabemos deles vem de outros, sejam seus dominadores egípcios, assírios, babilônios, persas, macedônios, selêucidas e romanos, sejam seus clientes egípcios, assírios etc. até os romanos, além de amoritas, celtas, ibéricos, berberes, desde a Era do Bronze ao nascimento de Cristo, como se, cravada numa cruz traçada no Levante entre a Ásia a Europa e a África, a Fenícia fosse uma Fênix às avessas, sempre viva em meio a povos morrendo e renascendo das areias da Mesopotâmia às águas da Bretanha.
Nascidos de nômades sírio-palestinos, ergueram na terra libanesa metrópoles sobre promontórios rochosos de onde se lançaram ao mar com sede de ouro, os primeiros a poder conclamar o Mediterrâneo “mare nostrum”. Sua língua ressuscitou nas letras gregas, aramaicas, latinas, não como uma lingua franca hegemônica imposta por um império, mas como as línguas francas, maleáveis e polivalentes de marinheiros, mercadores, colonos. Extraída de seus cedros legendários, sua cultura comercial logrou um comércio cultural dos mais lucrativos da História. E foram generosos: além do alfabeto ao mundo, deram a Israel (pagando com sangue) sua Terra Prometida e o maior rival de seu Deus: EL, o Senhor de Canaã, cognato do árabe Alláh, o “benevolente e misericordioso”, das divindades aramaicas e acádias, os elim e ilú, e dos lohim que vivem em El’ohim ou El’Shaddai o todo poderoso Deus sem nome hebraico. Foram os ídolos abominados pelos profetas: os Ba’als, as Astartes e Molochs devoradores de bebês em sacrifícios que chocaram israelitas, gregos e romanos – ainda que os últimos tivessem por lei executar bebês deformados, e os primeiros se não imolaram seus filhos foram tentados, a ponto de Moisés, segundo a Torah, criminalizar a prática invocando a ira de YAHWEH (o qual aliás impediu o sacrifício do Pai de Israel, Isaac, por seu pai Abraão sob as ordens dele, o Deus de Israel, que segundo os cristãos sacrificou seu Filho pelas mãos dos israelitas sob o império de Roma).
Como a Ele deram a ela, Roma, seu arqui-inimigo, Aníbal descendo os Alpes com tropas de elefantes, e seu triunfo épico nas guerras púnicas, mas também sua história de amor mais trágica e bela, entre a rainha Dido de Cartago e o Pai da Nação, Eneias de Troia, bem como a mais trágica e torpe de Israel, entre um monarca judeu e uma canaanita, esposa de um general executado para ocultar o filho bastardo, por sua vez sacrificado por YAHWEH para retaliar o adultério. Mas como duas Fênix, o Rei Davi e Betsabá, Rainha Mãe de Israel, renasceram do pó com a maior das graças, um coração arrependido, e um filho, Salomão, raiz da linhagem real do carpinteiro José, pai do bastardo Jesus, e da linhagem bastarda de Maria, Rainha dos Céus e mãe do Deus cujo sangue versado na cruz e na eucaristia é tingido do púrpura imperial fenício.
Convidados
Adriana Ramazzina, coordenadora da pós-graduação em Arqueologia e História antiga da Universidade Santo Amaro.
Cristina Kormikiari, professora de Arqueologia clássica da Universidade de São Paulo.
Rodrigo Araújo de Lima, doutorando do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.