por Vinícius Müller
Há quem pense que ela sempre se repita em ciclos. Outros, como farsa ou tragédia. No meio do caminho, rupturas. E assim, para outros tantos, em direção ao progresso. O cardápio é variado, o que, às vezes, torna a escolha um tanto confusa e sofrida. Contudo, a História não se deixa domesticar tão facilmente. Ela acontece independentemente de nossas maneiras de entendê-la, de nossos desejos e escolhas. E, muitas vezes, em ritmos e tempos que nos surpreendem. A surpresa pode ser o incômodo para novos entendimentos, revisões e ajustes com o passado. Nos últimos dias, por duas vezes, a História nos tomou algum tempo de reflexão. A efeméride dos 130 anos da Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888, e a descoberta, pelo professor Matias Spektor, de documentos referentes ao governo do general Ernesto Geisel, revelaram o poder que a História tem de nos incomodar.
No primeiro caso, (re) descobrimos que, após 130 anos, ainda não demos conta de responder aos desafios criados pela Lei assinada pela Princesa que redimiu um povo, mas perdeu o trono. Desafios que menos se relacionam com o debate entre o arranjo e a ruptura e mais com a continuidade e transmissão. Ou seja, menos importante é saber se teria sido melhor abolir a escravidão no Brasil por uma Guerra, como fizeram os norte-americanos, ou sob o longo acordo que fizemos sob a feição de D. Pedro II. Importa muito mais saber como os valores envolvidos e representados pela escravidão se transferiram para outros aspectos, garantindo sua sobrevivência e o nosso atraso. A desigualdade, por exemplo, mesmo representada agressivamente pela escravidão não acabou com a Lei Áurea. Ela se traveste e se encaixa, quase como uma free rider, em nosso comportamento diário e em nossas instituições. A escravidão não é a desigualdade, é sua representação. Acabar coma escravidão, portanto, não é acabar com a desigualdade.
O mesmo vale para o segundo caso. As revelações de que Geisel sabia mais do que supúnhamos sobre ‘os porões da ditadura’ e que muitas vezes deu anuência à ação criminosa de agentes do Estado contra indivíduos brasileiros, nos mostram que a troca da liderança militar – saiu a ‘linha dura’ de Médici, entrou a transição de Geisel – não se fez em prejuízo da institucionalização da violência, mas ao seu sabor. O que dava a Geisel a marca da ‘abertura’ não era sua vontade e capacidade de estancar a violência, e sim sua competência em controlar e transferi-la dos ‘porões’ ao seu gabinete. E essa transferência toma tempo, porque assim como a desigualdade, a violência também pode ser entendida como um jogo em que alguns ganham e outros perdem. Por isso, aqueles que ganhavam resistiam. Aqueles que perdiam se apressavam. Foi entre os dois que o tempo da História ocorreu. E Geisel deixou claro desde o começo que, para ele, esse tempo seria ‘lento e gradual’.
O que torna essas duas passagens mais interessantes é que, um dia, elas já estiveram juntas. Escravidão e Exército ou desigualdade e violência são elementos centrais à formação do Brasil ao longo do século XIX. E a ponderação entre elas permanece como uma das continuidades mais resistentes de nossa História. Entre 1865 e 1870, o Império viu-se obrigado a ampliar sua política de recrutamento militar. Estávamos em meio ao conflito por nós brasileiros chamado de Guerra do Paraguai e o Exército carecia de estrutura, inclusive de oficiais, para enfrentar o não tão poderoso vizinho. A ampliação do recrutamento incluiu ex-escravos, liberados do cativeiro diretamente para a Guerra sob a negociação entre o Império e os proprietários de gente. Com o fim da Guerra, tal política encerrou-se, desagradando o Exército e o afastando parcialmente do Império.
Desta briga institucional emergiu uma das mais relevantes questões sobre a formação do Estado brasileiro e, a rigor, de qualquer Estado. Ao defender a manutenção de uma política de liberdade de escravos que se transformariam em oficiais militares, o Exército indiretamente se aproximou dos abolicionistas. E essa aproximação fez do Exército um dos defensores daquela que seria a pauta modernizadora do país. O término da escravidão não era apenas a modernização econômica voltada à entrada do país no capitalismo contemporâneo. Era também a modernização moral e civilizatória, amparada na ideia de que a escravidão embrutecia escravos e senhores e tornava impossível a civilização. Mas, além disso, e para os militares, o fim da escravidão representava a superação do hiato que existia entre a ordem privada que permitia o uso da violência em âmbito doméstico e a modernização institucional do Estado Brasileiro que, em tese, teria o monopólio da violência.
Assim, terminar com a escravidão, a mais eloquente manifestação da desigualdade que nos funda, era não só o passo fundamental para o desenvolvimento econômico e para a construção de uma sociedade minimamente civilizada, mas também condição para a modernização e, quiçá, para a própria construção do Estado Nacional. E para isso, era essencial transformar o uso da violência em algo público, não privado. Dessa forma, atacar a desigualdade e garantir a modernização econômica e moral dependia da centralização do poder sobre a violência em mãos do Estado e de seu braço armado, o Exército.
Contudo, estes elementos se recombinam ao longo da trajetória histórica de modo a confundir os incautos. Se a modernização é a tentativa de diminuir a desigualdade cujo antepassado é a escravidão, ela pode ser também a superação da violência em âmbito privado. Se a civilização depende disso, é porque ela dependia no passado da superação da escravidão em favor do avanço capitalista. E ambas estiveram, em nossa história, ligadas à ação do Estado e de seu braço armado, o Exército.
Portanto, ao centralizar a decisão sobre o uso da violência durante seu governo, Geisel estava, mesmo que não soubesse, lidando com questões cuja temporalidade é muito maior do que ele e do que a lamentável experiência da qual fez parte. Enfrentava uma situação de recombinação dos elementos que nos forjaram como nação e que permanecem presentes mesmo à nossa revelia. O Estado e sua função última, o uso da força, podem servir a variados fins: à modernização econômica, à definição do que é moral e civilizado e à garantia de que a violência é assunto público, não privado. Depois de mais de um século que as três questões estiveram juntas, talvez seja tempo de definirmos se elas ainda fazem sentido em conjunto. Desde então, todas as vezes que o Exército – e seu chefe maior, o Estado – se voltou à modernização econômica ou à definição do que é moralmente certo, os resultados não se sustentaram.
A História, que pode ser cíclica, evolutiva, irônica, farsesca ou trágica, também pode ser a recombinação de elementos permanentes com as mudanças circunstanciais. Deixemos, então, que ela reconfigure os elementos de nossa trajetória e que, assim, a economia seja do mercado e que a civilização seja da sociedade civil. Ao fim, estaremos garantindo que o Estado e seu monopólio sobre a violência se volte à promoção e zeladoria da igualdade jurídica. Ou seja, à eterna vigilância de que a igualdade se funda na garantia de uma ordem cuja definição do justo e de sua sustentação a partir do uso da violência seja sempre pública e nunca privada.