Do paradoxo da tolerância ao paradoxo da democracia

Democracia, tolerância, nossos pactos civilizatórios de ontem e hoje. A História como presente, por Vinícius Müller.

por Vinícius Müller

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A recente lembrança do ‘paradoxo da tolerância’ de Karl Popper por públicos tão distintos acendeu um sinal ainda mais brilhante nos últimos acontecimentos que envolvem os poderes Legislativo e Judiciário brasileiros.

Em suma, o filósofo austríaco, autor do clássico A sociedade aberta e seus inimigos, identificou em sua obra mais conhecida a dificuldade em estabelecermos os limites à liberdade de expressão quando ela mesma é usada de modo contraditório. Ou seja, quando usamos a liberdade de expressão para criticar e mesmo ameaçar sua existência.  As palavras de Popper (“A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância”) se transformaram quase em um mantra, mesmo entre aqueles que passaram a vida cultivando um desprezo blasé ou mesmo desqualificando a obra do genial filósofo.

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Sir Karl Popper recebendo o título de doutor honoris causa da Charles University; Praga, 1994

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A pertinência da dúvida do liberal Popper deve-se não apenas ao seu próprio conteúdo, mas sim à intransigente defesa que o judeu austríaco — que se transferiu de sua cidade natal, Viena, em meio à ascensão nazista — fez durante toda a sua vida. Ou seja, só alguém como Popper, defensor rigoroso, metódico e apaixonado da liberdade de expressão e da sociedade democrática podia levantar uma dúvida, em sua melhor tradição de ‘falseabilidade’, sobre aquilo que mais defendia e que custava tanto à sua reputação.

Contudo, não obstante o oportunismo algo cínico daqueles que hoje não se envergonham em citar Popper depois de propositadamente desprezar sua obra por décadas, há um transbordamento de sua máxima sobre a tolerância que não só nos salta aos olhos no presente, mas também nos lança à reconstrução de nossas trajetórias passadas.

Tal transbordamento deve-se à possibilidade de entendermos o ‘paradoxo da tolerância’ a partir da sua adaptação ao ‘paradoxo da democracia’, aqui voluntariamente posicionadas — tolerância e democracia — no mesmo lugar relativo.  Ou seja, só é possível reivindicar o paradoxo de Popper quando assumimos que tolerância e democracia são análogas e que, portanto, quando a primeira está em crise, a segunda automaticamente estará.

Assim, a dúvida é se estaríamos vivendo um ‘paradoxo da democracia’. E, mesmo sendo a dúvida pertinente e passível de respostas diferentes, a História nos ajuda a identificar outros momentos nos quais a mesma dúvida se mostrou acertada.  Entre o militarismo autocrático de Floriano Peixoto e o personalismo autoritário de Vargas; entre a constituição de 1934 e atuação de comunistas e integralistas; entre a irresponsabilidade da esquerda e a truculência da direita nos anos 60. Em todas estas situações, a diluição da tolerância fez-se antessala da diluição da democracia.

Nos últimos anos, em duas dimensões diferentes, os limites que nos indicaram o campo da tolerância, e portanto da democracia, nos revelaram alguns parâmetros importantes. Em um recorte que nos remonta ao fim da ditadura militar e à instalação da Nova República foi a relação entre a Lei da Anistia de 1979 e o comando civil sobre os ministérios militares, em particular. E, no geral, a própria participação dos militares nos governos.  E, sobretudo, à narrativa que se construiu sobre esta relação. Ou seja, o modo como entendemos o que seria o nosso arranjo que viabilizou a redemocratização.  A partir da Constituição de 1988 e, principalmente, com as experiências políticas que enfrentamos, como dois processos de impeachment e gravíssimos problemas com corrupção, sobressaíram as questões relacionadas às disfuncionalidades da atual Carta e do sistema político.

O encontro entre estas duas dimensões ocorrido em 2013 produziu, ambivalentemente, o acirramento de certa conivência e até mesmo de apoio, por partes significativas da sociedade, ao centralismo autoritário que nos rememora a ditadura militar. Essas parcelas da população associam a redemocratização à corrupção — à revelia, portanto, do que seria um dos fundamentos do pacto pela redemocratização, ou seja, de que a democracia teria um papel não só pedagógico, mas também higienizador na República.  Assim, a possibilidade de entendermos o arranjo que viabilizou a redemocratização do país entre a leveza da Anistia (que, para muitos, não acertou a verdadeira conta com os crimes cometidos pela e durante a ditadura militar), e a narrativa que oscila entre a segurança democrática e a vingança do poder civil sobre os militares, parece não mais nos servir.  Tanto quanto a oposição entre uma ditadura militar corrupta e elitista (o que não deixa de ser, ao menos parcialmente verdade) e uma democracia virtuosa amparada na Constituição de 1988. Esta narrativa também não nos serve mais.

Por isso, a reconstrução desta história com outros parâmetros parece urgente. Só assim poderemos redefinir as relações entre os Poderes constituídos e, principalmente entre eles e as Forças Armadas. Caso contrário, as relações entre Exército e Poder Judiciário e entre o Legislativo, o mesmo Judiciário e o Executivo (composto por um número recorde de membros oriundos das forças Armadas) seguirão oscilando entre a possibilidade de virtuoso entendimento constitucional — e, portanto democrático — e o enfrentamento que nos leva aos paradoxos. Tanto da tolerância quanto da própria democracia. Os exemplos recentes nos revelam esta oscilação, respectivamente, pelas declarações do general Villas Bôas e pelo enquadramento de Bolsonaro pelo ‘centrão’, assim como pela resposta afinada entre o Congresso e o STF ao caso do deputado Daniel Silveira.

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A praça em meados dos anos 1960 (Arquivo Nacional)

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