Por uma interpretação do Brasil (parte 2)

Em sua recuperação quase arqueológica dos símbolos e ideias que perpassam e em parte constituem a realidade brasileira, João Camilo de Oliveira Torres, em sua típica prudência, sinaliza certos elementos aparentemente paradoxais na formação do Brasil. Um exemplo dessa nossa singularidade, diz-nos o historiador, é a precedência temporal do Estado em relação ao povo, na gênese brasileira. 

O projeto 3 x 22, iniciativa da Universidade de São Paulo que conta com a parceria do Instituto CPFL e do Sesc-SP, busca promover o debate histórico, artístico, cultural e polí­tico em torno do Bicentenário da Independência do Brasil e do Centenário da Semana de Arte Moderna a serem comemorados em 2022. Como parceiro do Instituto CPFL, o Estado da Arte promoverá uma série de artigos, podcasts, textos clássicos e entrevistas dedicados a reflexões sobre temas nacionais.

por Fabrício Tavares de Moraes

Em sua recuperação quase arqueológica dos símbolos e ideias que perpassam e em parte constituem a realidade brasileira, João Camilo de Oliveira Torres, em sua típica prudência, sinaliza certos elementos aparentemente paradoxais na formação do Brasil. Um exemplo dessa nossa singularidade, diz-nos o historiador, é a precedência temporal do Estado em relação ao povo, na gênese brasileira. 

Para o autor, “a História tem conhecido casos de precedência ontológica do Estado ao povo – mas ao povo como entidade organizada, a res publica dos antigos. Sempre havia uma espécie de multidão, amorfa e difusa, sobre a qual a autoridade se exerceria, consolidando o poder. Mas, no Brasil, o fato realmente espantoso era o da precedência física do Estado ao povo; não havia, a rigor, ninguém para ser governado pelo nosso estimável Tomé de Sousa”. [1]

As consequências dessa inversão cronológica, como provavelmente são visíveis a todos que se deparam com o aparato burocrático, é certo descompasso entre nossa cultura e nossas instituições, entre os costumes e os processos burocráticos, que se manifesta tanto na administração quanto em nosso ordenamento jurídico. A ausência inicial de um vínculo simbólico e institucional que nos proporcionasse um sentimento de nacionalidade, assim como de uma população efetivamente assentada no território, foi por óbvio um problema para os muitos movimentos sociais e revolucionários que marcaram a história brasileira desde então. 

À vista disso, não obstante as controvérsias e leituras acadêmicas mais recentes acerca do tema, para vários líderes nacionalistas posteriores, a Inconfidência Mineira serviu como o marco inicial da percepção dos brasileiros como povo distinto dos colonizadores portugueses. Segundo frase atribuída a Tiradentes, “nós, os mazombos, também valemos e sabemos governar”; é por isso que, na perspectiva de Oliveira Torres, o movimento de Vila Rica (atual Ouro Preto) tem de positivo essa consciência do mazombismo – “a consciência de que os homens nascidos no Brasil não eram, apenas, súditos americanos do rei de Portugal, mas uma gente com nacionalidade própria”. [2] Enfatize-se que Oliveira Torres é prudente em sua afirmação de que se trata de uma tomada de consciência enquanto povo distinto (em oposição especificamente a Portugal), e não um movimento nacionalista, o que seria, além de historicamente inexato, uma qualificação anacrônica. 

Porém, durante a República, os militares no poder buscarão justamente no alferes Tiradentes o símbolo e “antecessor” dos militares que, encarnando a alma nacional, buscam a liberdade do povo em relação ao aparato caduco da monarquia. Oliveira Torres, como bom monarquista, e não de todo errado, diz que, em certa medida, a República é um eco desse Estado imposto verticalmente sem qualquer conexão com a vida da sociedade brasileira da época: “Muito embora dentro da lógica brasileira da primazia do Estado como condição e causa formal do ser social, a república foi uma anomalia, se a considerarmos no quadro ideológico que inspira as revoluções republicanas. A república e a federação foram, no Brasil, decretadas por um governo que as forças armadas instituíram em virtude do declínio do Poder Moderador. Não houve o povo em revolta contra tiranias, reais ou fictícias; tomadas de bastilhas e lutas de barricadas. O povo levou muito tempo a entender o que se passava em torno”. [3]

Curiosamente, porém, e talvez em razão de seu contexto sociopolítico imediato, Oliveira Torres (como já dito: um ferrenho monarquista) celebra as forças armadas como “força política”, inclusive indicando que os presidentes do regime militar iniciado em 1964 assumiram a função análoga à do Poder Moderador…

De todo modo, é nítido que houve mudanças não só da percepção do papel da classe militar na sociedade, mas também na formação de seu contingente. Pois como diz José Murilo de Carvalho, com o desaparecimento progressivo do cadetismo (isto é, o recrutamento, no Antigo Regime, de jovens aristocratas para servirem como oficiais dos exércitos de suas nações), que aliás teve sobrevida no Brasil em razão da permanência do aparato estatal português no Brasil após a independência, a Academia Militar tornou-se cada vez mais uma possibilidade de ascensão social para os filhos das famílias remediadas – uma perspectiva que dificilmente se alterou desde essa época.[4] 

A propósito, se os proponentes do golpe republicano buscaram na Inconfidência Mineira (1789) a fundação “mítica” para sua história, o próprio exército brasileiro, por sua vez, atribuirá à Batalha de Guararapes (1648) a gênese do sentimento da existência nacional brasileira, por meio de um contingente que fundia as três etnias matriciais do Brasil: o negro, o índio e o branco. 

Não obstante os inevitáveis questionamentos dessa visão (que, como dissemos, adquire tons de narrativa fundante), sem dúvida o exército brasileiro, como afirma Oliveira Torres, é uma das poucas instituições que, se não eliminou os grandes atritos étnicos em suas estruturas, reduziu-os sensivelmente, ao ponto de exibir-se como uma integração exemplar na sociedade brasileira. 

Obviamente há outras questões quanto ao papel dos militares no Brasil, em especial a mudança, segundo ainda José Murilo de Carvalho, do soldado-cidadão para o soldado-corporação, especialmente após a década de 1940.[5] Essas alterações, contudo, extrapolam nosso presente ensaio, que se propõe apenas a uma breve demonstração de como as forças militares, na ausência de uma integração horizontal da sociedade brasileira em seus séculos iniciais, se apresentaram para a gerência de uma nação que supostamente fitava o abismo da desordem.

Portanto, retomando o ponto inicial, essa estranha “cosmogonia” do Estado, antecipando tudo o mais no Brasil, é talvez uma das forças estruturantes de nossa história que, junto a outros afluentes, desemboca no que Oliveira Torres chama de “mística do trono” ou “mística do poder”: “Há, entre nós, uma espécie de mística do trono, uma espécie de fidelidade ao Estado como tal. O nosso povo considera o ‘governo’ como algo essencial, legítimo em si mesmo, necessário, e cuja autoridade deve ser respeitada. Todos os políticos populares no Brasil sempre foram políticos autoritários e governantes que souberam encarnar vivamente a mística do poder”. 

Desse modo, essa “mística do poder, da autoridade como encarnação dos valores essenciais da nacionalidade pode ser explicada pelo fato de que, de Tomé de Sousa até hoje, o Estado foi o deus ex machina de nossa política, como foi dito: tivemos o Estado antes de termos povo. A independência foi feita pelo regente do reino, a federação como autonomia das províncias por ato do governo central…” [6]

É fato curioso que, quando da proclamação da República, muitos presos, párias sociais e contraventores manifestaram profunda insatisfação e, não raro, revolta; eram todos monarquistas e fiéis, ao menos segundo seu próprio testemunho, a D. Pedro II. Lembremo-nos também da chamada “Guarda Negra” (composta majoritariamente de ex-escravos) que se apresentaram em defesa da pessoa e honra da Princesa Isabel, prontos, conforme os relatos, a dar-lhe a própria vida. De igual modo, tínhamos, na Constituição Imperial de 1824, um dos documentos mais liberais da época (se comparado, é claro, ao contexto europeu), vigendo sobre um país escravagista. 

De modo sucinto, essas estranhas relações apontam para forças paradoxais dentro da estrutura social brasileira, que irrompem com certa evidência ao longo de nossa história: a independência proclamada pelo herdeiro da Coroa da metrópole e a industrialização e integração massivas do país levada a cabo por um caudilho latifundiário como Getúlio Vargas. 

Notas:

[1] João Camilo de Oliveira Torres, Interpretação da realidade brasileira. Brasília/DF: Edições Câmara, 2019.

[2] Ibid.

[3] Ibid.

[4] José Murilo de Carvalho, Forças armadas e política no Brasil. São Paulo: Todavia, 2019.

[5] Ibid.

[6] Oliveira Torres, op. cit.

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