por Vinícius Müller
Sistemas complexos assim se estruturam porque têm inúmeros elementos que formam a sua essência ou que sustentam seu funcionamento. Em outras palavras, um sistema, entendido como um conjunto de valores e instituições que concomitantemente norteiam e limitam nosso comportamento, é progressivamente complexo quando encontra um balanço entre vários de seus itens constitutivos. Todos eles, centrais ao seu funcionamento. Desta forma, há um equilíbrio entre o modo como produzimos e distribuímos riqueza, o conjunto de leis, os valores éticos, a religiosidade, os códigos de conduta interpessoal, as relações familiares, entre outros. Se um deles entra em colapso, ou deixa de contemplar parte significativa das pessoas, outros tendem a ganhar destaque. De modo que a sociedade consiga criar mecanismos para que aqueles que se afastaram do seu centro, os marginais, possam o mais rápido possível, voltar a uma posição mais próxima do núcleo daquele sistema. Ou para que aqueles que nunca foram contemplados em quantidade e qualidade razoáveis por determinados itens constitutivos da sociedade, passem a sê-lo.
Assim, se o elemento econômico falha ao não contemplar parte significativa da população, outros, como os políticos, religiosos e éticos assumem maior relevância até que os mecanismos daquela sociedade para (re)incluir ou (re)aproximar aqueles que foram para a margem do sistema funcionem. Se, por exemplo, o elemento econômico central for o consumo, em uma situação de queda acentuada de poder e autonomia de consumo pela população, elementos políticos, como seguridade social, e éticos, como solidariedade familiar, entram no jogo até que o poder de consumo volte a contemplar os ‘marginais’, lançando-os em direção ao centro.
É claro que tal equilíbrio depende da qualidade dos elementos. Uma longa queda do poder de consumo, tanto no tempo quanto na quantidade de pessoas afetadas, pode provocar uma crise e um questionamento tão eloquente em relação às próprias bases do sistema, que os outros elementos não conseguem suportar tamanha pressão. Neste caso, o sistema pode cair. Também é claro que este movimento de contração e expansão do sistema depende da agilidade que seus elementos constitutivos centrais têm para se recuperar em momentos de crise aguda. A fluidez de uma sociedade baseada no consumo é, presumivelmente, maior do que outra amparada no acesso dos indivíduos à terra.
Os dois processos – o equilíbrio entre os elementos centrais do sistema e a velocidade que cada um deles tem em se recuperar e/ou expandir – combinados, acabam por virar o termômetro que indica o quanto este sistema está preparado para sobreviver em momentos de crise aguda e o quanto está em risco de cair. Pensemos por exemplo, no sistema internacional do pós-guerra e, portanto, da segunda metade do século XX. Criado a partir da ideia de que um equilíbrio entre as nações era o único caminho para que não voltássemos à situação beligerante que marcara a primeira metade do século XX, tal sistema era constantemente desafiado pela sub-ordem que ele mesmo tentava domesticar, ou seja a Guerra Fria. Assim, os elementos centrais, como a busca pelo consenso, a autonomia e o equilíbrio entre as diversas nações, eram constantemente ameaçados pelas disputas que envolviam o conflito entre EUA e a ex-URSS. Era como se o idealismo da ordem internacional fosse limitado pelo realismo característico da Guerra Fria. Quanto maior fosse o apelo para que os países se posicionassem a partir do recorte da Guerra Fria, mais ameaçados ficavam os elementos centrais do sistema internacional representado pelos organismos como a ONU. Assim, cabia ao sistema internacional não só preservar, mas também dar agilidade para que seus elementos centrais não ficassem cada vez mais estranhos aos países. A tentação de se afastar dos princípios universalistas do sistema e se engajar em um dos lados ideológicos da Guerra Fria era imensa.
Foi neste contexto que surgiu nos EUA uma geração de intelectuais que seria parcialmente responsável pela permanência do país nesta ambígua trajetória do pós-guerra. Curiosamente, uma geração que internamente também vivenciou situação parecida em ao menos três elementos centrais da sociedade norte-americana.
Entre os anos de 1950 e 70 alguns intelectuais de origem europeia se destacaram nos EUA em meio às definições iniciais e os desdobramentos da Guerra Fria. Os nomes mais destacados entre eles foram o judeu alemão Henry Kissinger, o filho de russos Walt Withman Rostow e o polonês de nome quase impronunciável Zbigniew Brzezinski. Este último é o biografado no excelente livro de Justin Väisse (Zbigniew Brzezinski. The American Grand Strategist. Harvard University Press, 2018), recém publicado e sem tradução no Brasil. Brzezinski, ou Zbig como o chamavam numa tentativa de facilitar a sua identificação, foi, em sua longa carreira intelectual e como homem público, professor de Harvard, por onde obteve seu título de PHD em Ciência Política. Como intelectual, professor e pesquisador, escreveu inúmeros artigos acadêmicos e ao menos dez livros que formam sua principal contribuição nesta área. Nenhum deles traduzido no Brasil. Foi também fundador, em 1973, junto com o ex-presidente dos EUA Jimmy Carter e o banqueiro David Rockefeller, da Comissão Trilateral, organização voltada à construção de padrões de colaboração entre EUA, Japão e Europa Ocidental em meios às turbulências que marcavam o período. Além disso, foi conselheiro em política externa da presidência de Lyndon Johnson (1963-1969) e o mais próximo formulador da política externa do governo de Jimmy Carter entre 1977 e 1981, período que exerceu o cargo de Conselheiro de Segurança Nacional.
O que aproxima Zbig de seus pares mais conhecidos, Kissinger e Rostow, é o fato de serem todos estrangeiros (Rostow era nascido nos EUA, mas filho de russos que fugiram em meio à perseguição que sofriam por sua ascendência judaica) em um país e, principalmente, uma área de atuação ainda reservada às famílias tradicionais norte-americanas e ao establishment. Neste caso, ao contrário de Kissinger, que trocou seu nome de Heinz para o mais palatável aos ouvidos norte-americanos Henry, Zbig se recusou a trocar seu nome e manteve seu indisfarçável sotaque até o fim da vida sem nenhuma questão de escondê-lo. Esta insistência em transparecer sua origem polonesa nos EUA foi motivo de muita desconfiança entre membros da imprensa – com a qual manteve forte interlocução – e mesmo do serviço público. Este “entrangeirismo” do democrata Zbig talvez explique, ao menos em parte, sua relativa dificuldade em lidar com parcelas da sociedade norte-americana e, por isso, seu maior ostracismo não só nos EUA, se comparado ao republicano Kissinger, mas também entre nós brasileiros. De qualquer modo, ele de maneira mais aguda que os outros dois, representou um alargamento e uma readaptação de um modelo que até então impedia, ou dificultava muito, a entrada de membros de famílias não tradicionais nas áreas relacionadas às definições da política externa do país. Sua ascensão revela traços importantes do contexto. A ambiguidade entre, de um lado, uma ordem pretensamente universal – em parte herdeira de uma tendência mais idealista que vinha do democrata Woodrow Wilson, mas também pressionada pelos estragos feitos pela Segunda Grande Guerra – e de outro, a cunha imposta pela Guerra Fria, tornou caduca a divisão tradicional da política externa do país. Ou seja, a adoção de uma política amparada na visão dos republicanos, mais realista, servia à Guerra Fria mais do que à ordem universalista. Enquanto, por outro lado, a política externa amparada na visão dos democratas, mais idealista, servia preferencialmente à ordem universalista e não à Guerra Fria. A adoção de uma ‘empurrava’ a outra para a margem. Os ‘marginais’, de que lado estivessem, tinham razoáveis motivos para pressionar o modelo adotado, colocando em risco a própria sobrevivência do sistema. Por isso, era importante encontrar, tanto nas propostas tradicionais dos republicanos, quanto nas dos democratas, elementos que pudessem redefinir a política externa do país de modo a adaptá-la à duplicidade que o contexto apresentava e que a tradicional formulação de política externa norte-americana pouco estava acostumada e preparada para enfrentar. Assim, a ascensão de novos atores, estrangeiros, no debate sobre os rumos e desafios da política externa norte-americana foi ao mesmo tempo fruto do contexto, do esgotamento das perspectivas anteriores e da reinvenção de um modelo que vinha sendo pressionado e corria riscos de explodir.
O segundo item é a intersecção entre a perspectiva pessoal ou a vivência dos formuladores da política externa e suas propostas de atuação. No caso de Brzezinski, sua origem polonesa e sua história familiar, marcadas pela resistência ao avanço do poder soviético e do socialismo, moldaram de modo complementar sua conhecida repulsa ao socialismo e, portanto, sua posição radical no contexto da Guerra Fria. Ao mesmo tempo, sua condição pessoal e sua carreira acadêmica e intelectual fizeram com que, não só se aprofundasse em seus estudos sobre a União Soviética, mas também entendesse que a única solução para impedir seu avanço era a defesa do universalismo. Esta perspectiva, tomada pela amálgama entre sua vida pessoal e familiar e pelos seus estudos acadêmicos, possibilitava a Zbig que entendesse tanto as contradições que imperavam na formulação das linhas de atuação da política externa norte-americana como também as contradições que existiam na própria estruturação e expansão da URSS. Foi precisamente esta combinação que deu a ele a possibilidade de apostar que a “velha” abordagem da política externa norte-americana, presa aos membros de famílias tradicionais e representantes do establishment, só seria renovada se incluísse entre seus formuladores “estrangeiros” que entendessem também, tanto intelectual quanto pessoalmente, as contradições e fragilidade da URSS. Este era o preço que deveria ser pago pela sociedade norte-americana pela duplicidade que ela mesma não sabia lidar; ou seja, a manutenção e expansão da ordem universalista em meio a um conflito com a URSS e com o socialismo.
O terceiro item é resultado dos dois anteriores. O novo contexto promoveu uma revisão da política externa de modo a possibilitar que novos atores passassem a não só refletir sobre a política externa do país, mas, sobretudo, a participar de sua execução. O três, Rostow, Kissinger e Brzezinski, saíram de suas consagradas posições acadêmicas para assumir cargos políticos que lhes deram ativa participação nas decisões e implantações de política externa. No caso de Zbig, sua atuação ficou lembrada pela proximidade que mantinha com o presidente Carter. Este, inclusive, declarava ser um atento ouvinte e aprendiz de Zbig, entre outras confissões sobre como eram íntimos no cotidiano e interior da Casa Branca. Em linhas gerais, Brzezinski entendia que a dualidade, que enxergava no contexto dos anos 70, entre a posição favorável à certa diminuição dos conflitos com a URSS e o avanço da potência socialista, pressionava os EUA a reavaliarem a tendência de apaziguar suas relações com Moscou. Neste sentido, o antagonismo eventual entre Zbig e o Secretário de Estado, Cyrus Vance, estressava a própria dificuldade do governo Carter em apresentar uma solução aos desafios da segunda metade dos anos 70.
Após a crise vivida pelo país entre o fim dos anos 60 e meados da década seguinte, a própria opinião pública norte-americana, assim como boa parte do establishment político, entendia que chegara a hora de reagir ao que avaliavam ser um avanço e, em certa medida, “traição” soviética. Isso porque, após a fracassada posição no Vietnã, a ascensão da contracultura, a crise econômica, política e moral de Nixon e a crise do petróleo, os EUA estiveram tão enfraquecidos que a saída então formulada foi voltada à aceitação de certo equilíbrio com a potência adversária. Contudo, alguns entendiam, entre eles Zbig, que esta posição de equilíbrio vinha sendo aproveitada pelos soviéticos. A descoberta tardia da presença, acima do que era conhecido, de soviéticos em Cuba e o apoio destes ao movimento nacionalista de libertação de Angola, assim como a invasão soviética no Afeganistão e a Revolução Islâmica no Irã, confirmavam para muitos que era o tempo de reação norte-americana ao avanço soviético. Isso em meio às tentativas de acerto dos acordos de limitação do arsenal bélico (o primeiro e o segundo SALT – Strategic Arms Limitation Talks – de 1973 e 1979, respectivamente). Esta posição mais agressiva, defendida e divulgada pelo mais midiático Brzezinski, entrava em choque com aquela, mais próxima de certa tradição democrata, defendida por Vance.
Esta dualidade representada pelos dois mais importantes formuladores da política externa norte-americana durante o governo de Carter foi uma das fraquezas que ajudaram a derrotar o democrata em sua tentativa de reeleição. A vitória do republicano Ronald Reagan à presidência em 1980 e, principalmente, a adoção pelos republicanos de propostas elaboradas por Zbig, comprovaram que, mais do que qualquer coisa, o imigrante polonês foi um dos responsáveis pelo surgimento de novas maneiras de entender e praticar a política externa norte-americana. Para além das anteriores divisões entre Idealismo e Realismo, Universalismo e Nacionalismo, ou entre soft e hard power. Zbigniew Brzezinski, ao combinar e não excluir mutuamente, a categorização de ‘tipos’ de politica externa com o apurado olhar sobre o movimento da História, ajudou na criação de um novo modo de entender a política externa que, fundamentalmente, era voltada para a preservação dos valores de seu país por adoção. Em termos mais gerais, entendeu que o modelo anterior, amparado na hermética e centralizada elite tradicional norte-americana e executado pelo establishment, não mais respondia aos desafios que a História lhes impunha. Não porque visava destruir os valores que aquela elite da qual não fazia parte defendia e/ou representava, mas exatamente porque percebia que tais valores – que possibilitaram que sua família pudesse se instalar e prosperar na América – não seriam preservados se não houvesse uma nova combinação na política externa.
A ironia é que este modo sofisticado de entender o sistema, seus pilares e as ameaças que porventura sofre, parece ter sido sepultado com Zbig na ocasião de seu falecimento em 2017. O mesmo conselheiro que, no fim da vida, indicou ao democrata Barack Obama que certa hesitação que enxergava na atuação do presidente poderia lhe custar o avanço dos republicanos, saberia o que dizer em meio à ascensão de novos posicionamentos relativos à política externa de seus dois países, Polônia e EUA. Ambos representados por governos e lideranças que nem de longe capturam a sofisticação do pensamento de Brzezinski. A quase banal associação que fazem, Andrzej Duda e Donald Trump, entre a sustentação de seus valores e interesses e a adoção de uma política externa mais nacionalista – e menos universalista – coloca em xeque a ordem pensada por Zbig e, em boa parte, responsável pela vitória dos EUA na Guerra Fria.
A leitura e o entendimento do sofisticado pensamento do “estrangeiro, acadêmico e outsider” Brzezinski, assim como a compreensão de sua atuação na elaboração e execução da política externa norte-americana, pode nos dar parâmetros para entender a complexa situação que hoje envolve a tentativa de sobrevivência da União Europeia, o reposicionamento dos EUA e a ascensão da China. E, no limite, do próprio mundo como o conhecemos desde 1989.