por Anderson Vichinkeski Teixeira
………..
Certos pensadores acabam ganhando rótulos que, com o tempo, terminam falando muito mais do que as suas próprias obras. Carl Schmitt tornou-se amplamente conhecido por dois rótulos difíceis de serem removidos: “teórico do estado de exceção” e “jurista do nazismo”. O primeiro tem uma forte correspondência com a obra schmittiana, sobretudo na juventude do autor. Já o segundo rótulo possui algum grau de correspondência somente com os fatos que se sucederam até 1935 e, sobretudo, até a expulsão de Schmitt do partido nazista e a ascensão de Karl Ernst Haushofer como o grande filósofo, jurista, geopolítico, enfim, grande pensador do nazismo. Como tentarei expor no terceiro e último texto, Haushofer foi schmittiano somente no momento em que definiu um inimigo concreto e usou de todos os meios para eliminá-lo em proveito daquilo que entendia ser a normalidade: o próprio Schmitt seria o inimigo maior da teoria do espaço vital (lebensraumlehre) idealizada por ele. Bastou que seu principal pupilo, o ex-aluno Rudolf Hess, assumisse a condição de líder do partido nazista e pessoalmente viesse a conduzir o processo de expulsão de Schmitt dos quadros do partido. No entanto, essa história – de aparente ciúmes e disputa interna entre intelectuais de um partido extremista do início do século passado – tem implicações muito relevantes para as relações internacionais no século XXI e merece uma atenção maior no nosso terceiro texto sobre o autor em discussão.
O ponto ao qual devemos nos ater neste momento é a compreensão de Schmitt sobre uma relação altamente atual: normalidade vs. exceção. Ainda durante a Faculdade de Direito, seus principais interesses eram autores que tratavam de justificar as origens do poder político do Estado moderno; desde Jean Bodin e Thomas Hobbes, passando por Joseph De Maistre e Donoso Cortés, ambos muito vinculados aos contextos políticos de seus países, França e Espanha, respectivamente, até chegar a importantes interlocuções com jovens contemporâneos seus, como Walter Benjamin. Em sua tese doutoral e, logo em seguida, em tese de livre-docência, Schmitt demonstrava intenso fôlego em dissecar os conceitos políticos que chamava de “teológicos”; dizia que teria sido uma “teologia secular” que, desde o século XVI, erigiu as bases do Estado moderno em oposição a qualquer outra forma de poder existente, em especial, em face do poder da Igreja.
A palavra “normalidade” é a composição latina entre uma normalis e o sufixo idade, que significa o atributo de algo, a característica de algo. Normalis seria uma régua de carpinteiro na antiguidade romana, uma espécie de esquadro. Mas a origem é ainda mais antiga e toca o direito: derivaria do grego nomos. Originalmente, seria também uma régua, bem mais flexível e capaz de medir os confins entre coisas dispostas em um terreno montanhoso. Do nomos o pensamento ocidental produziu o conceito de norma. Esse exercício etimológico não tem por finalidade cansar o leitor; presta-se tão somente para recordar como a ideia de “normalidade” está, em essência, ligada à ideia de “estar regido por uma norma”. Em tese de 1921, Schmitt tinha esse problema como pano de fundo daquilo que chamou de Romantismo político (inclusive o título da tese era esse): a tentativa da política, por meio do Estado moderno, de atribuir normalidade a todas as condutas humanas. Algumas perguntas eram inquietantes a ele: qual o espaço para o irracional? Para o arbitrário? Para um ditador que simplesmente impõe sua vontade pela força? Surgem, então, sua tese de livre-docência para tratar do tema A ditadura (1921). Logo no ano seguinte publica o texto que lhe seria marcante em sua biografia: Teologia política. Tal obra foi tão impactante porque é uma espécie de ponto de chegada de seu pensamento sobre como o Estado moderno substituiu a religião na política; sobre como o Deus onipotente agora teria o próprio Estado se tornando onipotente! Assim, competiria ao Estado definir o que seria a normalidade.
Mas onde entraria a exceção? Schmitt emprega uma metáfora de difícil compreensão para aqueles que não são muito próximos das suas obras, mas que tentarei recuperar de modo pontual: o estado de exceção estaria para o Estado moderno assim como o milagre está para a teologia.[1] O milagre seria uma forma de corrigir os atos humanos que violam as leis da natureza. Logo, a exceção seria um modo de corrigir a política do Estado quando ela não funciona com base na própria normalidade que institui. Não seria isso uma perigosa supervalorização da capacidade humana de se autoguiar e transcender da normalidade para a exceção? Schmitt não estaria concebendo um remédio demasiadamente amargo contra as insuficiências do próprio Estado? Diversas vezes ele se dizia um mero intérprete do fenômeno político, pois a essência do humano é o existir político, seja na normalidade ou na exceção. Na antiguidade grega o nomos era o que separava a civilidade da barbárie, da anomia, da ausência de qualquer padrão de conduta aceito por todos.
….
….
Exatamente por ter tanta convicção na política e na capacidade humana de se ordenar que ele entendia que mesmo na exceção existiria um soberano. Na normalidade, este seria o Estado. Mas quem seria o soberano no estado de exceção? A resposta está sintetizada naquela que talvez seja sua frase mais conhecida: “Soberano é quem decide em estado de exceção.”[2]
Ocorre que o seu conceito político-jurídico de soberania encontra-se intimamente vinculado à noção de poder (comando máximo) em uma sociedade política, resultando em um conceito de soberania que lhe é peculiar, até mesmo, reducionista. Para compreender uma tal noção de exceção sem entende-la como uma categoria conceitual que simplesmente legitimaria o arbítrio de alguém que se revolta contra uma lei injusta do Estado, torna-se importante recordar duas questões essenciais que Schmitt precisou enfrentar.
A primeira delas estava em acompanhar a tendência presente em todas demais ciências e esferas da vida humana: a superação do paradigma territorialista da soberania estatal. Ele dizia não ser exagerado afirmar que todas as esferas e âmbitos da vida, em todas as ciências e formas de ser, conduziram à produção de um novo conceito de espaço, de modo que “As grandes modificações da imagem geográfica da terra foram apenas um aspecto exterior da profunda transformação indicada com o termo, tão rico de consequências, de ‘revolução espacial’.”[3]
Já a segunda questão envolve a definição exata de outro conceito schmittiano clássico que merece ser recordado aqui: o inimigo político. Ele dizia que o inimigo “não é algo que se deva eliminar por qualquer motivo, ou que se deva exterminar pelo seu desvalor. O inimigo se situa no mesmo plano que eu. Por esta razão devo me confrontar com ele: para adquirir a minha medida, o meu limite.”[4] O “inimigo absoluto” era, para Schmitt, algo a sempre ser evitado devido à impossibilidade de busca pela paz que tal absolutização causaria, pois, uma vez encerrada a guerra, uma mínima adesão a princípios do outrora inimigo será passo fundamental para a construção de uma nova ordem política.[5] Mesmo quando em estado de exceção, o inimigo seria uma medida para a correta delimitação do poder soberano.
Com esses dois conceitos Schmitt tenta dar fechamento ao que seria o estado de exceção: por um lado, seria um modo de ir além dos confins do Estado, dos seus limites geográficos, possibilitando enfrentar qualquer ameaça externa; por outro lado, teria na existência concreta do inimigo as medidas capazes de definir, igualmente em concreto, o poder político de quem é o soberano. Em poucas palavras, a normalidade seria o domínio da política por meio do Direito; a exceção seria o domínio da política por meio da força.
A atualidade dessa construção schmittiana de estado de exceção nos coloca um problema de elevadíssima dramaticidade: os conceitos de “estado de defesa” (ou “emergência” em alguns países) e “estado de sítio” estão assentados na tradicional ideia liberal de primazia do Direito. Não há insurgência interna, desastre natural, invasão inimiga ou calamidade pública que não possa ser enfrentada e resolvida dentro dessas duas categorias conceituais – presentes na Constituição Brasileira de 1988 em seus artigos 136 e 137, respectivamente.
O problema ganha excepcional ineditismo e dramaticidade quando o inimigo não tem farda, não é facilmente localizável e se movimenta sem a mínima previsibilidade. As novas emergências globais apresentam desafios que colocam em xeque os próprios conceitos de estado de defesa e estado de sítio. Hoje, em 2020, enfrentamos um emergência sanitária global. Quem nos assegura que, por exemplo, em breve não será uma emergência ambiental global?
Se pensarmos em como era nossa vida um mês antes das medidas de contenção social para enfrentamento da pandemia do Covid-19, a ideia de exceção schmittiana, isto é, de poder por meio da força não nos parece familiar? Não estamos enfrentando um grau de excepcionalidades jurídicas que, para fins de proteção da nossa vida, não ameaçam nossas concepções clássicas de direitos individuais, de direitos de liberdades, ou mesmo de civilidade? Na perspectiva de Schmitt, as tradicionais categorias do Estado moderno chegariam a um determinado ponto de esgotamento em que precisariam ser complementadas, não propriamente substituídas, por outras capazes de dar conta dos novos fenômenos que o mundo traria. Novos inimigos surgiriam e as respostas estatais se mostrariam cada vez mais débeis.
Porém, esse tema trata do que chamarei de “Visionário do século XXI”, no que toca ao direito internacional e às relações internacionais. De um modo muito espirituoso, Günter Frankenberg chamava Schmitt de “Cassandra de Plettenberg”, devido a sua capacidade de prever infortúnios do direito público na segunda metade do século XX. Tendo em vista sua singular importância e atualidade para as relações internacionais, permito-me retomar no próximo e último ensaio.
…………….
Notas:
[1] Utilizo-me aqui da coletânea que inclui o texto de 1922, ver SCHMITT, Carl. Le categorie del politico. Bologna: il Mulino, 1972, p. 61-62.
[2] SCHMITT, Carl. Le categorie del politico, cit., p. 33.
[3] SCHMITT, Carl. Terra e mare. Milano: Giuffrè, 1986, p. 63. (tradução livre)
[4] SCHMITT, Carl. Teoria del Partigiano. Milano: Adelphi, 2005, p. 119. (tradução livre)
[5] SCHMITT, Carl. Teoria del Partigiano, cit., p. 131.