por Heloisa Pait
O que lembrar? O que esquecer? Como falar de algo hoje que ontem víamos de modo distinto? Quando é que nossos erros viram acertos ou que passamos a ver em batalhas ganhas oportunidades perdidas? Estamos a todo o momento revisando nosso passado pessoal ou coletivo mas, em todo o mundo, esse processo parece estar agora arriscadamente acelerado.
No começo de minha vida adulta, nos primeiros anos da Nova República, os guerrilheiros dos anos 1970 eram jovens enganados cuja atuação militar pífia pouca relevância teve nos acontecimentos nacionais. Há alguns anos atrás, esses heróis e heroínas haviam se tornado os verdadeiros responsáveis pela retorno do país à democracia. Hoje parecem ser, as mesmíssimas pessoas, novamente os perigosos terroristas dos cartazes que vi apenas em fotografias.
As mudanças políticas bruscas, como as pessoais, exigem-nos um esforço adicional na constante elaboração da memória. É preciso, para manter a coerência mental, explicar os fatos de maneira a fazê-los caber em sua ideologia presente. Um liberal de direita que agora se encanta com a ditadura pode defender, por exemplo, os projetos faraônicos do regime militar dizendo que naquele momento era necessária a usina de Itaipu, a rodovia Transamazônica ou a usina nuclear de Angra dos Reis.
Do mesmo modo, um estatista de esquerda vai buscar apagar da lista de realizações do regime de 1964 tudo o que, para ele, valha a pena conservar, por exemplo a mudança do nome do país de Estados Unidos do Brasil para o nome atual, a profunda estatização da economia e centralização administrativa do país, “conquistas trabalhistas” como o FGTS e a intervenção estatal na cultura, com a criação de órgãos como a Embrafilme.
Negar a evolução da memória, fincando-se na estabilidade de um consenso antigo, que deu bons frutos, é uma opção talvez eticamente correta mas na prática pouco efetiva. Melhor, talvez, de modo corajoso, trazer razão e entendimento para um debate espinhoso, emotivo e politicamente acirrado. Muito modestamente, quero nesse artigo lembrar de uma das iniciativas do regime militar brasileiro, os acordos MEC-USAID e a reforma do ensino superior que se seguiu.
Nos primeiros anos do regime militar, vários convênios foram firmados entre órgãos federais brasileiros e a USAID, a agência americana para o desenvolvimento internacional, que resultaram numa série de propostas para o ensino brasileiro, algumas de óbvio interesse, como a universalização do ensino do inglês e a modernização da gestão escolar e universitária.
Mas era no tempo dos militares, e entende-se que a resistência às reformas estivesse relacionada ao clima de resistência geral ao regime no país. Se isso era verdade na época, ou se é parte de nossa reconstrução do momento, é difícil dizer sem uma pesquisa aprofundada. De qualquer modo, seria importante lembrar que a universidade brasileira não primou pela defesa da liberdade de expressão e da segurança física de seus docentes e alunos, como o fizeram tantas organizações nacionais.
A reforma, implementada a partir de 1968, é descrita de modo primoroso por Simon Schwartzman. Destaco três de seus elementos que me parecem importantes. Os acordos, que buscavam aproximar a educação brasileira do modelo americano de graduação e pós-graduação, propunham expandir o número de vagas do ensino superior, implementar o sistema de créditos e modernizar a pesquisa com a criação de departamentos colegiados e o fim da cátedra que, supunha-se, era arcaica.
Onde deram essas três reformas? Ora, o personalismo de nossa cultura não acaba por decreto. Caciques são figuras folclóricas na literatura, patéticas nos partidos, mas nunca ausentes de nossas instituições. A cátedra hoje se esconde atrás de um conselhismo que endossa, travestido de democracia, deliberações de professores que, por mérito ou habilidade política, comandam recursos e processos seletivos e, quando necessário, impedem que formas independentes de trabalho docente se manifestem. Os recentes casos de concursos para titular na Faculdade de Direito da USP ilustram o fenômeno: decisões colegiadas são dificilmente contestadas, pois a responsabilidade se dilui mesmo que a vontade seja unívoca.
O sistema de disciplinas eletivas americano surgiu no século XIX em Harvard, para acomodar, numa mesma instituição, alunos com perfis e ambições distintas: as mesma disciplina seria ofertada a alunos de áreas distintas, com objetivos de vida diferentes. Isso economizaria recursos e ainda teria a vantagem de democratizar o conhecimento: um jovem interessado numa formação prática poderia fazer uma disciplina de estudos clássicos e um jovem preparando-se para uma carreira de advogado poderia estudar algo prático. O sistema de Harvard tornou-se padrão americano e, mais recentemente, foi adotado pelos europeus. Entre nós nunca pegou.
Ele parece agredir de modo frontal a separação entre grupos que adviria da livre escolha de disciplinas e conferir um pragmatismo ao saber que não se adequa aos ideais mais nobres de nossa universidade. Nossas turmas ainda são na prática anuais e confinadas a faculdades – e suas hierarquias e estruturas de poder –, com as reduzidas escolhas discentes recebendo o apropriado nome de “optatórias”. E a expansão do ensino? No que deu? Por um lado, ela é um fato. Hoje formam-se anualmente um número de jovens incomparavelmente maior, em termos absolutos e relativos. Por outro lado, temos números de evasão muito elevados e pouco transparentes.
A evasão, nos Estados Unidos, é vista como um sério problema. Boas faculdades se gabam de acolher seus alunos da admissão até o diploma. A evasão é o sinal óbvio de que, por alguma razão, o alunos entenderam que ficar no curso valia menos a pena do que sair por aí. Aqui, ela não só não é tratada como problema como cumpre a função institucional de alijar uma parcela significativa de estudantes de um sistema pago por todos. O aluno com demandas específicas ou ambições distantes do currículo oferecido frustra-se individualmente mas não é tratado pela instituição como objeto de exame e consideração. Investimentos em permanência estudantil não atacam o principal: os anos na faculdade atendem ao que o aluno precisa?
A massa de alunos que chega a cada ano em nossas instituições trazem idéias novas, hábitos novos, e objetivos de vida novos também. Entretanto, a evasão cria um conveniente filtro, expelindo o que há de novo e mantendo quem se adapta melhor ao que está aí, seja por genuíno interesse ou por precisar do diploma, em nossa sociedade ainda cartorial. Desta forma, pode-se dizer que a expansão do ensino como instrumento modernizador e democratizante também se reverteu ao modelo anterior elitista, onde os chamados excedentes podiam mas não podiam se matricular nas universidades.
Mantivemos, portanto, as cátedras, os excedentes, e as turmas anuais, em nome da luta contra a ditadura e o imperialismo, o que resumido assim não parece muito verossímil. Talvez seja a hora de rever os acordos MEC-USAID e entender por que, de fato, eles falharam. Que resistências, tão frágeis para apoiar dissidentes, se mobilizaram para rechaçar a Reforma de 1968? Caso criássemos, como foi proposto na Nova República, uma comissão internacional para recomendar reformas no ensino público nacional, o que ela proporia? Que mudanças legais, acadêmicas, financeiras adviriam? E, mais importante, como faríamos para evitar o destino comum de reformas anteriores?
No plano mais geral, não adianta fingir que não está em curso uma revisão da memória dos anos ditatoriais. Minha vontade pessoal é aferrar-me à visão daqueles anos forjada durante a Nova República, mas como cidadã sei que é hora de enfrentar o debate. É preciso, portanto, olhar para trás, para o BNDE e para o MEC-USAID, para Wilson Simonal e Sergio Bernardes, para a guerrilha e para a repressão, para a censura e para o impacto impressionante das artes daquele período, para a Rede Globo e para as novelas da Tupi e, com coragem, buscar informar o debate de modo a neutralizar, com razão e com serenidade, as visões mais autoritárias que surgem em nosso horizonte, à direita e à esquerda.
Artigos consultados para esse ensaio:
Sadi Franzon. Os Acordos MEC-USAID e a reforma universitária de 1968: as garras da água na legislação de ensino brasileira. XII Congresso Nacional de Educação, Curitiba 2015.
Simon Schwartzman. Brasil: Oportunidade e Crise no Ensino Superior. Publicado originalmente como “Brazil: Opportunity and Crisis in Higher Education”, Higher Education 17, 1, 1988.
Para saber mais:
O blog do professor Simon Schwartzman é rico em reflexões e pesquisas sobre a educação brasileira.
A psicanálise, e em especial a vertente kleiniana, estuda com profundidade as dificuldades em lidarmos com memórias conflitantes, nossas estratégias para encarar contradições ou escapar delas. Melanie Klein, Hanna Segal e Wilfred Bion são alguns dos nomes associados a essa corrente de investigação.
Sobre a relação entre democracia e educação, veja John Dewey e nosso Anísio Teixeira. Do último, com outros educadores, veja o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932.