Governo Sarney: 1985-1990
Sarney sempre afirmou sentir-se ilegítimo no cargo quando assumiu. Não fora o presidente desejado pela população, somente um articulador de uma movimentação interna no Colégio Eleitoral para a vitória da Aliança Democrática, do lado oposto ao que esteve por boa parte dos anos anteriores na política. Mal conhecia os ministros que assumiriam as pastas e que haviam sido escolhidos por Tancredo. Muitas das suas ações iniciais foram articuladas em torno da pacificação com a sua posse em momento tão delicado. Desde concessões à esquerda (inclusive com o reatamento de relações diplomáticas com Cuba) até o beneplácito dos militares (com acordos internos garantindo que não haveria revanchismos), passando principalmente pela ampliação do poder do Congresso (convocação imediata da constituinte), Sarney buscou todas as alternativas que diminuíam o seu protagonismo e fortaleciam outros atores políticos, de modo a garantir alguma institucionalidade e equilíbrio (e sua permanência no cargo, evidentemente).
A fragilidade do momento era tanta que mesmo a duração do mandato estava obscurecida: era possível um mandato de seis anos (tal qual o de Figueiredo), e se viu uma ameaça de diminuí-lo para quatro anos (ao menos assim articulavam determinados grupos no Congresso), mas Sarney se adiantou e, em uma manobra política bem sucedida, propôs cinco anos, que de fato foram cumpridos. Além disso, o país não passou por grandes distúrbios políticos e ainda criou, executou e concluiu uma carta constituinte inteiramente nova. Formalmente deu certo. O presidente manteve-se no cargo por todo o período, a transição foi garantida e não houve interrupções ou cataclismas institucionais. Evidentemente, tudo isso não foi obra somente de Sarney, mas também de um movimento político, institucional e social mais amplo com vistas a garantir uma transição pacífica para a democracia. Segundo o próprio Sarney, essa transição foi “a maior obra de engenharia política que já foi construída no Brasil”. Exageros à parte, voltemos aos fatos.
Além das dificuldades da transição política, Sarney tinha nas mãos um problema imenso: o cenário econômico. O Brasil vivenciava um fenômeno — depois verificado nem tão raro — de estagflação, a convivência paradoxal e nada harmoniosa entre estagnação econômica e inflação. Em linhas gerais, o paradoxo em questão era o de uma certa falta de lógica entre, de um lado, o país não crescer economicamente (estando estagnado) e, de outro, vivenciar um rápido aumento de preços. A sensatez dizia que isso não era possível: se o país não crescia e, por conseguinte, não aumentava o poder de compra nem a produtividade, não havia motivos racionais para os preços aumentarem, pelo contrário.
Não era o caso do Brasil. O PIB brasileiro chegou a cair 2.9% em 1983 e 5% no índice per capita. Quando Sarney assumiu a presidência, a inflação girava em torno de 10 a 13% ao mês. No meio do ano de 1985, anunciava-se uma inflação anual de cerca de 300%. Era preciso algum choque para frear a inflação e não sangrar mais a população com o aumento de preços. Os ministros, herdados do governo Tancredo, não respondiam a Sarney, mas a Ulysses Guimarães — dando provas da crise de legitimidade e comando do presidente. No segundo semestre de 1985, algumas mudanças começam a ocorrer. Dílson Funaro assume o Ministério da Fazenda no lugar de Francisco Dornelles e João Sayad o Ministério do Planejamento. No início do ano de 1986, vem a grande mudança ministerial: Sarney assume as rédeas e institui um corpo ministerial ligado a ele e não mais ao grupo de Ulysses, Tancredo e do PMDB. Em 28 de fevereiro de 1986, Sarney lança o seu projeto para combater a inflação: a implantação do Plano Cruzado. O plano trazia uma nova moeda a substituir o Cruzeiro, o Cruzado, e instituía o congelamento de preços e salários. A Sunab (Superintendência Nacional do Abastecimento) assumia a responsabilidade por fiscalizar o aumento dos preços, com poder de prisão de gerentes de estabelecimentos comerciais caso violassem a proibição. O povo foi convocado para auxiliar na fiscalização voluntariamente, na campanha dos Fiscais do Sarney.
E a inflação mensal, que em fevereiro passara dos 20%, em abril virou deflação (-0,6% a.m.). E, de maio a outubro, não atingira nem a marca de 2% a.m. Sarney alcançou extrema popularidade e aprovação. A inflação parecia ter sido vencida e o país apostava num futuro próspero. Contudo, o sucesso do plano escondia a sujeira embaixo do tapete. Em um país acostumado com a inflação, um processo abrupto e artificial de seu controle promoveu o aumento do déficit público, inviabilizou alguns setores produtivos com a defasagem dos preços, incentivou um consumismo desenfreado e, por conseguinte, o desabastecimento. Porém, como os ganhos políticos do êxito do plano eram muitos, o governo, ciente dos problemas, foi postergando a sua vigência, em especial porque no fim do ano de 1986 ocorreriam eleições para governadores estaduais e para o legislativo federal.
Deu certo: o partido do governo elegeu 22 dos 23 governadores estaduais e mais da metade dos cargos candidatos de senadores e deputados federais. Menos de uma semana após a eleição, o governo anunciou um novo plano econômico, tentando sanar os graves problemas que espreitavam a economia brasileira: o plano Cruzado II. Nele, liberava-se o aumento de preços e o próprio governo promovia o aumento de algumas tarifas; também se congelavam, adiavam e reduziam alguns gastos e investimentos estatais atuais e previstos para o ano seguinte. Desse modo, tentava-se resolver as contas públicas, estimular a poupança e conter o consumo. Não deu certo. E mesmo nos casos em que os objetivos foram alcançados, isso se deu por motivos errados: a contenção do consumo se deu não por poupança ou qualquer outra razão prevista pelo plano, mas pela corrosão salarial que o retorno da inflação provocara, afetando a população trabalhadora.
A reação imediata ao Plano Cruzado II foi visceral. O povo sentiu-se enganado pelo governo, percebendo que o plano anterior fora esticado ao limite em virtude da eleição. Houve protestos massivos em várias cidades, em especial organizados pelas novas instituições representativas da classe operária e trabalhadora, principalmente a CUT. Na virada do ano de 1986 para 1987, um gatilho salarial fez a inflação ultrapassar novamente a casa dos 20%, anunciando um ano tenso para a sociedade brasileira. O presidente decretou a moratória da dívida externa brasileira e os ministros da Fazenda e do Planejamento pediram demissão.
Contudo, um novo problema surgia: a necessidade da reformulação constitucional do Brasil. Este assunto estava colocado desde o início do governo Sarney, já repleto de diatribes públicas e internas. Já em julho de 1985, Sarney estabelecera a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, uma comissão de “notáveis” presidida por Afonso Arinos. Muitos quadros foram contrários à comissão, pois esperavam que a Constituição fosse elaborada por uma Assembleia Constituinte exclusiva, quer dizer, eleita especificamente para esse projeto, sem qualquer anteprojeto ou comissão antecedente. Não suficiente, Sarney enviou mensagem ao Congresso convocando uma constituinte congressual, isto é, comunicando que o congresso atual escreveria a constituição, e não uma constituinte exclusiva. Houve pressões de diferentes partes e venceu pelo menos um dos dois projetos de Sarney: a Comissão Afonso Arinos não vingou, a Constituinte exclusiva não foi estabelecida e quem ficou responsável pela Constituição foi o Congresso vigente. Este foi eleito em novembro de 1986, mas era composto também pelos senadores eleitos em 1982, que ainda tinham mais quatro anos de mandato. Dessa forma, era este Congresso que iria elaborar a nova carta do Brasil. Presidida por Ulysses Guimarães, tendo como relator Bernardo Cabral e como responsável pelo regimento interno Fernando Henrique Cardoso, a constituinte foi instalada em 1º de fevereiro de 1987.
Os mais diversos sentimentos rondavam a instalação da Assembleia Constituinte: esperanças e temores, angústias e oportunidades; e do mesmo modo os mais distintos matizes políticos pareciam ganhar espaço. A composição majoritária do congresso anunciava uma possível tendência ao conservadorismo. Contudo, algumas lideranças políticas, bem proeminentes, estavam mais à esquerda do que o grosso dos congressistas. Movimentos populares pleiteavam a possibilidade de interferência mais aguda da sociedade civil. Conseguiram. Foi incluído no regimento da constituição que seriam incluídas propostas de iniciativa popular que contassem mais de 30 mil assinaturas e até mesmo tornou-se possível um simples cidadão enviar propostas pelo correio para a assembleia.
Assim, ao mesmo tempo em que a popularidade de Sarney decrescia, o protagonismo de Ulysses Guimarães avançava — o triplo presidente, como era chamado, em virtude de ser o presidente da Câmara, do PMDB e agora da Constituinte. Para resgatar a sua força, Sarney empreende uma nova tentativa de resolver o problema da inflação. Seu novo ministro da Fazenda, Luiz Carlos Bresser Pereira, célebre economista ligado ao grupo da UNICAMP, apresenta o que viria a ser conhecido como Plano Bresser. Para tentar aumentar as reservas cambiais brasileiras, o plano desvalorizava a moeda frente ao dólar (buscando também promover as exportações); para conter a inflação, promovia o congelamento de preços e salários por três meses; e para resolver as contas públicas, nova redução de gastos e corte de investimentos. O resultado do plano é desastroso: a inflação baixa da casa decimal e assim segue até outubro, porém em uma trajetória ascendente.
Não bastasse o fracasso dos planos econômicos, Sarney enfrentava outras dificuldades: as acusações e denúncias de corrupção no governo avolumavam-se. O presidente, ovacionado durante o primeiro plano Cruzado, agora não podia aparecer em público sem ser enxovalhado. Algumas manifestações foram ferozes, e Sarney chegou a ser ferido durante um evento no Paço Imperial no Rio de Janeiro. O governo lançou mão de uma lei típica de regimes autoritários para se proteger, a Lei da Segurança Nacional, para investigar e até mesmo prender opositores. Greves generalizadas, paralisações e protestos os mais variados atacavam o governo e sua legitimidade. Bresser Pereira pede demissão do Ministério da Fazenda, e o ano de 1988 termina com uma debandada de grandes lideranças do PMDB para a criação de um novo partido, o PSDB.
Foi neste contexto que se deu a elaboração da carta constitucional brasileira. A constituinte durou muito mais do que era previsto: dos seis meses que se previa, durou 18. O texto também se estendeu mais do que o previsto: é uma das maiores constituições do mundo. Promulgada em 5 de outubro de 1988, foi um grande momento de comoção nacional.
Contudo, o ano de 1988 terminava também com a péssima notícia de que a inflação acumulada anual se aproximava dos 1000%. O novo ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, iniciou o seu mandato com a prerrogativa de fazer o “feijão com arroz”, que significava não tomar grandes medidas, nem implementar grandes planos, tendo como meta somente estabilizar a inflação em torno de 15%. As iniciativas giravam em torno da contenção dos gastos e do controle cambial sem congelamento. Novo fracasso. No fim de 1988 a inflação atingia a casa dos 30% a.m. O país entrou em 1989 com a inflação galopante e já no primeiro mês o ministro embarca num novo plano: o Plano Verão. Novo congelamento de preços e da taxa de câmbio, indefinidamente; desindexação salarial, permitindo livre negociação entre empregados e patrões; ajuste fiscal com corte de gastos severos, incluindo privatizações e extinção de ministérios; e, por fim, a adoção de uma nova moeda, o Cruzado Novo, a substituir o Cruzado, pareado ao dólar. O plano durou somente o período que já anunciava no nome, pois em abril os preços já estavam liberados e a inflação retornou galopante. A eleição se anunciava e o país atingia 45% de inflação ao mês. O governo simplesmente desistiu do combate ao mal que assolava o país e relegou ao governo seguinte a tentativa de remediá-lo. Foi neste contexto econômico conturbado, fracassado, desistente e procrastinador, que o Brasil realizou a sua primeira eleição direta para presidente após 29 anos de jejum.
A eleição de Collor
Esta é uma eleição marcante no imaginário nacional. O país não votava diretamente para presidente desde 1960, quando elegeu a chapa Jan-Jan, Jânio Quadros e João Goulart (à época, presidente e vice eram eleitos separadamente). Agora, finalmente podia retomar o voto direto para o mais alto cargo do executivo, e o povo o fazia num cenário completamente diferente: com meios de comunicação de massa disseminados, a TV aberta, o rádio e os jornais de grande circulação; em meio a um período econômico degradado e angustiante; com pluripartidarismo ativo (eram dezenas de partidos políticos); e em um mundo em grande transformação.
O cenário da geopolítica no segundo semestre de 1989 estava marcado pelo declínio do socialismo, evidenciado na dissolução dos países da Cortina de Ferro (Polônia, Romênia, Tcheco-Eslováquia, Bulgária, Alemanha Oriental e Hungria). Ao final da Segunda Guerra Mundial, por uma série de fatores que não convém retomar aqui, esses países haviam transformado suas políticas e economias em socialistas e aderido ao Pacto de Varsóvia, em 1955, tornando-se repúblicas satélites da União Soviética, que compunham o Bloco Socialista. Porém, já no início da década de 1980, um racha interno ganhava repercussões na grande política da Cortina e, curiosamente, sem sofrer maiores represálias. As poucas manifestações contrárias aos regimes socialistas na Cortina ocorreram em 1956, na revolução húngara, e em 1968, na Primavera de Praga, na Tcheco-Eslováquia — ambas duramente reprimidas pelos próprios governos com franco e maciço apoio soviético. Agora, a velha União, falida, carcomida, defasada e desgastada, não conseguia mais manter tal domínio. Quando na Polônia, o Sindicato Solidariedade, de Lech Walesa, iniciou as suas contestações ao regime, as tentativas de repressão foram frágeis, ineficientes e desvalidas. Anunciava-se uma possibilidade de criticar e atacar o regime. A entrada de Mikhail Gorbachev como primeiro secretário da URSS anunciou o plano da Perestroika, que, a despeito dos seus primeiros vagos manifestos, terminou afirmando que os países aliados da URSS deveriam sê-lo por livre expressão, e não opressão. Em 1987, novos movimentos surgiram nos países da Cortina sem receberem quaisquer retaliações da URSS. Nunca ficou claramente explicado se se tratou de um desgaste completo da URSS, de uma posição definitiva de Gorbachev ou até mesmo de uma trapalhada. O que importa é que ao longo do ano de 1989, como uma bola de neve, todos os países da Cortina viram os seus governos socialistas caírem, de forma pacífica (ou não — note-se o caso da Romênia, que terminou com o assassinato do líder ditatorial e sanguinário Ceausescu), com o Politburo assistindo de camarote.
Essa breve digressão em geopolítica internacional é importante para destacar o que importa para a eleição brasileira de 1989. A despeito de todos os pormenores em que possamos entrar para compreender como em cada república socialista o governo chegou ao fim, a mensagem geral era de um colapso do socialismo. Restava de pé na Guerra Fria somente a Velha URSS, composta por suas 15 republiquetas, que ainda viriam a se emancipar em 1990 e 1991. Quer dizer, postar-se ao lado do socialismo em 1989 parecia algo retrógrado, vinculado a uma ideologia derrotada e em franca decadência.
Independentemente disso, partidos políticos de esquerda defendiam o socialismo francamente ou usavam a palavra socialista, ainda que de modo vago, propositalmente ou não. Outros faziam críticas vagas, genéricas, jamais diretas. Expandiam o conceito de socialismo para a social-democracia, chamando esta por aquele. Havia um certo mal-estar, é certo. As divisões eram intensas internamente, mas não tornadas públicas, em grande parte.
No Brasil, a esquerda brasileira já trazia uma certa complexidade. De um lado, abarcava os partidos abertamente socialistas e comunistas como o Partidão (PCB) e o PCdoB, que, mesmo reconhecendo que tivessem suas divergências ideológicas, tinham-nas dentro do espectro do marxismo; em uma outra ponta do espectro ideológico da esquerda, havia um partido mais ligado ao trabalhismo, como o PDT, de Leonel Brizola, ainda que fosse ligado à Quarta Internacional Socialista. Entre uma e outra coisa, o surgimento do PT assinalara uma novidade na esquerda brasileira e latino-americana: se, por um lado, Lula, sua principal liderança, não falava tão insistentemente em socialismo (apenas quando provocado), o partido abarcava várias correntes marxistas e socialistas em sentido amplo (no geral, reformistas e não alinhadas ao chamado bloco soviético). A mensagem do partido era, nesse sentido, relativamente ambígua nesse aspecto, e isso não apenas por sua constituição internamente heterogênea, mas também intencionalmente pelo desenho do partido: sua agenda ideológica congregava, efetivamente, do sindicalismo ao socialismo. Pode-se encontrar uma evidência disso no fato de Lula, quando questionado incisivamente acerca do assunto, defender, sim, o socialismo, assumindo-o como meta. Isso é importante para compreender a eleição de 1989 no Brasil.
A eleição no Brasil de 1989 viu a pulverização ideológica em uma série grande de partidos. O candidato mais evidente era o triplo presidente Ulysses Guimarães, que vinha pelo seu histórico partido, o PMDB. Porém, as pesquisas já mostravam que Ulysses, o “bom velhinho”, como aparecia na candidatura, podia ser um hábil articulador na política interna, mas não necessariamente (ou não mais) um candidato de palanque, de encantar as massas. Outro candidato evidente, grande crítico do Regime Militar, Leonel Brizola, surgia agora pelo seu novo partido, o PDT, mantendo a histórica bandeira do trabalhismo. Tratava-se de um líder tradicional, da esquerda (em sua roupagem trabalhista) desde a época em que protagonizou o grande movimento da Legalidade pela posse constitucional de João Goulart, então vice-presidente, após a renúncia de Jânio. De governador do Rio Grande do Sul passou a organizador de lutas, inclusive armadas, contra a ditadura militar, exilou-se e retornou na Anistia. Porém, agora, o adversário de Brizola parecia estar mais à esquerda do que à direita. De algum modo, sua liderança à esquerda sofria agora a ameaça de Lula e do PT, que pareciam ter tomado a frente na oposição no país. Ainda na eleição de 1989, a diferença entre ambos, nas urnas, foi pequena, pois no primeiro turno menos de 1% separaram Brizola e Lula. À distância, podemos ver que foi o canto do cisne de Brizola. Dali em diante, o líder gaúcho jamais retomaria o seu protagonismo, ofuscado pela presença inconteste de Lula na oposição (Brizola viria a ser candidato a vice em chapa de Lula futuramente). Brizola e o brizolismo pareciam ter se tornado algo antigo, e a esquerda assumia uma nova “cara”. Vale lembrar que a esquerda ainda teve dois outros líderes nessa eleição, Roberto Freire e Fernando Gabeira, respectivamente pelo “partidão (PCB) e Partido Verde (PV), ambos ativos ainda por décadas depois do pleito de 1989.
Também no centro surgiu uma divergência. O novo partido, o PSDB, dissidência do PMDB, lançava o seu candidato à presidência, Mário Covas (que viria, anos mais tarde, a ser governador de São Paulo). Essa novidade era relevante: o velho partido da oposição, o PMDB, sofria agora, pela primeira vez de modo consistente, um racha interno. E a dissensão envolvia as lideranças do partido. Os quadros que migraram para a nova sigla eram fortes lideranças no PMDB: Franco Montoro, Afonso Arinos, Artur da Távola, José Richa, José Serra, Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Alckmin e Renan Calheiros foram alguns que se juntaram a Mário Covas, para citar alguns políticos que marcaram e ainda marcam a política nacional. A divergência ideológica talvez não fosse tamanha, pois o PSDB se situaria entre a centro-esquerda e a centro-direita, próximo ao PMDB. Mas o compromisso era mais claro, objetivo e evidente com a proposta da social-democracia e a inspiração nos partidos europeus dessa corrente.
Não devemos esquecer, ainda, da pré-candidatura de Silvio Santos, pelo PMB. Sua aventura política foi embargada pelo TSE, em virtude de problemas de registro e procedimento do seu partido — o partido não comprovou ter realizado convenções regionais em pelo menos nove estados, exigência da lei eleitoral. Além disso, por ser proprietário de importante canal de TV (o SBT) e poder manipular a comunicação, julgava-se que não poderia se candidatar.
A direita também estava dissipada: o ex-governador de São Paulo, candidato na eleição indireta de 1985, chegava na campanha prometendo. Era Paulo Maluf, pelo PDS. No mesmo espectro político, Guilherme Afif, do PL; Aureliano Chaves, do PFL; Ronaldo Caiado, da União Democrático Ruralista; e o pitoresco Enéas Carneiro, do PRONA, o Partido da Reedificação da Ordem Nacional.
Ocorre que o grande candidato da direita, Fernando Collor de Mello, vinha sendo montado desde 1987. Pelos dois lados da família, Collor vinha de uma longa tradição política: o avô Lindolfo Collor fora ministro de estado (do Ministério do Trabalho) na era Vargas e o pai, deputado e governador de Alagoas, estado natal da família. Fernando Collor fora prefeito de Alagoas aos 31 anos, deputado federal aos 34 e, à época da candidatura de 1989, era governador de Alagoas. Como governador, estava filiado ao PMDB, no qual não tinha força política suficiente para angariar chances de disputar a presidência (nem mesmo a vice-presidência, como chegou a tentar).
Collor, então, se retira do PMDB e monta um novo partido em torno da sua candidatura: o PRN, o Partido da Reconstrução Nacional. Collor era jovem, nem contava 40 anos (viria a ser o presidente mais jovem do Brasil, empossado aos 40), apresentava-se como moderno, vigoroso e até mesmo o seu aspecto físico acabou sendo levado em conta, pois falava-se muito no “presidente bem apessoado” e esportista. Do ponto de vista ideológico, Collor remetia-se à nova moda da política econômica para a América Latina: o neoliberalismo. Havia, entre várias instituições de política econômica na década de 1980, uma aposta em um conjunto de reformas fiscais e administrativas para os governos diante da globalização. O teórico John Williamson as denominou “Consenso de Washington”, dado que não havia discordância entre as grandes instituições americanas sobre a receita: ajuste fiscal, redução e reorientação de gastos públicos, privatizações e liberalização financeira.
Se sua carreira fora meteórica, tanto mais a sua candidatura, que tomou conta da imprensa. Ocupando os espaços dos jornais, do rádio e da TV, logo disparou nas pesquisas. Postou-se em primeiro lugar e lá permaneceu, razão pela qual se permitiu faltar aos debates políticos, alegando que nem os assistia (Collor chegou a afirmar que, durante o debate presidencial, ficou assistindo “Tela Quente”). A disputa em segundo lugar ficou para a oposição, entre Lula e Brizola, com uma leve vantagem para o candidato petista. A campanha de Collor trazia o seu histórico combate aos privilégios em cargos públicos altamente remunerados, o que Collor chamou de “caça aos marajás”, com amplo apelo popular. Além disso, propunha uma modernização do Brasil e falava, ainda que vagamente, em globalização e avanços econômicos. No ataque à oposição, afirmava que Lula representava o socialismo e o atraso, que iria confiscar a poupança do povo.
É importante tratar desse assunto um pouco mais detalhadamente: corria à boca pequena que uma das alternativas para a inflação galopante no país seria não mais o congelamento de preços, mas a retenção dos depósitos bancários, vulgarmente chamada de “confisco da poupança”. O racional era simples: os choques de congelamento de preços normalmente levavam a uma corrida de consumo, que criava uma desproporção entre os preços e o abastecimento, ferindo a produtividade, defasando o valor das mercadorias e iludindo o consumidor, já que ali na frente quando houvesse o descongelamento os preços viriam acumulados. Logo, se em vez de congelar preços houvesse um congelamento dos depósitos bancários, isso limitaria a capacidade de compra dos cidadãos, impedindo essa corrida ao consumo e seus efeitos. Mudava-se o foco do preço para o poder de compra.
Não parece, porém, a mais democrática e benquista das medidas. Uma ação assim seria extremamente impopular. Contudo, a proposta era bastante discutida nos bastidores da economia brasileira. Durante o debate no segundo turno, Collor alertou a população que Lula a colocaria em prática se eleito, não sem antes ter afirmado que sua equipe discutia internamente essa possibilidade. O debate econômico foi fundamental para o período: em primeiro lugar porque se referia à inflação, um problema central para a população brasileira, e, em segundo, pelo que acontecia nos países da Cortina de Ferro. A posição ambivalente de Lula em relação à queda do socialismo, ora chamando o Muro de Berlim de “muro da vergonha”, ora postando-se como socialista, certamente não jogou a favor de sua campanha. Falar no programa de governo em revolução socialista era uma forma de confundir essa mensagem. O primeiro ponto dentre os sete que constituíam o plano de governo do PT em 1989 era “solidariedade irrestrita às lutas em defesa da independência nacional, da liberdade, da democracia e do socialismo”.
Do outro lado, a clareza de Collor nesse quesito foi mais bem recebida pela população. Criticava o muro, a censura, o autoritarismo e defendia a livre iniciativa, a modernização e a democracia. A mensagem era mais clara, e em uma campanha eleitoral de voto amplo isso conta sobremaneira.
O que a eleição de 1989 fez foi consagrar um movimento histórico bastante comum: após períodos muito conturbados, na transição para uma nova era, o destino dos políticos antigos é, em geral, a rejeição e o esquecimento. Tais figuras tendem a ser consideradas como águas passadas, e mesmo quando a população é capaz de reconhecer-lhes algum valor por realizações pretéritas, acredita que é melhor renovar. Foi o que ocorreu com figuras como Ulysses Guimarães, Mário Covas, Brizola e Maluf: associados ao passado, foram relegados ao segundo plano, e a escolha da população se deu entre o novo líder de uma nova esquerda, Lula, e o novo líder de uma direita que pugnava por modernização, Collor de Mello.
Os debates entre os candidatos abarcavam todos os vieses ideológicos e políticos de então. Dificilmente uma posição política da época não era representada por um desses candidatos da extrema direita à extrema esquerda, das mais antigas às mais inovadoras propostas. Foram debates calorosos, além de uma miríade de entrevistas individuais realizadas por jornais, rádios e TV. A eleição propriamente dita ocorreu no dia 15 de novembro de 1989, exatamente um século após a proclamação da república. Collor ficou em primeiro lugar com 30% dos votos e Lula em segundo, com uma vantagem muito apertada frente ao terceiro, Brizola: respectivamente 17,19% e 16,51%.
Um assunto bastante delicado — e decisivo na história do país em vários sentidos — surgiu entre o primeiro e o segundo turno. É preciso levar em consideração que os debates televisivos à época não eram transmitidos ao vivo, mas sim gravados. Ainda, é preciso considerar que a TV era, então, o maior meio de comunicação de massa, tendo a Rede Globo, no caso brasileiro, o maior público. Seu principal noticiário, o Jornal Nacional, era líder disparado de audiência, alcançando 60 pontos. No dia seguinte ao debate ocorrido no dia 14 de dezembro de 1989, o Jornal Nacional foi acusado de ter favorecido o candidato Collor, não só destacando trechos que o privilegiavam, como lhe cedendo um minuto e meio a mais. Este ponto mereceria um artigo próprio, pois lideranças petistas já afirmaram que Collor realmente havia se saído melhor, mas, independentemente disso, o PT à época entrou na justiça eleitoral exigindo que a Rede Globo apresentasse outros momentos do debate. A emissora, por sua vez, comunicou que os editores “usaram o mesmo critério de edição de uma partida de futebol, na qual são selecionados os melhores momentos de cada time. Segundo eles, o objetivo era que ficasse claro que Collor tinha sido o vencedor do debate, pois Lula realmente havia se saído mal”.
O assunto foi tão marcante e polêmico que, quando a Globo lançou o o site Memória Globo, esta foi uma das primeiras reportagens apresentadas, prestando contas à população e apresentando a sua visão. Desde essa ocorrência, e para evitar tais questões, os debates televisivos são necessariamente realizados e transmitidos ao vivo. No segundo turno, Collor venceu Lula com 42,75% dos votos. O presidente jovem, com discurso e aparência supostamente modernas, tornava-se o primeiro presidente eleito após quase 30 anos. A Nova República parecia, agora, ao eleger um presidente por via direta, finalmente ter consolidado a sua feição democrática. Será?