por Rodrigo Coppe Caldeira
Muita tinta já correu para dizer que a democracia está em crise no início desse século. Ninguém previu isso. O contrário, sim. Francis Fukuyama afirmou que a história chegava ao fim com a vitória do liberalismo sobre o socialismo soviético. O filósofo nipo-americano foi amplamente criticado por isso. De fato, estava equivocado. No entanto, como aponta Sloterdijk em seu Ira e tempo, apesar dos vários pontos críticos de O fim da história e o último homem, ele tinha sacado algo importante: para entender a contemporaneidade é preciso observar as lutas por reconhecimento. Fukuyama desenvolve uma análise filosófica do tema. Pensa-o a partir da categoria platônica do thymos – o valor que o sujeito dá para si mesmo –, e todas as suas consequências sociais somadas à “revolução das expectativas ascendentes”, que a modernidade política e econômica levou a um novo patamar. A política de identidades, compreendida como uma “ampla gama de atividade política e teorização fundada nas experiências compartilhadas de injustiça de membros de certos grupos sociais”, como vaticina Cressida Heyes na Stanford Encyclopedia of Philosophy, consolidou-se como horizonte da luta política nos tempos correntes.
Mathieu Bock-Côté, em seu Le multiculturalisme comme religion politique, nos apresenta o que seria uma nova esquerda a partir da mutação da compreensão do progressismo. A questão principal giraria em torno de como encarar a débâcle do marxismo-leninismo sem sacrificar, porém, a esperança revolucionária. Se a experiência soviética e do socialismo no século XX tiveram um fim, isso não significaria de fato que a democracia liberal teria vencido a batalha. Seria em seu próprio seio que a luta deveria continuar, com novos agentes revolucionários que buscariam radicalizar as tensões sociais a partir de dentro e de novas horizontes emancipatórios. Segundo Bock-Côté, o caminho seria o de desconstruir a narrativa nacional para permitir a libertação das memórias minoritárias por ela subjugadas. No entanto, a esquerda contemporânea não é homogênea em seu juízo sobre o caminho tomado. Terry Eagleton, por exemplo, filósofo inglês identificado com o marxismo, concorda que as novas pautas identitárias, que giram em torno de questões como sexualidade e etnicidade, nada mais são do que um “substituto para formas mais clássicas de política radical, que trabalhava com classe, Estado, ideologia, revolução, modos materiais de reprodução”. Lamenta a ignorância que marca certos debates “em relação à estrutura de classes e às condições materiais”. Uma espécie de “amnésia pós-modernista”.
Outro filósofo marxista, o esloveno Slavoj Žižek, vai além e radicaliza a crítica a esses movimentos, perguntando em um de seus ensaios publicados na obra Alguém disse totalitarismo?: “os estudos culturais são realmente totalitários?”. Os estudos culturais aos quais faz referência são aquele campo de pesquisa que emergiu no seio das Humanidades depois dos eventos do maio de 68 francês e que teve reflexos em outros cantos do mundo. O centro catalisador foi a educação universitária norte-americana, que a partir da ideia de que os EUA não são uma nação de indivíduos, mas de grupos, possibilitou a emergência e consolidação de perspectivas analíticas que visam transformar as formas de pesquisa e o ensino das Humanidades. As transformações deveriam ir ao encontro dos interesses dos grupos minoritários, vitimizados ao longo da história pela lógica ocidental. Esses estudos caminham pari passu à militância de grupos que se movem a partir da questão identitária. Estão calcados, grosso modo, em perspectivas políticas e antropológicas que partem da ideia de que a falta de justiça tem sua base nos sistemas de poder e não na natureza humana (conceito que, obviamente, não utilizam), e que é preciso mudar o sistema para que se ultrapasse a injustiça, libertando os sujeitos das amarras tradicionais. Žižek não poupa palavras e afirma que “os autores ativos nesse domínio são amparados por um tipo de zelo missionário” e que a “regressão ao discurso profético autoritário é um dos perigos que ameaçam os estudos culturais”. Certamente que estes estudos e os movimentos identitários são variados e complexos. Querer designá-los sob um manto único não é adequado. Corre-se inclusive o risco de criar uma caricatura, o que frequentemente acontece entre aqueles que estão nas fronteiras das culture wars.
A questão levantada pelo esloveno é fundamental para os tempos correntes. Soma-se a ela aquela elaborada por Mark Lilla. O cientista político norte-americano, que se considera um democrata, afirma que essa nova política, fascinada pela identidade, não desafia o individualismo, mas o reforça. De um primeiro momento que buscava reparar erros históricos a partir de mobilizações que se utilizavam das próprias instituições políticas a fim de assegurar seus direitos, passou-se para uma “pseudopolítica de autoestima e de autodefinição cada vez mais estreita e excludente”, tendo como resultado jovens voltados para a “própria interioridade em vez de se abrirem ao mundo exterior. Isso os deixou despreparados para pensar no bem comum e no que deve ser feito, na prática, para assegurá-lo”.
O impulso missionário que geralmente atravessa certos grupos identitários parece mimetizar, talvez inadvertidamente, aqueles advindos de grupos que se movem e se afirmam no cenário político, utilizando-se do discurso religioso como recurso principal contra aqueles que entendem ser seus principais inimigos. Um parêntesis. É sabido que o paradigma de isolamento das religiões do debate público pereceu. Um dos problemas que, por exemplo, a Europa ocidental, particularmente a França, tem que enfrentar ultimamente é essa recusa das comunidades religiosas como atores políticos importantes no jogo democrático. Como lembra Habermas, em seu Entre naturalismo e religião, as tradições religiosas cumprem, além de outros, um importante papel social: nos lembram aquilo que deu errado. E isso é fundamental. A questão que atravessa o debate está ligada intimamente a um valor das democracias liberais: a possibilidade do confronto civilizado, no qual valem os argumentos, não a força e a altura do grito. O zelo missionário no campo da política, vindo de grupos religiosos, já acostumados com ele, ou de grupos seculares, que mimetizam sua retórica agressiva, gera quase sempre a violência. A linha que separa o idealista do fanático missionário é muito tênue. Ambos têm um apego atávico àquilo que creem, sem se sentirem compelidos a buscar o que pode haver de errado com suas próprias crenças e os métodos utilizados para as fazerem valer.
Um elemento importante que se agrega a essa situação mais ampla de fricção política-cultural, levando à sensação de que vivemos nos limites do esgarçamento social, é certamente a emergência das redes sociais como ferramenta de primeira grandeza da esfera pública. A web 2.0, que colocou a multidão de pessoas em contato umas com as outras, dando a elas voz e vez, inaugurou um novo momento na história política. A crença otimista de que seria canal que levaria a liberdade ocidental para todo o resto do mundo (“Primavera Árabe”) – mais uma faceta do milenarismo ocidental – logo foi substituída pela verdade nua e crua dos riscos que trouxe consigo. Com a evolução dos algoritmos, as redes sociais se tornaram caixas de ressonância de nossas próprias vozes e afetos, reduzindo consideravelmente as chances de sermos incomodados, de termos nossas crenças e visões de mundo colocadas em xeque. Criou-se safe spaces virtuais – versão ultrajante da recusa à divergência – que visam garantir nossa segurança ontológica frente àqueles que deveriam desaparecer da nossa frente. Uma câmara em que o outro não pode se aproximar, banido propriamente pelo fato de ser outro. Engendramos e alimentamos assim uma massa de tiranos em escala jamais vista, já que o tirano, como afirma Jean-Pierre Lebrun, “quer é que o outro não venha desarrumá-lo”.