por Vinícius Müller
Um dos embates mais interessantes entre os que tentam reconstruir a História é aquele que opõe os que a entendem como ruptura aos que a entendem por ajustes. De um lado, a preferência por ciclos, com começo e fim, sucedidos por outros, que se repetem no formato. Por outro, a insistência em encontrar os elos entre os tempos diferentes, como se alguns elementos se ajustassem plasticamente àqueles que, aparentemente, seriam seus opostos. O primeiro tende a reconhecer a História a partir de rupturas. Assim, eventos que representem tais rupturas se tornam objetos privilegiados: a Descoberta da América, a Primeira Grande Guerra, a Revolução Russa, a Crise de 1929 e assim por diante. Já o segundo, ao contrário, tem dificuldade em tratar estas rupturas como objetos tão relevantes ao entendimento da História, já que buscam os elementos que permanecem, se adaptam e sobrevivem – mesmo que em contextos diferentes – com relativa independência aos eventos. Essa última é mais lenta, menos explosiva e, por isso, seus roteiros, em geral, são menos atraentes. Ao mesmo tempo, é quem consegue identificar as permanências mais lentas e mais duradouras. Em suma, a primeira vê o conflito e a ruptura; a segunda a permanência e a intersecção.
Entre os conflitos fundamentais que moldaram o modo como entendemos a história ocidental está aquele que opôs o milenar modelo mental estabelecido pelo cristianismo católico à moderna concepção política, científica e laica que molda nossa mentalidade desde a superação do que chamamos de Idade Média. A partir do século XIII, o embate entre uma religiosidade tradicional, amparada por uma autodefinida passividade humana frente à revelação da perfeição divina, e uma nova concepção sobre o relacionamento entre o poder divino e a ação humana, que ampliava a responsabilidade dos humanos em construir um caminho que os aproximasse de Deus, precipitou as rupturas, em princípio pequenas e controláveis, que definiram uma bifurcação no velho continente e na cristandade: de um lado o ajuste entre os católicos e os elementos que aparentemente eram seus contraditórios, como a ciência moderna e o capitalismo. Desse ajuste surgiram o renascimento italiano e seus gênios da ciência e devotos católicos, como Da Vinci e Bernini, e a expansão marítima e comercial que esteve na origem da chegada dos europeus na América em 1492. Ambos fenômenos fundamentalmente da Europa do sul. De outro lado, a ruptura cristã do século XVI pelos reformistas protestantes, que, por sua vez, se ajustaram à expansão comercial e ao desenvolvimento científico do norte europeu. Bancos na Holanda, comércio na Alemanha e empirismo científico britânico. Todos eles profundamente influenciados pela religiosidade protestante.
Tais caminhos também se revelaram pela ruptura entre o que seria a teologia cristã e a organização política moderna. Maquiavel já apontava para esta separação, quando excluiu de seu tipo ideal de liderança política a moral tipicamente católica, e incluiu o cálculo e a ciência como fundamentos da liderança do príncipe. Hobbes e Locke, ambos britânicos, avançaram na tentativa de separação entre o pensamento político e a teologia cristã. Disputa que, em seu auge, deu sustentação ao iluminismo de Kant e, principalmente de Rousseau. E que, na radicalização, sustentou o marxismo e sua aparente repulsa à religião, o ‘ópio do povo’.
Esta forma de entender a história ocidental tornou plausível nossa aparente repulsa aos movimentos que parecem retomar elementos religiosos em sobreposição às ideias políticas. Mesmo que eles insistam em aparecer, condenamos moralmente a tentativa de definição do debate político a partir de valores tradicionalmente vinculados aos grupos religiosos. Também movimentos políticos que incorporam ou se sustentam em líderes messiânicos envoltos em certo sebastianismo. E, em ângulo mais aberto, a manutenção de elementos religiosos como sustentação institucional, como ocorre em alguns países islâmicos.
Contudo, o reconhecimento que os caminhos tomados pelos elementos religiosos e políticos foram se distanciando, não significa que a contraposição entre eles é indubitável e só ameaçada por certo obscurantismo insistente. A plasticidade de certos elementos de origem religiosa foi suficiente para que muitos sobrevivessem e se ajustassem ao moderno pensamento político. Este é o entendimento possibilitado pela leitura da obra do americano Mark Lilla, The Stillborn God (Vintage books, 2008), historiador que se tornou célebre pela forte crítica às políticas identitárias que o Partido Democrata – do qual é militante – assumiu como bandeira política.
A permanência no ocidente de elementos religiosos em meio ao pensamento político, síntese a qual Lilla chama de ‘political theology’, pode se revelar não pela resiliência de elementos religiosos em prejuízo da mentalidade política moderna. Mas, sim, pela transferência de alguns valores de fundo teológico ao pensamento político ocidental. Desta forma, não é na ruptura, mas nos ajustes entre formas de pensamento que estaria o segredo para o entendimento da própria história do pensamento político. O que nos leva de volta às origens dessa suposta separação, lá no início da modernidade. Mais do que uma ruptura com a religiosidade medieval, a modernidade em seu aspecto político incorporou e a ajustou elementos teológicos. Não apenas numa reorganização dos símbolos e liturgias que caracterizam ambos, como vimos em movimentos políticos e ideológicos de tendências totalitárias de esquerda e de direita. Mas, sim na própria sustentação dos valores que definem o modo como os indivíduos entendem sua relação com o poder. Seja o poder de Deus, seja o poder do Estado.
Neste caso, os ajustes de mentalidades teológicas e políticas se revelam em certa proteção ao que seria a liberdade individual frente à hierarquização característica da tradição católica. Em outros termos, a própria dúvida em relação à legitimidade da autoridade papal pode ter ajudado os convertidos ao protestantismo no desenvolvimento de uma mentalidade política que questiona certa centralização do poder. Algo mais difícil para os católicos. Ao contrário, sociedades majoritariamente católicas teriam maior dificuldade em construir uma mentalidade política que lançasse luzes suficientemente fortes para ofuscar certa hierarquização do poder político em mãos do Estado. Tais diferenças estariam na pouca aderência aos valores liberais em sociedades mais propícias a legitimar governos mais centralizadores e, inversamente, na resistência, em sociedades majoritariamente protestantes, em legitimar ataques aos direitos individuais.
Certo é que tais transferências de elementos da mentalidade religiosa ao pensamento político e os ajustes entre eles não foram feitos de forma linear, muito menos previsível. Lembremos das sociedades historicamente comprometidas com a preservação dos direitos individuais que, em certos momentos e contextos específicos, avançaram para uma interpretação de sua própria história a partir da valorização de elementos , práticas e símbolos religiosos. Ou, que resgataram elementos desta combinação entre teologia e política que invertiam a perspectiva de valorização do indivíduo como detentor de direitos políticos e civis. Contudo, na longa história, que deixa movimentos de permanência mais inteligíveis, os diferentes ajustes entre teologia e política podem revelar o quanto estamos apegados a uma mentalidade religiosa sobre a política, mesmo que pensemos o contrário.
A dica é evidente. A identificação dos elementos religiosos em nossas ideias políticas pode ser um passo fundamental para reconhecermos os nossos limites ao poder político ou, ao contrário, nossa disposição em segui-lo. A leitura de Mark Lilla pode nos mostrar que o modo como aprendemos a lidar com o poder de Deus pode ser similar ao modo que aprendemos a lidar com o poder do Rei. Por isso, sua leitura é urgente.