Simon Schama e a epopeia do pertencimento

Em seu mais novo livro lançado no Brasil, o autor britânico cobre o período de 1492 a 1900 e fornece as bases para a compreensão da história moderna e contemporânea dos judeus.

Ao final do primeiro volume de A História dos Judeus, publicado no Brasil em 2015, o historiador britânico Simon Schama assim escrevia a respeito da expulsão dos judeus dos territórios espanhóis promovida por Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão, os “reis católicos”: 

Nenhum historiador, e decerto não o autor deste livro, constrangido por delicadezas literárias, pode dar uma ideia do horror, do assombro, do medo e da agonia patética dos judeus ao tomarem conhecimento da implacável sentença de morte imposta de um momento para o outro a comunidades que lhes pareciam, na verdade, suas “Jerusaléns de Espanha”, onde sua língua, transformada no ladino, florescera; onde rabinos tinham estudado e escrito; onde canções litúrgicas de amor haviam sido compostas e entoadas e cantadas; onde o pão fora sovado, e os doces, assados; onde as taças de vinho tinham sido viradas em circuncisões; onde noivas e noivos haviam se colocado sob a chupá e assinado o decorado contrato nupcial em aramaico, a ketubá (…); e que agora se esvaziariam, pois os judeus que tinham construído lares no exílio agora eram exilados desse exílio. 

Não são apenas as qualidades do historiador erudito, do escritor apaixonado e do retórico cativante que Simon Schama exibe nesta dramática passagem que, de modo condensado, transmite ao leitor todo o páthos da situação narrada: é também o denso encapsulamento da própria história dos judeus, a matéria mesma do livro de Schama, que se acha ali transmutada em palavras que negam poder dizer o que efetivamente dizem — o horror, o assombro, a agonia de um povo exilado sempre em seus próprios incontáveis exílios. Se a saga da “procura das palavras” (subtítulo do primeiro volume) trazia já a coloração diferente que o autor de O Poder da Arte pretendia imprimir em sua grandiosa empreitada de uma história dos judeus, portava igualmente este traço inescapável: na epopeia multifacetada de um povo, um fio condutor trágico faz insistente sua presença, buscando tudo definir — a condenação, o exílio, suas repetições. 

Detalhe de “Jews Praying in the Synagogue on Yom Kippur”, pintura de Maurycy Gottlieb (1878).

Simon Schama, contudo, dobra sua aposta contra uma “história lacrimosa” do judaísmo em seu segundo volume, A História dos Judeus. Pertencimento — 1492-1900 (Cia. das Letras, 836 páginas; tradução de Donaldson M. Garschagen), que sai no Brasil sete anos depois de seu lançamento original no mercado anglo-americano. De fato, este foi um ponto insistente do autor desde o início: a história dos judeus tinha despertado nele a vocação de historiador, mas como contar esta história? O que o leitor brasileiro encontra nesta obra de fôlego é a duplamente brilhante solução de Schama para esta questão tão elementar para qualquer historiador — de fato, para qualquer escritor.

Primeiro, Schama escolheu uma estratégia como storyteller, como narrador, que o diferencia de outros trabalhos a respeito de seu tema. Ao contrário de um Paul Johnson, por exemplo, que inicia sua obra (de divulgação popular, é verdade) com Abraão e a cidade de Hebron; ao contrário, ainda, de uma maioria expressiva de historiadores que buscam um ordenamento cronológico estrito associado aos grandes marcos da história política e religiosa que caracterizam o tema, Schama explora a potência de suas habilidades narrativas para escolher histórias exemplares de indivíduos e comunidades que instanciam de modo expressivo toda uma época ou um dilema, um inteiro processo sociopolítico ou a totalidade de um drama espiritual, dando voz a uma pletora de personagens, dos mais comuns e, por vezes, desconhecidos aos mais célebres, fazendo de sua obra uma grande polifonia das vidas judaicas de todas as épocas — não por acaso, o título de seu projeto é The Story of the Jews, e não mais uma History a este respeito. “Contamos nossas histórias para sobreviver — nós somos nossas histórias”, afirma Schama no primeiro episódio da série produzida para a rede BBC e que está na origem do projeto do polivalente autor e apresentador (série que segue, infelizmente, indisponível no Brasil).

Segundo, o autor recusou a formulação quase convencional na narrativa judaica a respeito de sua história e de sua identidade: aquela que faz do sofrimento, da perseguição e do morticínio perpetrados contra o povo judeu o núcleo daquilo que o constitui essencialmente. Como fica evidente pela narrativa do episódio que encerra o primeiro volume, reproduzido acima, isto não quer dizer que Schama oculte ou minimize a tremenda dose de dores que acompanha o caudaloso rio das histórias de seu povo — longe disso. Ao conferir certa unidade ao relato deste segundo volume, o autor compõe uma verdadeira “epopeia do pertencimento”, fazendo falar os variados tipos humanos e sociais que são, eles próprios, a história de seu povo.

Simon Schama. Imagem de divulgação do documentário “The Story of the Jews”. Crédito: Oxford Film & Television.

Cobrindo um período que coincide com o que costumamos chamar de Modernidade, o livro começa com as peripécias de dois personagens extraordinários do século XVI, Davi Ha-Reuveni e Salomão (Shelomo) Molkho, figuras que combinaram uma dimensão mística e messiânica com vocação para libertadores do povo judeu em Portugal e alhures e que tiverem um destino comum — as chamas “sagradas” da Santa Inquisição. Apesar de suas trajetórias algo erráticas, encarnam um ponto de virada na experiência de muitos sefarditas que, em diferentes momentos dos séculos XV e XVI em Portugal e Espanha, foram obrigados a se converter ao cristianismo, mas que mantinham, de modos variados, vínculos com as velhas tradições. Não por acaso, a expressão “marrano”, literalmente “porco”, usada pejorativamente para designar essa espécie de judaísmo oculto e que seria tão fortemente perseguido, com o tempo passaria a ser usada com orgulho por aqueles que voltavam ao judaísmo. Mais que a perseguição e a morte na inquisição, Schama reconhece neles uma forte reivindicação: liderar o povo judeu no reencontro com as míticas Tribos Perdidas — “Jerusalém seria libertada”, como brinca o autor. 

Não é mera coincidência que a figura final do livro, na outra ponta cronológica, seja Theodore Herzl, em 1898, encontrando o Kaiser Guilherme “na rua dos Profetas, um pouco além da Porta de Damasco na Cidade Velha”. Entre o mítico retorno simbolizado por Davi o Rubenita e o movimento político conhecido por sionismo e liderado por Herzl, encontram-se quase quatro séculos de uma busca por pertencimento e autenticidade que somente poderiam encontrar resolução com uma vindoura pátria judaica — não é assim, afinal, que devemos ler a estrutura quase anelar que o primeiro (“Poderia ser agora?”) e o último (“Seria agora?”) capítulos do livro acabam por propor?

Penso que sim. De todo modo, é menos na promessa daquilo que apenas o terceiro volume da obra poderá cumprir e mais no impressionante ritmo apaixonado que Simon Schama imprime à narrativa de A História dos Judeus na modernidade europeia que o leitor encontrará o poder encantatório de seu autor no trato de tão variegado material, encontrado como pode ser, por exemplo, no amor epistolar de Sarra Copia, moça de dezoito anos veneziana e moradora do gueto, e o autor de A Raina Ester, Ansaldo Cebà, que a certa altura escreve à jovem: 

Devo viajar a Veneza para ser circuncidado, ou virás a Gênova para seres batizada? Dize-me livremente o que preferes. Considera, porém, que não preciso verter sangue, pois de que isso me valeria. Entretanto, tens boa razões para buscar água, que te faz falta. 

Apesar das investidas batismais de Cebà, Sarra não apenas não se converteu, como inscreveu seu nome com brilho nas letras e na vida espiritual italianas e judaicas daquela Veneza seiscentista. Nem o processo da Inquisição movido contra ela abalou os alicerces de sua identidade de judia e mulher cultivada e sábia.

Sarra Copia Sullam (1592–1641).

Não são de menor interesse as vidas de Leone de Sommi, “o primeiro produtor e diretor de espetáculos claramente judeu a respeito de quem temos informações”, ou Daniel Mendoza, o boxeador judeu inglês triunfante nas décadas finais do século XVIII — certamente um tipo humano menos inclinado à facil estereotipização dos judeus a que tantos estiveram acostumados por tanto tempo. Cada qual a seu modo, esses indivíduos representaram modos de convívio, tensão e pertencimento da vida judaica em distintas comunidades em épocas diferentes. Que o leitor não espere, contudo, que apenas a vivacidade de Schama possa alterar a história. 

“Para os judeus, portos seguros são sempre provisórios”, lemos ainda no início do livro. E não foi apenas em Portugal e Espanha, pontos de partida da obra, que os judeus tiveram a impressão de pertencer para, a seguir, serem impiedosa e sanguinariamente expulsos e massacrados — uma sequência que, exceto por alguns poucos lugares como Amsterdam e os surpreendentes casos de Keifang, na China da dinastia Song, e Kerala, na Índia do século XVII, repetiu-se com cruel e meticulosa regularidade. Até mesmo como problema interno à vida judaica, a questão do pertencimento foi singularmente problemática, como o caso de Uriel da Costa, nascido Gabriel da Costa Fiuza, bem ilustra. Nas palavras de Schama, 

[…] o momento que ele personificou na história judaica foi o nascimento doloroso e a morte prematura do judeu secular, obsessivamente polêmico e impulsionado pela racionalidade, que, malgrado todo seu ceticismo, queria continuar a ser judeu.

Não é acaso que sua trajetória é com frequência (acertadamente ou não) associada à de Baruch Spinoza, cujo cherem (o banimento, a excomunhão) Schama analisa com certo detalhe, assim como expõe a filosofia do autor do Tractatus Theologicus-Politicus como a abertura para um novo possibilidade: 

Até Espinosa, não havia outro destino para um judeu pensante que desejasse se desligar das prescrições à risca da literatura religiosa ou de uma leitura literal da Bíblia. Agora, porém, o filósofo criara exatamente esse oásis de entendimento.

Ainda que não se tratasse do “judeu secular”, como Schama admite, é esse caminho que está sendo aberto. 

Se Uriel da Costa, que se suicida, e Baruch Spinoza, banido, aportam à narrativa da história judaica o estigma do pertencimento problemático internamente à própria comunidade — afinal, nem na acolhedora Amsterdam tudo se passava sem alguma turbulência —, Moses Mendelssohn, na Alemanha iluminista, representa o ambíguo ponto alto de uma ambição gestada pouco a pouco no contexto da modernidade europeia. É com esta destacada figura do pensamento esclarecido setecentista alemão, um igual de Kant, que o pluralismo ganha força e consolida-se como o único terreno em que podem edificar suas construções os judeus de todos os tempos futuros. Seus argumentos são, nas palavras de Schama, “assombrosamente relevantes em nosso mundo contemporâneo”: 

Deixemos que todos possam dizer o que pensam, que invoquem Deus à sua maneira, ou à maneira de seus pais, busquem a salvação onde acham que podem encontrá-la, desde que não perturbem a paz pública e se conduzam honestamente segundo a lei civil. Que não se permita a ninguém assumir ser um buscador de corações e juiz do pensamento. Que não se permita a ninguém assumir um direito que o Onisciente reservou apenas para si.

Pintura de Moritz Daniel Oppenheim, de 1856, imagina um encontro entre Moses Mendelssohn, Johann Kaspar Lavater e Gotthold Ephraim Lessing.

É difícil supor um leitor que não seja tocado pela força das palavras de Mendelssohn, que reconhecemos como expressão irretocável do pluralismo e como pilar da moderna virtude da tolerância. Contudo, como evitar a sensação de que pairam sobre o livro, mesmo nestas páginas tão luminosas, trevas tão densas que parecem se anunciar em retrospectiva a todo momento? Como não ler com ironia o entusiasmo do autor de Jerusalém ou Sobre o poder religioso na Berlim do fim do século XVIII, quando nós, leitores, ao menos, não podemos fingir que não sabemos o que estava por vir, com os horrores nazistas do século XX e a mais infame página da história humana, o Holocausto?

O próprio Mendelssohn tinha a resposta. Após um incidente em 1780 em que ele e a família foram violentamente agredidos em um passeio, atacados aos gritos de “Juden, Juden!” da turba, escreveu a um amigo:

[…] não sonhamos nada além do Iluminismo e acreditamos que a luz da razão iluminaria o mundo com tal brilho que os delírios e o fanatismo não seriam vistos. Mas como vemos agora, do outro lado do horizonte, a noite com seus demônios e seus fantasmas ainda está caindo. O mais assustador de tudo é que o mal esteja tão vivo e potente. Delírios e fanatismo agem, enquanto tudo que a razão faz é falar.

Se o Iluminismo, como sua promessa de pluralismo e tolerância, foi a melhor aposta contra a perseguição constante, o exílio interminável e o massacre indizível dos judeus — como foi, em tantos sentidos, a viva esperança da humanidade em tantas outras dimensões —, seu fracasso, tão alardeado nas últimas décadas, leva consigo os melhores sonhos da razão humana? Simplesmente não podemos mais dizer impunemente as palavras de Simon Schama ao encerrar seu livro, “tudo ficará bem”, a não ser que isto signifique desejo, comprometimento e entrega.

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Eduardo Wolf é professor de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB), coordenador do Programa de Pós-Graduação em Metafísica na mesma universidade e vice-diretor da Cátedra Unesco-Archai sobre as origens do Pensamento Ocidental. É fundador do Estado da Arte e diretor de seu conselho editorial.

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