Ideia de Brasil — A transição para a democracia (parte 1)

Neste novo capítulo de sua série sobre a Nova República, Felipe Pimentel busca compreender pontos mínimos relativos à alta política, a começar pela fragilização do regime militar.

Para iniciar nossa análise das diferentes áreas da vida na Nova República, começaremos tratando da política. No texto anterior, já havia mencionado a complexidade teórica e metodológica de fazer história do tempo presente. Agora, acrescento mais um desafio de pesquisa: quase à moda antiga, pretendo me ater, nestes textos específicos sobre política, ao teatro da macro-política, isto é, ao que acontece nos altos escalões da política institucional, com foco nos principais eventos que marcaram e transformaram o período, referindo-me, quando necessário, aos outros campos da vida – sociedade, economia, cultura, etc. Tentarei deflacionar quando possível grandes interpretações, circunscrevendo a análise a correlações, vinculações e causas e efeitos direta e indiretamente relacionados.

Assim, convido o leitor a me acompanhar neste esforço de compreensão de pontos mínimos relativos à alta política durante a Nova República. Passaremos depois aos aspectos relacionados à sociedade, à cultura, à economia e às demais áreas da vida nacional já mencionadas no primeiro texto.

A transição para a Democracia

O governo militar conseguiu um grande avanço econômico na primeira metade da década de 1970 – que ficou popularmente conhecido como “Milagre Econômico”, nome inspirado no desenvolvimento logrado pelo Japão no pós-Segunda Guerra, o “milagre” japonês. As medidas já começaram no governo Castelo Branco, quando seu plano econômico, o PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo), efetuou um ajuste fiscal relevante, com o objetivo de “crescer o bolo para depois reparti-lo”. Já no final dos anos 1960, e especialmente a partir do mandato Médici, a economia nacional conheceu um período de intenso florescimento, com crescimento do PIB atingindo uma dezena. Em 1973, a crise do petróleo, desencadeada pelo aumento do preço do barril do petróleo pela OPEP como resposta ‘a Guerra do Yom Kippur, atingiu a economia mundial e lentamente seus efeitos começaram a se fazer sentir no Brasil. É um ponto de inflexão importante na história econômica do país e do mundo. A população ainda demoraria um pouco para ver as consequências nocivas da crise do petróleo, mas já podemos ver neste momento, pós-1973, o início da fragilização, ao menos financeira, do regime.

Dentro das Forças Armadas existiam muitas disputas internas desde a fundação da ditadura. O grupo dos castelistas – mais intelectualizados, formados majoritariamente na Escola Superior de Guerra, também chamados de sorbonistas, em referência, um pouco pejorativa, à universidade francesa – defendera à época do golpe militar uma intervenção imediata, curta e transitória. Ela consistiria em somente retirar do poder João Goulart, organizar eleições e devolver o poder para os civis em 1966. Porém, grupos dentro do Exército divergiam desta abordagem. Eram quadros mais vinculados à Doutrina da Segurança Nacional, que propalava que a luta contra o comunismo era mais ampla que a mera remoção de um presidente, que ela era uma “guerra total”. Dessa forma, seria necessária uma intervenção mais duradoura, capaz de garantir uma extirpação completa da ameaça do comunismo no país. Essa abordagem ficou conhecida como a ” linha-dura”. O nome referia-se à visão mais truculenta e militarista dela, e posteriormente também às práticas indiscriminadas de repressão propagadas pelos quadros mais radicais. Este breve panorama é necessário para compreender a inflexão que houve em 1974, dado que até então tivemos um presidente dos moderados, Castelo Branco, ao qual se seguiram dois presidentes da linha-dura, Costa e Silva e Médici. E neste momento pós-1973, essa divergência de visão interna teve uma nova reviravolta: em 1974 ascendeu ao poder um herdeiro dos castelistas, Ernesto Geisel. Seu discurso era mais brando e – amparado por pesquisas internas e análises do célebre mentor intelectual do regime, Golbery – defendia uma distensão política e social no país. De algum modo, o regime dava sinais, com essa moderação do discurso, que alguma fragilização estava sofrendo. Geisel assumiu em 1974 para um mandato de cinco anos. Ainda vigoravam as principais leis que permitiam o livre trânsito da repressão no Brasil, em especial o AI-5. Os aparelhos repressivos nos porões da ditadura seguiam em atuação. Ocorre que as principais organizações clandestinas, ligadas à luta armada ou não, já haviam sido debeladas, destruídas no governo Médici. Neste momento a ação de perseguição e violência se voltou para outras organizações sociais, como alguns órgãos de imprensa e corporações sindicais. As duas ações mais trágicas dessa ação repressiva nos bastidores do governo foram as mortes do jornalista Vladimir Herzog em 1975 e do sindicalista Manoel Fiel Filho no ano seguinte, ocorridas no intervalo de três meses na prisão (e reportadas como suicídio pelo regime), que levaram ao pedido de exoneração do comandante do 2° Exército, Ednardo D’Ávila Mello, gerando uma crise institucional interna.

Neste mesmo período, a ditadura argentina, bem como a uruguaia, entrava em uma de suas fases mais sangrentas, e a chilena, implementada em setembro de 1973, seguia perseguindo opositores de todos os espectros políticos. No Brasil, Geisel tentava matizar, falando em “democracia relativa”, embora o país seguisse formal e informalmente em um regime autoritário. Na oposição, começavam a surgir algumas contestações mais veementes, como a Carta aos Brasileiros, escrita por juristas, os documentos da CNBB, com críticas ao regime militar, além de manifestações estudantis e populares. 

Foi nesse cenário contraditório e conflituoso que Geisel propôs uma distensão lenta e gradual, para ser segura, rumo à democracia. O temor do governo era realizar essa abertura rapidamente e sofrer contestações muito imediatas e intensas ao regime. Por isso, lançou mão de uma série de alterações na política eleitoral, de modo a diminuir críticas e conter vozes contestadoras ao regime.

A primeira medida foi a Lei Falcão, nomeada em referência ao Ministro da Justiça à época, Armando Falcão. Aprovada por Geisel em 1976, estabelecia diretrizes para as propagandas eleitorais:  

I – na propaganda, os partidos limitar-se-ão a mencionar a legenda, o currículo e o número do registro dos candidatos na Justiça Eleitoral, bem como a divulgar, pela televisão, suas fotografias, podendo, ainda, anunciar o horário local dos comícios“;

Com esta restrição da propaganda política pela lei eleitoral, o governo conseguia, na prática, um apagamento do ataque ao governo, de críticas abertas ao regime. A lei era uma ótima ilustração do aspecto paradoxal do período: chamava eleições, mas restringia a palavra.

Contudo, isso não era suficiente para garantir uma distensão “segura” na visão do regime. Como ocorreriam eleições em 1978, o governo organizou uma grande alteração legislativa, de forma a garantir que manteria a maioria no Congresso e também nos executivos estaduais. Foi assim que surgiu a segunda medida: o Pacote de Abril (leia aqui), que, em 1977, que definia os seguintes pontos: (i) eleição indireta para governador; (ii) eleição indireta para ⅓ dos senadores, mais conhecidos como senadores biônicos; (iii) diminuição do quórum mínimo de dois terços para maioria simples para votar e aprovar emenda constitucional; (iv) ampliação da bancada das regiões Norte e Nordeste; (iv) ampliação do mandato de presidente de 5 para 6 anos; (v) criação do estado do Mato Grosso do Sul; (vi) extensão à esfera estadual e federal da Lei Falcão; e (vii) instituição da sublegenda na eleição para senador (partidos poderiam inscrever mais de um candidato). 

Essas alterações tiveram uma série de motivos e efeitos. Algumas são auto-evidentes, como a criação do senador biônico e a extensão do mandato presidencial, outras menos claras. Vale mencionar o motivo da ampliação da bancada no Norte e Nordeste: segundo pesquisas internas do regime, o governo recebia maior apoio nessas regiões, de modo que ampliar suas bancadas seria favorável para eles.

Nesse escopo eleitoral, ocorrem eleições legislativas em 15 de novembro de 1978, para deputados estaduais, 420 deputados federais e 23 senadores (outros 22 seriam biônicos). Foram as últimas com o sistema bipartidário em vigor desde o AI-2, outorgado em 1965. Seus resultados foram quase completamente como o regime esperava: somente um dos governadores eleitos não era do partido da situação, a ARENA; os estados do Norte e Nordeste realmente votaram favoravelmente ao regime; e a sonhada maioria absoluta de senadores quase se concretizou (o regime ficou com 42 das 67 vagas).

Logo após as eleições, o presidente extinguiu o AI-5 e a CGI (Comissão Geral de Inquérito), à época noticiado como o fim do “banimento”. 

O ano de 1979 anunciava uma nova sucessão presidencial. A crise econômica do “milagre” começava a atingir a população em cheio: cresciam os índices de inflação e desemprego no país. Neste cenário foi eleito indiretamente o último presidente militar, João Figueiredo, que, apesar de ter tido vários cargos em governos anteriores do regime, representava uma nova geração entre os militares. Figueiredo falava abertamente sobre concluir a transição de regime. No discurso de posse, afirmou desejar finalizar a abertura política, iniciada no governo anterior: 

Reafirmo, portanto, os compromissos da Revolução de 1964, de assegurar uma sociedade livre e democrática. Por todas as formas a seu alcance, assim fizeram, nas circunstâncias de seu tempo, os presidentes Castello Branco, Costa e Silva, Emílio Médici e Ernesto Geisel. Reafirmo: é meu propósito inabalável — dentro daqueles princípios — fazer deste País uma democracia.”

Geisel transmite a faixa presidencial ao seu sucessor, general João Baptista Figueiredo. Foto: CPDoc JB.

É interessante perceber que o conteúdo do discurso demonstra que o compromisso que Figueiredo assume é com os princípios da intervenção de 1964, chamada pelo regime de a “revolução”, que dizia defender a democracia brasileira da ameaça do comunismo. Deste modo ambíguo, o novo presidente conseguia anunciar uma passagem à democracia como uma continuidade das ações do regime.

Por outro lado, sem AI-5, as ações repressivas perderam o seu caráter sistemático, e por conseguinte as críticas ao regime militar se avolumavam. Às críticas internas, somaram-se as externas, que erodiram a confiança da institucionalidade. O regime daria novos passos em direção à abertura. Novamente, não se tratava de mera benevolência da ditadura com a sociedade, mas a solução mais viável diante da tensão político-social.

Na direção da Abertura Política, em 1979, Figueiredo envia ao Congresso a proposta de Lei da Anistia. O texto da lei dizia: 

“O PRESIDENTE DA REPÚBLICA: Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).

§ 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

§ 2º – Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.”

Votada em agosto daquele ano, a Lei da Anistia foi aprovada e permitiu o retorno ao país de vários líderes políticos de oposição, como Leonel Brizola, Miguel Arraes e Luís Carlos Prestes. A lei foi certamente um avanço, porém houve grupos que tiveram reticências com ela. Alguns membros do regime estavam temerosos, pois supunha que poderia ocorrer um retorno feroz da oposição, e entre estes houve quem atacasse a generalidade da lei, que poderia abarcar também aqueles que cometeram crimes “em nome do governo”. Este aspecto é perene na história do país, dado que a Lei da Anistia normalmente é responsabilizada pela não condenação de membros ativos do quadro de repressão durante a ditadura militar.

No fim do mesmo ano, o governo age novamente em vista da Abertura, ao extinguir o AI-2, que implantara o bipartidarismo, e todos os seus sucedâneos na lei eleitoral, através da Nova Lei Orgânica de Partidos. Um dos objetivos do governo era pulverizar a oposição ao regime, fragmentando-a em vários partidos políticos. Por óbvio, a oposição se aglutinara até então pela união em torno do regime militar. Desse modo, a vizinhança do fim do regime também abriria dissensões internas dentro da oposição, que passaria a divergir sobre os modos de conduzir um país em uma democracia.

A partir daí, a ARENA transformou-se em PDS (Partido Democrático Social), liderado por José Sarney, seu primeiro presidente; e o MDB em PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), sob liderança de Ulysses Guimarães e Franco Montoro. Contudo, outros quadros dos partidos montaram outras agremiações. O PP, visto inicialmente pelo governo como “oposição confiável”, era liderado por Tancredo Neves (mais crítico ao regime) e Magalhães Pinto (que apoiou o golpe em 1964). Futuramente o PP fundiu-se ao PMDB: Tancredo coordenou a ida em massa do PP para o PMDB nas eleições estaduais de 1982 e Magalhães Pinto retornou ao PDS. Os trabalhistas, Leonel Brizola e Ivete Vargas (sobrinha-neta de Getúlio), disputaram a sigla de Vargas na justiça, tendo a última ganho de causa, refundando o PTB, restando a Brizola a fundação do PDT. Um partido com uma abordagem nova foi fundado, o PT, sob liderança de Lula, unindo setores da classe média intelectual — movimento estudantil e professores universitários —, lideranças de alguns grupos sindicais ligados à região do ABC paulista e membros da ala esquerda da Igreja Católica — movimentos das comunidades eclesiais de base (CEB’s) e da teologia da libertação. 

Nem tudo eram flores. A progressiva abertura política assustou membros radicais do regime militar, ligados ao aparelho repressivo, que continuaram promovendo ataques aos civis, dos quais os mais famosos foram o Atentado do RioCentro, em 1981 e à sede da OAB. 

A primeira eleição que ocorreu sob esse regime partidário foi a de 1982, que elegeu senadores (⅔), deputados federais e estaduais, prefeitos, vereadores e, pela primeira vez em voto direto desde 1965, governadores (o Congresso aprovou por unanimidade proposta de emenda enviada pelo governo neste ano sobre o tema). No Congresso Nacional, tanto na Câmara dos Deputados, quanto no Senado, PDS e PMDB somaram mais de 90% das cadeiras. Olhando de perto, porém, e considerando o cômputo total de partidos, na Câmara, a oposição tinha maioria; no Senado, o PDS só manteve maioria em virtude dos senadores biônicos; e nos governos estaduais, a oposição tinha um governador a mais que o regime.

Paralelamente aos movimentos partidários, houve uma proliferação e profusão de movimentos sociais, que viam agora uma possibilidade maior de manifestação, organização e institucionalidade. Esses grupos se aglutinaram em torno de algumas causas, como a terra, moradia, trabalho. A partir delas, e neste momento específico de progressiva abertura, nós vemos diversas  causas que começaram a se cristalizar. É o período da fundação da CUT e do MST, por exemplo. Ocorria uma grande efervescência política, social e civil no país, que seguia vivendo sob uma ditadura, com todos os seus dramas e contradições, mas não mais sob o AI-5, com os seus líderes políticos anistiados e de volta à sociedade, pensando junto à população que futuro de Brasil imaginavam e como poderiam concretizar a definitiva passagem para a democracia.

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No próximo texto, leia como a progressiva abertura político-eleitoral anunciava a possibilidade de uma eleição presidencial direta.

Leia os outros textos da série:

Ideia de Brasil — Capítulo Zero: É isto um país?

Ideia de Brasil — Capítulo Zero (parte 2): Uma tentativa de periodização da Nova República

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