por Alberto Aggio e Marcus Oliveira
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Este ensaio é uma parceria do Estado da Arte com o Horizontes Democráticos.
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O filosofo italiano Remo Bodei (1938-2019) lembrava que, dentre os primeiros utopistas, como Tomás Morus ou Tommaso Campanella, a utopia era mobilizada como pedra de toque para julgar o presente, com a ressalva de que era algo inatingível. No final do século XVIII, ainda segundo Bodei, mais precisamente em 1770, Louis-Sébastien Mercier escreveu um romance intitulado L’anno 2440, no qual desloca o tema da perfeição para o futuro, imaginando que partindo de um presente imperfeito os homens poderiam chegar a um futuro perfeito.
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Esse pensamento utopístico invadiu o discurso de todas as revoluções depois da Revolução Francesa de 1789. A ele se incorporaria a epopeia judaica na construção da utopia secular presente nos discursos dos revolucionários dos séculos XIX e XX: assim como Moisés vê a terra prometida de longe e morre antes de chegar ao deserto, os revolucionários sabiam que sua terra prometida dizia respeito às gerações futuras. Em suma, segundo Bodei, a utopia não é outra coisa senão uma aproximação progressiva a uma ideia de perfeição que pode nunca ser alcançada, mas que, de toda forma, deve continuar a ser perseguida quase como um “dever moral”.
Já o historiador alemão Reinhart Koselleck (1923-2006) buscou a experiência temporal característica da modernidade para construir a sua visão sobre a utopia. Para Koselleck, a modernidade é experimentada a partir de uma separação entre a experiência e a expectativa. Essa separação implica numa fratura entre o passado, considerado como elemento a ser superado, e o futuro, aquilo que se busca atingir como culminância do progresso ou da racionalidade. A revolução, nesses termos, figura como o momento ruptural responsável por produzir essa superação radical do passado, anunciando a construção do futuro imaginado e desejado.
Desde a conquista e a colonização, as ideias utópicas se entranharam na autoconsciência da América, particularmente na América Latina. A invenção da América, como demonstrou Edmundo O’Gorman (1905-1996), é acompanhada de uma libertação dos potenciais imaginativos europeus. Impulsionadas pela certeza da novidade inesperada, as nações europeias se lançaram ao Novo Mundo munidas de um imaginário fecundado pelas possibilidades do maravilhoso.
Todavia, essa dimensão imaginativa convive com os aspectos trágicos da história do Novo Mundo. Além dos inúmeros genocídios, a construção dos Estados latino-americanos carregou consigo, três séculos depois, as terríveis heranças coloniais. Nesse sentido, a criação da modernidade na América Latina apresenta feições diversas dos modelos clássicos europeus. As grandes transformações históricas ocorreram, em geral, em hipoteca com o passado.
Essa configuração moderna implica experiências temporais diversas. O presente, ao carregar os fardos do passado é, concomitantemente, a desilusão melancólica daquilo que poderia ter sido e a esperança que orienta a construção daquilo que deveria ser. Portanto, essa complexa trama de temporalidades, ao contrário de cancelar, impulsionou o desenvolvimento das utopias na América Latina. Compreendida como o espaço por excelência do vir a ser, buscou-se, por diversos caminhos, a construção do maravilhoso.
Durante o século XX, a Revolução Cubana de 1959 configurou-se no momento mais expressivo e simbólico desse pensamento utópico. Embrenhados nas matas da Sierra Maestra, os guerrilheiros cubanos acentuaram a persecução do caminho utópico da Nossa América, conferindo tons revolucionários ao pensamento de José Martí. Em seguida, disputando a orientação das esquerdas latino-americanas com a URSS, o modelo cubano produziu inúmeras cisões e estimulou o surgimento de grupos guerrilheiros pelo continente. Com isso, a gesta revolucionária cubana fincou raízes no pensamento e na historiografia do continente.
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Ao se reforçar a utopia da revolução, os obstáculos para a elaboração de um reformismo democrático por parte das esquerdas se intensificaram. No Chile de Allende (1970-1973), o anúncio da possibilidade de construção do socialismo por uma via pacífica, democrática e institucional, conviveu com ambiguidades revolucionárias que contribuíram para minar as bases de legitimidade política de Allende. Evidentemente, não se trata de imputar culpa à Unidade Popular pelo autoritarismo de Pinochet, mas de marcar a incapacidade de constituição de uma determinada hegemonia no Chile.
Em virtude dos traumas e exílios gerados pelos autoritarismos, a democracia passou a assumir a centralidade da reflexão política sobre o continente, em detrimento da revolução. Contudo, essa aproximação em relação à democracia não cancelou os horizontes utópicos para a América Latina, de modo que as derrotas e os pesos do passado continuam impulsionando imagens utópicas presentes, por exemplo, no bolivarianismo de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, bem como em inúmeras correntes político-ideológicas da esquerda latino-americana.
Num cenário mundial no qual se superou, de há muito, a lógica política dos “assaltantes do céu” e, objetivamente, a revolução deixou de ser o fiat do desenvolvimento histórico, como afirmou Luiz Werneck Vianna no já longínquo ano de 1996, como ainda colocar a utopia como referência maior do pensamento crítico latino-americano? Como pensar o futuro na América Latina para além das utopias? Em seus desdobramentos, essas expectativas utópicas, ao invés de auxiliar, criam obstáculos para a vivência ativa e produtiva do tempo da política e da democracia. O desejo revolucionário de um futuro redentor, paradoxalmente, comprime ou mesmo oprime a própria modernidade que lhe deu ensejo. Em razão disso, o regime político característico da modernidade, fundado na indeterminação dos espaços de poder, estaria de antemão preenchido, impedindo a expressão democrática dos sujeitos em busca de necessários consensos progressivos. Na América Latina, de forma geral, utopia e revolução foram acionados comumente como antagônicos à modernidade e à democracia.
O questionamento às utopias não significa adesão ao presentismo ou mesmo a uma determinada visão liberal que advoga o fim da história. Ao contrário, trata-se de pensar o futuro a partir da chave no qual a política democrática seja o caminho para a definição daquilo que se quer transformar ou conservar na sociedade.
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