A República em saltos (Parte I)

A questão contemporânea, nesta quadra crítica da História da República em pleno século XXI, é se elementos análogos adaptados ao contexto podem ser vistos em suas aproximações e parcerias.

por Vinícius Müller

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Há dois movimentos na História que, não obstante se confundirem e se complementarem, também obedecem a comandos diferentes. O primeiro se relaciona com os tempos de reação e adaptação de agentes variados em contextos semelhantes. O segundo, com a dificuldade que temos em identificar se uma tendência deve ser entendida primordialmente como o fim de um período ou o início de outro. Há exemplos que podem esclarecer tais sutilezas e que sinalizam como a intersecção entre tais movimentos geralmente enfraquecem nossa capacidade de fazer a Historia do presente.

Tomemos um exemplo, então, como ilustração.  Há aproximadamente cem anos o surgimento de novas pautas sociais ao longo das décadas de 1910 e 20 precipitou reações diferentes entre grupos, organizações e instituições públicas no Brasil. As pautas que avançavam seguiam, em geral, o padrão que outras regiões do mundo já tinham vivenciado. As mais relevantes relacionavam-se com o crescimento dos direitos dos trabalhadores, tanto em aspectos mais práticos como regulamentação de tempo de jornada, como também àqueles mais ideológicos ligados às discussões que envolviam nacionalismo, socialismo e anarquismo. Isso, é claro, estava vinculado a uma parcela da população, principalmente aquela mais urbanizada e que envolvia os trabalhadores das fábricas que então engatinhavam em algumas regiões do país. Contudo, esta parcela da população, mesmo capaz de influenciar o debate público como ocorreu durante a Greve Geral de 1917, não era grande o suficiente para ferir de forma fatal a estrutura do poder político que vigorava no país desde o início da República.

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Manifestação em São Paulo durante a Greve de 1917 (“A Cigarra”, 26/07/17 )

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Para que se transformasse em um movimento que de fato ameaçasse as estrutura da Primeira República (1889-1930), era necessária uma ampliação de sua pauta e de seus relacionamentos, de modo que se aproximasse de outros grupos e lideranças. Esta ampliação dependia, assim como dependeu em outros contextos análogos, de uma costura que envolveu ao menos quatro questões. A primeira foi a identificação dos grupos que se sentiam pouco relevantes ou subestimados pelo status quo. Na década de 20, ao menos três grupos se apresentavam desta forma: os saudosos de certa centralização política e, portanto, críticos do modelo federalista definido pela Constituição de 1891; alguns militares descontentes com os arranjos que haviam sido definidos pela mesma Constituição e pelos fracassos do período em que governaram a República e; lideranças econômicas regionais que, não obstante terem seu poder local amplificado pelo fenômeno do coronelismo, sentiam que eram irrelevantes nas decisões tomadas em âmbito nacional.

Contudo, estes grupos e seus respectivos descontentamentos não eram suficientemente fortes para que apostassem numa ruptura ou ao menos vislumbrassem uma mudança mais profunda na estrutura republicana. Isso porque, mesmo descontentes, não estavam tão distantes do centro como alguns querem imaginar. Portanto, era preciso que novos grupos ascendessem para que este desconforto se transformasse em projeto e ação política. E que, de fato, colocassem em risco o arranjo estabelecido há décadas. Estes novos grupos surgiram, e entre eles estava o já citado operariado e suas reivindicações trabalhistas e ideológicas. Também estavam outros personagens urbanos que, sob o mesmo contexto, aumentavam o volume de suas reivindicações: os industriais e a classe média urbana. Esta, em sua parcela mais enriquecida, esteve envolvida na tentativa de criação de uma nova estética que explicasse o país, o modernismo de 1922.

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Cartaz da Semana de Arte Moderna, São Paulo, 1922

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Por fim, dois fenômenos surgidos concomitantemente também expressavam este alargamento das reivindicações do período. Um deles, o Cangaço, acabou por ter menor relevância na cena política, ao contrário de sua centralidade na formação social e cultural de partes do nordeste brasileiro. O outro, o Tenentismo, se mostrou mais amplo em suas reivindicações e ações, assim como mais determinante para os acontecimentos que ajudaram a derrubar a Primeira República. Tamanha importância do tenentismo deveu-se a alguns fatores centrais, como sua origem e representatividade entre camadas mais jovens da oficialidade militar. Portanto, para além do desconforto entre alguns militares de alta patente, os Tenentes revelavam uma disposição de transformar este desconforto em uma proposta de ação política que simpatizava com os métodos revolucionários. Como se apontassem, condenando, para a incapacidade, falta de vontade ou mesmo temor entre a alta oficialidade em se indispor, até o rompimento, com a oligarquia então dominante. Por isso, não só propunham métodos revolucionários, como dependiam da aderência de jovens oficiais e de simpatia de outros grupos ascendentes. Tentaram sem êxito com o Cangaço. Com mais sucesso, conseguiram com as camadas médias urbanas por meio das semelhanças que tinham em relação a alguns itens de suas reivindicações: ampliação dos direitos dos trabalhadores e de grupos poucos incluídos, como direitos políticos às mulheres; e combate ao domínio oligárquico a partir de condenações morais e, no limite, moralistas. Como se houvesse uma sabedoria das pessoas comuns que estava, em volume alto, reivindicando para ser a ética que garantiria o renascimento do país. Ou, na pior das hipóteses, a purificação.

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Eduardo Gomes, Siqueira Campos, Nílton Prado e o civil Otávio Correia

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Somada a isso, a mudança no debate sobre o desenvolvimento econômico e a inserção brasileira na economia internacional ampliava o eco das reivindicações tenentistas. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e as dificuldades posteriores na retomada das relações econômicas entre os países fizeram com que o tradicional modo de participação latino-americana na economia internacional fosse amplamente questionado. O caso argentino e sua dependência das exportações de trigo e carne talvez seja o exemplo mais significativo. Mas, o caso brasileiro seguiu a mesma lógica. A liderança das exportações primárias na economia nacional foi questionada em favor do avanço da indústria e da urbanização, da ampliação do mercado interno e da redução da desigualdade associada ao modelo agrário-exportador.

Entre todos estes acontecimentos, o arranjo que mantinha a estrutura política da Primeira República reagiu de modo diverso ao longo do período entre a primeira Grande Guerra e sua queda em 1930. Em princípio, parecia ser possível frear o avanço de novos atores por meio da composição entre alguma porosidade em relação aos descontentamentos menos enfáticos e a agressividade em resposta às novas e mais virulentas reivindicações. Em outros termos, algumas parcerias no arranjo do poder e ajustes na política econômica, de um lado, e resposta policial aos problemas sociais, por outro. Esta estratégia ficou progressivamente comprometida quando, no início da década de 20, emergiu a segunda fase de reivindicações por meio da fundação do Partido Comunista Brasileiro em 1922, além do Tenentismo — e de sua manifestação no episódio do Forte de Copacabana — e da estética modernista. A resposta, algo desajustada do governo de Artur Bernardes (1922-26), foi o maior exemplo disso. Com quase todo o mandato em estado de sítio, o mineiro Bernardes é considerado um dos piores presidentes da história brasileira.

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Artur Bernades por Bror Kronstrand, c. 1922

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A distensão possível viria com o presidente seguinte, Washington Luís (1926-30). Mas não seria suficiente para enfrentar a onda que se avolumava em nome das mudanças desde ao menos 1917. As marcas deixadas pelo Tenentismo e sua agressividade revolucionária, a cada vez mais inquestionável necessidade de ampliação dos direitos sociais e políticos aos trabalhadores urbanos (1), as fraturas no condomínio que governava o país há quatro décadas (2), a incapacidade de ajustamento entre federalismo e cidadania (3), os efeitos econômicos da 1ª Guerra (4), a urbanização ascendente (5) e o nascimento de uma nova estética que representaria a nacionalidade (6) foram as bases do movimento que ascendeu ao poder em 1930 em um país assustado pelos possíveis efeitos da crise econômica de 1929.

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O Estado de S. Paulo, 25/10/1929

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Ou seja, a mudança necessária à derrubada da Primeira República dependeu de ao menos quatro elementos, que, em geral, também podem ser vistos em vários outros momentos: a renovação de antigas reivindicações que, se estiveram por algum tempo ‘domesticadas’, foram potencializadas pelas mudanças da conjuntura pouco previsíveis (como aquela resultante da Primeira Guerra Mundial); o surgimento de novos grupos e/ou novas reivindicações mais periféricas e menos comprometidas, portanto, com o status quo (como a greve de 1917 e o Tenentismo); as intersecções entre reivindicações e de grupos variados que ocorreram a partir da aproximação entre valores semelhantes (como aqueles genéricos e ligados à crítica moral ‘contra o poder da oligarquia’ ou  ‘contra a corrupção’, por exemplo) e; a legitimidade que novas ideias e propostas econômicas, políticas e culturais ganharam entre os membros da elite do país (como foram a industrialização, a urbanização e o modernismo).

Todos estes elementos e suas conexões dependeram de como os governos entenderam tais mudanças, responderam a elas e tentaram se adaptar. Ou seja, se o governo de Artur Bernardes foi capaz de no curto prazo frear os tenentes, os elementos que tornavam o movimento da baixa oficialidade atrativo a uma ainda pequena e ascendente camada média urbana se mostraram mais duradouros. Se a mudança econômica que apontava ao avanço industrial foi entendida por Washington Luís, a crise de 29 mostrou a necessidade de aceleração desta mudança. E, portanto, insinuou a incapacidade do governo representante do arranjo político que vigorava há 40 anos em liderar tamanha transformação. Era preciso uma nova liderança, suficientemente legítima e que representasse alguma ruptura, para assumir esta bandeira antifederalista, o que agradava aos militares. Também nacionalista e defensora dos direitos dos trabalhadores, o que agradava aos tenentes, assim como aos operários e às camadas médias urbanas. E, por fim, industrialista, o que confirmaria e aceleraria a transição econômica pela qual o país passava. O sucesso foi de tal ordem que, aproximadamente cem anos depois, muitos de nós ainda temos esta liderança e este processo como o mais significativo de nossa história republicana.

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Comitiva de Getúlio Vargas, fotografada por Claro Jansso

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A ascensão de Vargas em 1930, assim como seu estilo de governo e seus resultados ainda deixam filas de viúvas por todo o país, em todos os espectros políticos e ideológicos. A questão contemporânea, nesta quadra crítica da História da República em pleno século XXI, é se elementos análogos adaptados ao contexto podem ser vistos em suas aproximações e parcerias. E, se as reações dos variados agentes, impactadas por mudanças na conjuntura, estão avançando para uma ruptura mais ou menos agressiva do arranjo que nos governa desde o fim do governo militar e da Constituição de 1988.

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