por Vinícius Müller
É famosa a passagem da República de Platão na qual um camponês, após um desastre natural que destrói parte da propriedade onde trabalhava, encontra em meio aos destroços um anel que, a depender da posição no dedo, o torna invisível. O Anel de Giges dá ao camponês a possibilidade de, invisível, cometer as maiores atrocidades sem ser responsabilizado; inclusive atentar contra a vida do proprietário das terras para quem trabalha. Uma das questões portanto que emerge do diálogo é: quando invisíveis fazemos aquilo que, se estivéssemos sendo vistos, não faríamos? Em outras palavras: se pudéssemos nos beneficiar de crimes sem sermos vistos, os cometeríamos ou não?
Para muitos, quanto mais invisíveis, mais alargamos nosso comportamento em direção às fronteiras do que seria ético e, portanto, daquilo que seria esperado e considerado justo pela sociedade na qual vivemos. Em suma, defendemos, por exemplo, o respeito à dignidade do próximo, o reconhecimento do contraditório, a liberdade de expressão e a democracia como valores, mas só quando estamos sendo vistos. Quando colocamos o anel ou a capa da invisibilidade, tomamos atitudes contrárias àquilo que defendemos publicamente.
É claro que, fora da alegoria reproduzida por Platão, não há a invisibilidade absoluta ou a visibilidade absoluta, e sim nuances entre essas que seriam os parâmetros da questão. Somos mais invisíveis em determinadas situações do que em outras. Estudos sobre o comportamento de indivíduos inseridos em um grupo tentam captar essa sutileza. E se é verdade que quanto mais invisíveis mais tomamos atitudes contrárias àquilo que defendemos como valores éticos, a solução seria dificultar que situações que ampliem a invisibilidade sejam criadas e/ou reproduzidas. Se Brasília torna o homem público mais invisível, a imprensa deve ser livre para tornar mais visível o comportamento daqueles beneficiados pela invisibilidade que o poder lhes dá. A transparência seria um antídoto ou um freio ao risco moral.
Por outro lado, quando olhamos de longe para qualquer sociedade, sabemos que nem sempre aquilo que a formou no passado é aquilo que, no presente, gostaríamos de defender em público. Muito do nosso passado é contraditório, às vezes vergonhoso. Mas pedir coerência absoluta à História ou medi-la somente pelos nossos valores contemporâneos é, de algum modo, colocar-lhe um anel de Giges, jogar sobre ela uma capa da invisibilidade. Como dizia um antigo – e respeitado – ministro da Fazenda no Brasil: o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde.
Desse modo, a solução seria a transparência total. Em outras palavras, assumirmos que nem sempre em nossa trajetória tomamos as melhores decisões. Ao contrário: muitas foram vergonhosas e por elas, em alguns casos, devemos desculpas. Mas isso não significa escondê-las. Porque ao escondê-las estamos a admitir que podemos escolher quais de nossas atitudes devem ser invisíveis e quais devem ser vistas publicamente.
E nesse caso há sempre alguns riscos. O primeiro é: quem escolhe o que dever ser escondido e o que deve ser visto? Hoje pode ser você. Mas amanhã pessoas que pensam diferente de você. E sim, elas existem aos montes. O Taleban destruiu uma série de obras de alto valor histórico simplesmente porque eram ‘pagãs’.
O segundo é que aquilo que nos motiva a escolher nem sempre é um valor universal. Pode ser simplesmente um juízo de valor particular seu. A chance de ser anacrônico, nesse caso, é imensa. Imaginemos que daqui a alguns anos uma revolução mental ocorra entre nós brasileiros, instigados por uma liderança carismática que nos convença de que o futebol é o ópio do povo. Vamos esconder nossos cinco títulos mundiais? Vergonha para a nação?
O terceiro risco é o de simplesmente sabermos menos sobre nossa História. E saber menos não significa eliminar as contradições e equívocos do passado. Significa que escondemos as coisas que não queremos tornar públicas. E por mais que os motivos para escondê-las sejam justos, o resultado não é a sua eliminação, apenas a ignorância.
No brilhante romance Submissão, Michel Houllebecq imaginou uma França governada por um presidente islâmico. Os valores que hoje defendemos e publicamos, tais como tolerância, apreço pelo contraditório, liberdade de expressão e democracia, podem ser apenas aquilo que não escondemos. Imaginem o Brasil governado, assim como no romance francês, por um islâmico. Afinal, liberdade religiosa, tolerância e democracia são nossos valores. Agora imaginem que, em nome de seus valores, o presidente brasileiro-islâmico proponha eliminar aquilo que lhe parece um erro histórico do país e lance a seguinte pergunta: Por que não derrubar o Cristo Redentor? Minha resposta é: não, a História não se apaga, se estuda. Se alguém não pode compreendê-la e só sabe usá-la em seus julgamentos, o erro é dele, não meu. As contradições e equívocos devem ser vistos, não tornados invisíveis. E são as contradições que movimentam a História. A linearidade é matemática. Ou é censura. História é transparência.