Ideia de Brasil — Capítulo Zero: É isto um país?

Na estreia de sua coluna, o historiador Felipe Pimentel propõe uma periodização interna da Nova República, de modo a amarrar os mais distintos aspectos da realidade brasileira nas últimas décadas — da política e da economia à cultura e às artes.

Inicio, neste primeiro texto, uma série de capítulos sobre a história da Nova República Brasileira, período que convencionalmente dizemos que teve início em 1985. Agora que nos aproximamos de seus 40 anos, minha intenção é compor uma história “total” da Nova República, abrangendo múltiplos aspectos de interesse de consideração histórica: política, economia, cultura e artes, sociedade, tecnologia, diplomacia etc. Pretendo concluir a tarefa de escrever sobre todos esses tópicos até março de 2025, e convido você para me acompanhar nesta jornada de tentar contar a história recente do país. 

A contribuição mais original que julgo trazer reside na proposta de periodização interna do período, que apresento já neste primeiro texto. A subdivisão nos períodos que sugiro parece dar conta da amarração entre os mais distintos aspectos da Nova República brasileira, demonstrando como as diferentes instâncias da vida humana influenciam uma a outra. Neste primeiro texto, eu exponho o argumento que justifica minha proposta de periodização; já a partir dos próximos, a usarei para fundamentar a compreensão dos diferentes aspectos da vida social no país.

Além de apresentar essa periodização, neste primeiro texto busco delinear um quadro geral do país na atualidade e o quanto a realidade nacional difere dos momentos anteriores; o quanto somos uma sociedade que mudou muito e rápido. É sempre difícil fazer história do tempo presente; os historiadores sabemos dos empecilhos teóricos e metodológicos disso. Porém, 40 anos já parecem um bom tempo para se fazer uma “história”, e certamente quanto mais nos aproximarmos do tempo presente menos claras ficam as coisas. Ao fim desta série, poderemos compreender de modo global a Nova República e até mesmo lançar alguma luz sobre as dificuldades atuais, que parecem tanto dividir a população.

Abaixo encontram-se os títulos e uma descrição geral dos capítulos que constituem este projeto. Eles tomam sempre como ponto de partida uma determinada pergunta norteadora e abrangem o raio de tempo indicado na descrição. Serão publicados quinzenalmente. As perguntas que disparam os textos são todas colocadas na primeira pessoa do plural. Motivo? Com isso, gostaria de alertar e questionar uma postura disseminada, quase natural do cidadão brasileiro: a de achar que o Brasil é sempre o outro, de que a brasilidade não cabe a si, mas ao próximo. Só em raras ocasiões o brasileiro sente que ele realmente faz parte da sociedade e ele só costuma fazê-lo quando os efeitos, danosos, agem sobre si. Isso não é necessariamente uma crítica, pois quadros assim, mostra a sociologia, são comuns em sociedades desiguais e excludentes. O corrupto é sempre o outro, o que enriqueceu é sempre o próximo, o que sofreu a injustiça não fui eu. Nesse sentido, desde o início, a pergunta nos convoca a pensar como parte dessa sociedade. 

ÁreaTemaPerguntaDescrição
Visão
geral
A Década perdida: 1985-1993Como sobrevivemos?Da transição para a democracia ao Plano Real
A Década de estabilização: 1993-2003Como conseguimos?Do Plano Real à eleição de Lula
A Década petista: 2003-2013O quanto mudamos?De Lula às manifestações de junho
A Década de polarização: 2013-2023O que houve com a gente?Das manifestações de junho até hoje
PolíticaEleições no BrasilQuem nos representa?Da morte de Tancredo à eleição do apocalipse
LegislativoQuando vamos mudar?Da Constituinte aos acordões
ProblemasO quanto eles tiram de todos?Dos anões do orçamento à rachadinha
Justiça & segurançaSegurança públicaEles querem nos matar?De um ponto ao mesmo na história da violência
JudiciárioQuem são eles?Do anonimato aos 11 novos jogadores mais famosos
Sistema prisionalQuem vai dizer algo?Do Carandiru ao carandiru diário
SociedadeCostumesQuão rápido mudamos?Dos niilistas anos 1980 às disputas morais do século XXI
EducaçãoO que aprendemos?De analfabetos a PHDs
ImprensaQuem nos informa e desinforma?Do monopólio da Globo ao Twitter
CensosQue país é este?De 90 a 200 milhões de pessoas em 40 anos
Cultura
& Arte
CinemaComo nos vemos?Do fim da pornochanchada a Bacurau
MúsicaQuem canta a nossa vida?Do Brock 80 ao Kondzilla
EsportesNo que vencemos?De Ayrton Senna a Neymar
Letras & ArtesQuem contará a nossa história?De Rubem Fonseca a Itamar Assunção
EconomiaOs planos econômicosTodo dia uma surpresa?Da estagflação ao Plano Real e suas ondas de ajustes
Produção Nacional BrasileiraDo que vivemos?Das commodities aos ecossistemas de inovação
Meio ambiente e política externaMeio ambienteVamos salvar o mundo?Da Eco-92 aos dilemas amazônicos
Relações exterioresO que eles pensam da gente?Da moratória ao protagonismo ambiental
ConclusãoConclusãoPara onde vamos?A Nova República perdurará

Apresentação do Brasil atual

A república brasileira é frágil, desordenada, imprevisível. Desde o golpe militar de 15 de novembro de 1889, o regime já passou por seis constituições distintas, sendo duas outorgadas; muitos golpes exitosos e outros fracassados; uma miríade de partidos, grande parte dos quais desaparece a cada ruptura institucional. Atualmente, falamos em Quinta República (1985-…), ou ainda Nova República, o segundo período mais longo do republicanismo brasileiro, atrás somente da Primeira República (1889-1930) — até então.

Os outros períodos foram mais curtos e ainda mais conturbados: a Segunda República, também conhecida como Era Vargas (1930-1945), contou com três regimes distintos internamente (Governo Provisório, 1930-1934; Governo Constitucional, 1934-1937; e Estado Novo, 1937-1945); a Terceira República (1946-1964), chamada de Período Democrático-Populista, contou com cinco presidentes, dos quais somente dois terminaram o seu mandato normalmente, os demais tendo cometido suicídio, renunciado ou sofrido golpe de estado; e, por fim, a Quarta República (1964-1985), a célebre Ditadura Cívico-Militar, ficou marcada pela violação dos Direitos Humanos, pela perseguição política, civil e social e pela manipulada eleição indireta de presidentes militares. 

A república brasileira é frágil, desordenada, imprevisível.

Paralelamente às descontinuidades institucionais, alguns índices demográficos só fizeram avançar desde a proclamação. Na primeira década da república, a população contava com cerca de 14 milhões de pessoas, enquanto hoje, segundo o último censo do IBGE, somamos mais 200 milhões a essa cifra.

População atual é de aproximadamente 215 milhões de habitantes. Foto: Estadão Conteúdo.

No início do republicanismo, a taxa de natalidade do país era de 46,5/1000, passando para 17,06/1000 atuais; e a de mortalidade infantil de 32/1000, passando para 6,27/1000; e a esperança de vida ao nascer, que praticamente dobrou neste período de tempo, passou de 33 anos, em 1900, e 41 anos, na década de 1940, para os atuais 76 anos (média entre homens e mulheres), segundo o último censo.

na primeira década da república, a população contava com cerca de 14 milhões de pessoas, enquanto hoje, segundo o último censo do IBGE, somamos mais 200 milhões a essa cifra.

Do ponto de vista econômico, o país também se transformou profundamente, deixando o modelo agroexportador do início da república (a agricultura correspondia a 49% do PIB ainda na década de 1940), típico dos barões do café, para se transformar, a partir da Era Vargas (1930-1945), em um país orientado, também no Estado, à política industrializante. A indústria correra um caminho autônomo e paralelo sob a primeira república, como um escoamento do ganho de capital do café paulista, focando, em especial, na indústria de bens de consumo.

Candido Portinari. “Colhedores de café”, 1935.

Com Getúlio, esse desenvolvimento industrial ocorre via estado, num primeiro momento de modo mais desordenado, mas, no Estado Novo (1937-1945), com um norte claro pelo desenvolvimento da indústria de base, com foco em siderurgia, energia elétrica e combustíveis. Outros momentos de expansão econômica e industrial ocorreram, entre os quais devemos citar o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek (1956-1961), o Plano Nacional do Desenvolvimento número 1, também conhecido como Milagre Econômico (1969-1973) da Ditadura Militar e, por fim, os efeitos da estabilização econômica do país com o Plano Real (1993-…).

Na educação, o país mudou radicalmente. Entrou na República sem possuir uma universidade, somente faculdades isoladas, e com altas taxas de analfabetismo (de 65,3%). Desde a fundação da USP em 1934, o país ampliou vertiginosamente a educação superior, passou a oferecer educação básica para 99% da população e reduziu a taxa de analfabetismo para 6%.

Do ponto de vista social, a República iniciou o seu regime sob forte impacto da escravidão, que havia sido abolida somente um ano e meio antes da Proclamação. A população era predominantemente rural, porém, desde os anos 1940, a urbanização se intensificou profundamente, de modo que na atualidade mais de 80% da população vive em zonas urbanas. Um dado curioso: o número absoluto de pessoas vivendo na zona rural se manteve praticamente estável nos últimos 80 anos, em torno de 30 milhões de habitantes.

Tarsila do Amaral. “Operários”, 1933.

O país também passou por um processo de “pardização”, isto é, um crescimento do percentual de pessoas que se autodeclaram pardas: hoje, mais de 40% das pessoas, a saber, 80 a 90 milhões de pessoas (número aproximado das pessoas que se autodeclaram brancas). Do ponto de vista do emprego, o censo de 1920 registrava 46,9% de inativos, taxa que hoje circula em torno de 9%.

Para finalizar as mudanças ocorridas desde 1889: o país não garantia e agora garante direitos sociais e econômicos (incluídos aí direitos trabalhistas e direito à saúde e educação) e mantinha restrições eleitorais graves, agora modificadas (mulheres e analfabetos não votavam até 1932 e 1988, respectivamente).

Agora, olhemos somente para os últimos 40 anos da história do Brasil, nos quais se situa a Nova República. O país entrou neste subperíodo com um passado imediato autoritário, repleto de mazelas políticas e econômicas a serem corrigidas. Os ataques do estado brasileiro, em todas as suas manifestações, à sociedade e à política, durante o regime militar deixaram marcas duras na população, que ainda viu, ao final, a sua vida afetada por uma grave crise econômica, marcada pela “estagflação”, a combinação, quase improvável, de estagnação e inflação. O endividamento externo do estado era astronômico, a industrialização precária e sucateada, o câmbio desfavorável para um desenvolvimento consistente e a inserção no mundo globalizado engatinhava.

O país entrou neste subperíodo com um passado imediato autoritário, repleto de mazelas políticas e econômicas a serem corrigidas.

De lá para cá, muita coisa mudou. O país conseguiu redigir uma nova constituição, ainda vigente, com significativa participação popular, que buscou resolver o entulho autoritário dos militares, a chamada Constituição Cidadã (CF-88). Essa carta abriu caminho para a conquista de muitos direitos políticos, civis, sociais, econômicos e culturais.

A Constituição de 1988: um marco do processo de redemocratização do Brasil. Foto: Agência Brasil.

O Brasil também teve êxito, após muitos percalços, em um plano de estabilização econômica, quando, por meio do Plano Real (1993-…), conseguiu conter a inflação, atingir um câmbio favorável e uma inserção competitiva no mercado internacional. Deixou de ser um país “subdesenvolvido” e inconfiável economicamente e irrelevante diplomaticamente para ser uma potência econômica (tendo atingido a 6° posição como economia do mundo) e um protagonista político internacional, nas áreas ambiental, cultural, econômica e social. Para falar em números, desde a criação do plano real, o PIB per capita aumentou de 2.232 reais para 35.935 reais em 2020.

O país conseguiu redigir uma nova constituição, ainda vigente, com significativa participação popular, que buscou resolver o entulho autoritário dos militares

Independente das tensões políticas, o país conseguiu manter as suas instituições suficientemente intactas durante o período, mesmo que com dois traumas, no caso, os dois impeachments — de Collor, em 1992, e de Dilma Rousseff, em 2016. A despeito deles, as eleições ocorreram normalmente desde 1989, se organizaram e se tecnologizaram e os seus resultados e processos foram respeitados (ainda que com agitações oriundas da sociedade civil e até mesmo de governantes, ocasionalmente).

Os caras-pintadas, movimento estudantil pelo impeachment de Collor.

Do ponto de vista social, projetos relevantes via Estado ocorreram desde o governo Fernando Henrique Cardoso, ainda que de forma desordenada e descentralizada, tendo atingido o seu ápice sob o sistema do Bolsa Família, durante o governo Lula — programas responsáveis pela retirada de milhões de pessoas da miséria extrema. E o que não conseguimos? O que permanece? Ou mais, o que piora?

O Brasil também teve êxito, após muitos percalços, em um plano de estabilização econômica, quando, por meio do Plano Real, conseguiu conter a inflação, atingir um câmbio favorável e uma inserção competitiva no mercado internacional.

O país segue com problemas internos graves, talvez estruturais. Do ponto de vista institucional, o Brasil é um dos países mais corruptos do mundo, não só na prática, mas também na percepção que a população tem sobre as instituições em geral. O país também lidera índices terríveis de segurança pública, tanto no número absoluto de mortes violentas (que já bateram 60 mil/ano) e de feminicídio quanto em fatores mais “discretos”, como blindagem de carros, condomínios cercados, percepção de insegurança da população ou ausência do estado em determinadas regiões nas quais poderes paralelos tomam conta. A violência no campo é grave também, funcionando em muitas regiões com uma lógica local de vingança e retaliação.

O país enfrenta problemas judiciários graves, com fragilidades e alterações institucionais e legislativas relevantes ao longo do tempo, associados à morosidade do sistema. Há problemas de saneamento básico e atendimento à saúde que são muito relevantes, em especial em populações vulneráveis. Problemas raciais são possivelmente o maior problema social do país, dado que quaisquer índices demográficos apontam como a vida de uma pessoa negra é em média quatro vezes mais difícil e insegura do que a vida de uma pessoa branca.

O país segue com problemas intrínsecos. Do ponto de vista institucional, o Brasil é um dos países mais corruptos do mundo, não só na prática, mas também na percepção que a população tem sobre as instituições em geral.

A exploração do meio ambiente brasileiro, em especial das matas matas originais indispensáveis à fauna do país, cresceu dramaticamente, a despeito da tentativa de protagonismo do país no setor. A destruição da cultura e da realidade das populações indígenas também não encontrou limites, apesar das instituições que foram criadas para defender os seus direitos e da própria organização das lideranças indígenas.

Registro aéreo da Amazônia. Foto: Tiago Queiroz/Estadão.

A desigualdade econômica segue um problema grave no país e, ainda que o índice de Gini tenha melhorado nas últimas décadas, o país apresenta uma altíssima concentração de renda. A formação de periferias urbanas no país é incontrolável, lugares nos quais, muitas vezes, as populações vivem desatendidas do estado e dos serviços básicos de saneamento. Por fim, a polarização política, civil e social que o país enfrenta na última década tensionou relações públicas e privadas, trazendo à tona grande parte do mal-estar oriundo desses contrastes e problemas acima citados e levando-o para a esfera do indivíduo. 

A desigualdade econômica segue um problema grave no país e, ainda que o índice de Gini tenha melhorado nas últimas décadas, o país apresenta uma altíssima concentração de renda.

Nestes textos, tento contar a história da Nova República de maneira abrangente, isto é, não apenas sua história política ou dos grandes acontecimentos marcantes, mas também os seus aspectos culturais, econômicos, civis, ambientais, tecnológicos, artísticos e comportamentais. Busco transmitir para as futuras gerações o que foi viver neste período, assim como reviver para os que nele viveram as mais distintas facetas do período republicano brasileiro mais recente.

Como sobrevivemos à hiperinflação? Como lutamos por direitos? Que música ouvimos e que música traduziu o sentimento da população? Quais conflitos geracionais surgiram? Como os computadores e depois a internet mudaram a vida cotidiana das pessoas? Quais caminhos levaram a dois distintos impeachments, ao lulismo, ao bolsonarismo? Como a sociedade se viu dividida diante do maior trauma coletivo dos últimos tempos, a Covid-19

São todas perguntas muito difíceis de serem respondidas. Convido o leitor a buscar comigo as tentativas de resposta. 

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