No primeiro dia de governo, Collor já lançou o seu plano econômico — o Plano Brasil Novo, que viria a ser conhecido como Plano Collor. Anunciado em rede nacional pela ministra da fazenda Zélia Cardoso de Melo, estabelecia a retenção de depósitos bancários, limitando os saques de conta corrente a 50 mil cruzeiros e os das aplicações financeiras a 25 mil cruzeiros. Todo o saldo restante prometeu-se reter por 18 meses, quando seria devolvido em 12 vezes, corrigido. Além disso, igualmente foi anunciada uma nova transição monetária, do Cruzado Novo para o Cruzeiro.
Do ponto de vista da gestão pública, o plano era menos bizarro. Havia um Programa Nacional da Desestatização, prevendo variadas privatizações (24 ao todo), uma ampla reforma administrativa, reduzindo ministérios e cargos, e passando um pente fino em funcionários fantasmas; uma atualização da alíquota do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) e IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), corte de subsídios e um forte incentivo às importações através da diminuição das alíquotas de importação. Nestes pontos, era majoritariamente um plano neoliberal, fazendo vigorar as prerrogativas do Consenso de Washington (estas medidas eram realizadas à época também em países vizinhos, como a Argentina, sob o mandato do presidente Carlos Menem, e o Peru, de Alberto Fujimori).
A inflação, que atingira a surreal cifra de 81,3% a.m., caiu para 11% no mês seguinte. A retenção dos depósitos bancários atingiu especialmente a classe média, e o consumo se tornou impossível.
O setor produtivo sofreu muito, pois não tinha capacidade de competir com a enxurrada de produtos importados que invadiu o mercado nacional. O setor exportador também perdeu competitividade em virtude da alta taxa cambial, estando o Cruzeiro valorizado frente o dólar. A entrada de tecnologia internacional promoveu uma massiva transformação no setor produtivo e bancário, levando a desemprego e liberação de mão-de-obra, que agora não encontrava recolocação. O país começou a entrar em uma recessão e o PIB caiu 4%.
O setor financeiro operou pelo menos um mês inteiro oscilando entre a paralisia e a insegurança. A incerteza sobre os contratos e sobre os mecanismos de operação (além da miríade de discussões e vai-e-vens da legislação) simplesmente colocou o setor inteiro sob desconfiança. No fim do ano de 1990, o governo se viu forçado a apontar juros nominais elevados na venda de títulos para obter algum êxito sobre o mercado. Porém, na esteira disso, a inflação seguia avançando: foi progressiva no segundo semestre, chegando a atingir a casa das duas dezenas em novembro.
A reforma administrativa foi grande: as privatizações deram ao governo 5,3 bilhões de dólares; milhares de cargos foram extintos e funcionários que não estavam sob o regime de estabilidade, demitidos. Entre as autarquias extintas, podemos citar o Banco Nacional de Crédito Cooperativo, o Instituto Brasileiro do Café, a Embrafilme e outros órgãos da cultura — até mesmo o Ministério da Cultura foi extinto pelo governo.
No início do ano seguinte, em janeiro de 1991, um novo plano econômico foi apresentado: o Plano Collor II. Era quase um pedido de trégua: congelava-se novamente preços e câmbio e ainda se prometia uma rodada de investimentos estatais (contrariamente ao plano anterior). O mercado começou a desacreditar da ação do ministério de Zélia Cardoso de Melo, e o fracasso do plano levou à demissão da ministra, a que se seguiu a nomeação de Marcílio Marques Moreira. O plano de Marcílio foi menos abrupto, como costumavam ser os planos econômicos recentes e envolvia alta taxas de juros, política fiscal rígida, um empréstimo do FMI de 2 bilhões de dólares e liberação de preços. Nada marcante ou exitoso. Durante seu ministério, a inflação esteve constantemente na casa de +20%.
Para além do fracasso escandaloso do plano de estabilização econômica, deve-se considerar que o governo Collor, talvez pelo estilo enérgico do presidente, empreendeu algumas mudanças abruptas que vale a pena pontuarmos, dadas sua relevância e sua perenidade.
Uma das medidas relevantes ocorridas durante o governo Collor foi a Lei 8.078/1990, que criou, segundo já previsto pela Constituição Federal de 1988, o Código de Defesa do Consumidor. O Código segue até hoje como referência na defesa dos interesses e direitos do consumidor, sendo constantemente atualizado de acordo com as inovações do mercado. Também a Lei de Improbidade Administrativa, alterada já algumas vezes, mas que seria fundamental para especificar as sanções possivelmente impostas a funcionários que agem em desacordo com as leis na administração pública. Foi fundamental também o fim da Lei da Informática de 1984 — uma lei protecionista ligada ao setor de tecnologia da informação de modo a estimular a criação de um setor inteiramente brasileiro. Sofreu as mais diversas retaliações por parte especialmente dos Estados Unidos, mas também de outros países. No governo Collor, a lei já estava caduca e tampouco se coadunava com a política do presidente, de modo que não foi renovada e todas as suas ações foram extintas. Outras três ações durante o governo Collor foram de vulto e seguem fundamentais para o país: a Lei Rouanet, a Lei do SUS e o ECA.
Ainda teremos um capítulo especial sobre Saúde na Nova República, mas devemos destacar a importância do assunto já neste momento. A Constituição Brasileira trazia algo praticamente único na história do mundo. No título VIII, sobre a Ordem Social, na seção II, artigo 196, lemos:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação
É algo absolutamente singular. A saúde não é algo correlato ao estado, é um dever. E a Constituição segue apresentando quais as atribuições de um sistema de saúde oferecido pelo estado brasileiro. E foi no governo Collor, em 1990, que a Lei do SUS regulamentou o modo de funcionamento e organização do Sistema, baseado nos princípios de universalização, equidade e integralidade.
CAPÍTULO II
Dos Princípios e Diretrizes
Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:
I – universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
II – integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema;
III – preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral;
IV – igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;
V – direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde;
VI – divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário;
VII – utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática;
VIII – participação da comunidade;
IX – descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo:
a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios;
b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde;
X – integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico;
XI – conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência à saúde da população;
XII – capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência; e
XIII – organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins idênticos.
XIV – organização de atendimento público específico e especializado para mulheres e vítimas de violência doméstica em geral, que garanta, entre outros, atendimento, acompanhamento psicológico e cirurgias plásticas reparadoras, em conformidade com a Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013. (Redação dada pela Lei nº 13.427, de 2017)
XV – proteção integral dos direitos humanos de todos os usuários e especial atenção à identificação de maus-tratos, de negligência e de violência sexual praticados contra crianças e adolescentes. (Incluído pela Lei nº 14.679, de 2023)
Parágrafo único. Para os efeitos do inciso XIV do caput deste artigo, as mulheres vítimas de qualquer tipo de violência têm o direito de serem acolhidas e atendidas nos serviços de saúde prestados no âmbito do SUS, na rede própria ou conveniada, em local e ambiente que garantam sua privacidade e restrição do acesso de terceiros não autorizados pela paciente, em especial o do agressor. (Incluído pela Lei nº 14.847, de 2024)
Em outra medida inovadora, o Brasil viu a elaboração de um estatuto especial para crianças e adolescentes, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que também vinha cumprir exigências da Constituição Federal, neste caso, do que constava no artigo 227:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Importante frisar que o ECA não foi um ato do governo, mas algo que ocorreu durante o governo, pois foi uma construção coletiva de vários órgãos ligados a essa pauta. Seu ponto fundamental foi estabelecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos plenos, sob os quais paira prioridade absoluta dada a sua condição peculiar de desenvolvimento. O ECA permitiu uma série de outras instituições e legislações para proteção da infância e da adolescência em vigor até hoje.
Por fim, um assunto que trouxe à tona nos últimos anos uma polêmica quase incompreensível: a Lei Rouanet. A origem da lei remonta ao então secretário da Cultura, o intelectual Sérgio Paulo Rouanet. Oficialmente intitulava-se Lei Federal de Incentivo à Cultura, sendo sancionada em 1991 pelo presidente Collor, com um funcionamento bastante simples: a lei estabelece o Pronac (Programa Nacional de Apoio à Cultura), composto por incentivo a projetos culturais e dois fundos, o FNC e o Ficart. O funcionamento da lei, como diz o nome, é através de incentivos fiscais, nos quais projetos culturais e artísticos, aprovados pelos critérios da lei, podem captar recursos junto a pessoas físicas e jurídicas privadas (tributadas por lucro real) em até 6% ou 4%, respectivamente, do Imposto de Renda devido. É algo trivial, mas que, por motivos que estudaremos no artigo sobre a década mais recente da Nova República, tornou-se objeto de uma grande polêmica.
Retornando ao andamento do governo, um ponto fundamental da administração Collor foi a sua relação com o Legislativo. O partido do presidente era uma organização de ocasião, não representava uma força no Congresso. A solução para tal problema seria organizar uma adesão de partidos majoritários para o governo de algum modo. Este modo tradicionalmente no Brasil seria a distribuição de cargos e pastas ministeriais para os partidos próximos. Collor, no entanto, recusou-se a fazer isso. Governou de um modo que foi chamado pelo cientista político Bolívar Lamounier de presidencialismo plebiscitário e que consistia em angariar a cada votação a maioria necessária baseada em cada problema surgido. Era desgastante, instável e arriscado. Esse apoio inconstante e errático do legislativo cobraria seu preço do presidente. Um presidente conhecido ainda por pouca habilidade diante das pressões do Congresso.
No próximo texto, exploraremos o turbulento desfecho da atuação de Collor e a queda do primeiro presidente eleito diretamente após a redemocratização do Brasil.